Roger Federer, um rabugento que se tornou um senhor

16 set 2022, 10:00
Roger Federer (AP)

Marcou várias gerações ao longo de mais de duas décadas de carreira. Considerado por muitos o melhor de sempre, anunciou o adeus ao ténis esta quarta-feira

"Eu era bem o oposto do Pete quando era mais novo, atirava as minhas raquetes por aí. Era expulso das sessões de treino quando tinha 16 anos. Desde talvez este ano comecei a relaxar um pouco mais no campo. Não estou a partir tantas raquetes como antes, e cresci um pouco, percebi que atirar raquetes não ajudava o meu jogo, porque estava sempre a ficar muito pessimista."

Estas palavras foram proferidas por Roger Federer, que anunciou esta quinta-feira a sua retirada do ténis, após a sua primeira grande vitória da carreira, frente ao campeoníssimo Pete Sampras no torneio de Wimbledon de 2001, que o norte-americano já tinha ganho por sete vezes. A partida, a única entre ambos, marcou uma espécie de viragem no ténis mundial: Sampras retirou-se de forma brilhante após o triunfo no US Open de 2002. Para Federer, foi sempre a subir desde então.

Quem lê as declarações do primeiro parágrafo e não assistiu ao brotar do suíço ficará a pensar que os acontecimentos ocorreram numa realidade paralela, mas não. O jovem de rabo de cavalo comportava-se em campo como um pequeno McEnroe. Vá, também não exageremos. Mas o feitio não era recomendável.

Certo é que o tenista de Basileia aprendeu com os erros da juventude. A atitude menos positiva deu lugar a uma pose quase de Estado dentro do court. E isso refletiu-se nos resultados.

Com 21 anos, Federer voltou a pisar a relva do All England Club, desta vez como nº 4 do mundo e já com responsabilidades nos ombros. Era o seu torneio favorito, já o tinha vencido em juniores cinco anos antes, quer em singulares ou em pares. Ainda com o seu rabo de cavalo, Federer caminhou calmamente para o seu primeiro título do Grand Slam, ao bater Andy Roddick, de quem foi besta negra, na meia-final, e o bon vivant australiano Mark Philippoussis no derradeiro encontro.

Federer após a conquista do torneio de Wimbledon em 2003 (AP)

O seu estilo de jogo era inconfundível e deliciava mesmo quem não era adepto. A leveza do jogo de pés, a facilidade e fluidez de execução de cada pancada, a postura sempre idónea, o shot-making, aquela esquerda a uma mão, tudo nele parecia perfeito, quase demasiado para um ser humano. Não era só a aparência, no entanto. A qualidade também estava muito acima da média, como comprovou no ano seguinte, ao defender o título de Wimbledon e conquistar também o Open da Austrália e o US Open, ascendendo também ao primeiro lugar do ranking ATP.

2004 ficou também marcado por ser o ano do seu primeiro encontro (e derrota) com um dos seus grandes arquirrivais. A vitória do jovem Rafael Nadal em Miami foi o início de uma rivalidade histórica, que muitos consideram a melhor de sempre na modalidade. Mas, nesse momento, ninguém, nem o próprio Federer, conseguia antever que o maiorquino lhe viesse a causar tantos problemas durante a carreira.

Em piso rápido e relva ninguém parava Federer. Os majors e Masters 1000 iam caindo na contabilidade do suíço, como se de algo inevitável se tratasse. Cada encontro de Federer era, para o adversário, o cumprir de uma burocracia rotineira e desagradável. Salvo o Open da Austrália de 2005, conquistou Melbourne, Londres e Nova Iorque todos os anos de 2004 a 2007. Em menos de nada conquistou 12 títulos do Grand Slam, ficando perto da marca de Sampras, que parecia inalcançável com 14.

Em terra batida, contudo, o assunto era diferente. Nadal depressa se assumiu como o rei do pó-de-tijolo, ao vencer Roland Garros com apenas 17 anos. E com 18. E com 19. O “Touro” de Manacor não parava e, com isso, impedia Federer de brilhar. Paris, Monte-Carlo, Roma, Hamburgo, as derrotas do suíço ante o prodígio espanhol iam-se acumulando. Mas em nada retiravam o brilhantismo a Federer, que seguia como o indiscutível melhor do mundo. Mas Nadal queria esse estatuto.

Após duas finais de Wimbledon perdidas para o mágico de Basileia, o espanhol regressou a Londres em 2008 determinado em fazer valer o lema “à terceira é de vez” e quebrar o domínio do rival na capital britânica, mantido desde esse primeiro grande triunfo de 2003. E conseguiu. Em 4 horas e 48 minutos, já quase de noite, num encontro que muitos ainda consideram ser o melhor de sempre, Nadal levou de vencida Federer em cinco sets, e fez ao número 1 do mundo o que este não lhe tinha conseguido fazer: ganhar na “fortaleza” do adversário.

Federer e Nadal antes da final de Wimbledon de 2008 (AP)

O status quo do ténis mundial alterou-se: Nadal ascendeu ao primeiro lugar do ranking em agosto desse ano após a conquista do título olímpico de singulares. Federer, que também atingiu a glória em Pequim, mas em pares, ainda salvou a época ao conquistar o quinto título consecutivo em Flushing Meadows, mas um novo golpe duro estaria para chegar no verão australiano, já em 2009, com a derrota diante do maiorquino na final do torneio de Melbourne.

Federer já não era o rei indiscutível dos hard courts e da relva e, talvez pior ainda, não conseguia impor-se em terra batida. Tinha 13 Grand Slams, nenhum deles Roland Garros. E a supremacia de Nadal em Paris, para quem o Philippe Chartrier era um salão de festas, lançava a questão: conseguirá Federer alguma vez ganhar o torneio francês?

Diz o ditado que “depois da tempestade vem a bonança”. E a bonança chegou mesmo para o suíço na pessoa de Robin Soderling. Jogador de qualidade, mas discreto, o sueco marcou encontro com Rafael Nadal na quarta ronda do major francês. Era a primeira vez que tinha chegado tão longe num torneio do Grand Slam. Quem perspetivava um passeio para o maiorquino (admitamos, todos nós) enganou-se redondamente. Soderling despachou-o em quatro sets e fez o inédito: foi a primeira derrota de Nadal em Roland Garros.

As portas para Federer fazer história estavam, agora, escancaradas. Tinha de agarrar a oportunidade com unhas e dentes, não se sabia quando Nadal iria voltar a deslizar na terra batida da capital gaulesa (só voltou a acontecer em 2015). Após uma dura batalha com Juan Martín del Potro, Federer chegou à final. E quem lá estava para o defrontar? Robin Soderling. Até então, ninguém tinha derrotado Nadal e Federer no mesmo Grand Slam (Del Potro veio a fazê-lo meses mais tarde, no US Open). Seria um feito histórico que catapultaria o sueco para a eternidade. Seria, mas não foi, Federer não deu hipótese e arrumou a questão em três sets, e protagonizou uma das celebrações mais puras da modalidade, ao cair de joelhos na terra e levar as mãos à cabeça, a chorar, como quem tinha acabado de cair em si próprio. Não foi só o primeiro título no major parisiense, foi também o 14.º Grand Slam, marca igual à de Sampras. Mas o norte-americano nunca tinha conquistado Paris, nem sequer chegado a uma final. As estatísticas e os corações deixavam tudo bem claro: Federer era o maior de todos os tempos.

Roger Federer celebra a conquista de Roland Garros em 2009 (AP)

Este triunfo devolveu-lhe também o estatuto de número 1 do mundo, reforçado com a reconquista de Wimbledon, que o deixou isolado no topo da lista dos tenistas com mais majors da história. Tudo ia quase perfeito. Mas estávamos longe de imaginar que, daí em diante, Federer só iria conquistar mais cinco títulos do Grand Slam. Esse facto tem um grande culpado, Novak Djokovic.

Nascido em Belgrado no final dos anos 80, a guerra e os bombardeamentos da NATO à capital jugoslava forçaram o jovem a amadurecer rapidamente. Já vencedor do Australian Open, em 2008, Djokovic apareceu de rompante em 2011, ganhando três Grand Slam e alcançando a liderança do ranking ATP. Esse ano foi também o primeiro desde 2002 em que Federer não venceu nenhum dos quatro maiores torneios. Não havia só Nadal: agora, era preciso contar com o "Djoker”.

A década passada não foi nada fácil. Do torneio de Roland Garros em 2010 até ao US Open de 2016, Federer ganhou apenas um major, Wimbledon 2012, no mesmo verão em que conquistou a prata olímpica de singulares. Este período foi marcado por derrotas inesperadas nos grandes palcos perante nomes como Serhiy Stakhovsky, Andreas Seppi ou Tommy Robredo. As três finais perdidas para Djokovic em 2014 e 2015 deixaram um gosto ainda mais amargo na sua boca. A magia parecia estar a desvanecer-se. A sua esquerda a uma mão já não conseguia superar a esquerda a duas mãos de Djokovic, quiçá a melhor de sempre. O jogo de pés também já não conseguia dominar o atleticismo do sérvio, capaz de fazer a espargata para devolver uma bola.

Foi também neste período que a idade começou a dar de si. Costas, joelhos, pulsos, virilhas, cirurgia após cirurgia. O corpo de Federer parecia estar a ceder. Começámos a sentir nessa altura aquilo que poucos desejavam. No entanto, ainda havia algum gás no tanque.

O suíço chegou ao Open da Austrália de 2017 como 17.º cabeça-de-série. O então número 1 Andy Murray e o compatriota Stan Wawrinka, os únicos que fizeram uma oposição constante aos “Big Three” durante mais de uma década, ficaram do seu lado do quadro. Não se antevia tarefa fácil. Mas, discretamente, Federer chegou às meias-finais do torneio, que desde cedo deixou de contar com Novak Djokovic, eliminado de forma surpreendente pelo uzbeque Denis Istomin. Nessa ronda, Roger tinha encontro marcado com Stan, com quem tinha partilhado o ouro olímpico nove anos antes. E havia um aliciante: na outra meia-final estava Rafael Nadal, nono cabeça-de-série.

Já ninguém esperava que os dois se voltassem a defrontar na final de um major, algo que não acontecia desde 2011, mas o sonho dos adeptos da modalidade cumpriu-se mesmo. Frente-a-frente, na Rod Laver Arena, dois ícones do ténis e do desporto mundial, ambos longe da sua melhor forma. Foi como um presente deixado pelos deuses àqueles que cresceram a ver esta rivalidade. Poucos tinham dúvidas de que esta seria, provavelmente, a última dança entre os dois nos grandes palcos. E, desta vez, Federer levou a melhor.

Ao contrário do que acontecera oito anos antes, o suíço venceu em cinco sets. As lágrimas de alegria voltaram a escorrer-lhe pela cara. Já tinha o 18.º no bolso e o sonho de um inédito 20.º título do Grand Slam renascia.

A emoção de Federer após a conquista do 20.º título do Grand Slam (Lusa)

De volta aos lugares cimeiros do ranking, Federer volta a “saltar” Roland Garros, algo que também fizera no ano anterior, para se concentrar em Wimbledon. Diante de um muito perturbado Marin Cilic selou o oitavo título no All England Club, expandindo o seu recorde de vitórias no torneio. O push final rumo à quebra de uma barreira outrora considerada inatingível foi dado em Melbourne Park, também diante do croata. 20 Grand Slams. Para os seus mais devotos, a História poderia acabar ali. Foi o primeiro a chegar a esta marca, era impossível alguém superar esta marca. Foi o seu último major, mas não a última grande final. Essa aconteceu no ano seguinte em Wimbledon, talvez a maior desilusão da longa carreira.

O público londrino não fez por esconder a sua preferência. Todos estavam com Federer, todos estavam contra Djokovic. Um serviço ganhante dá ao suíço dois match points no quinto set, perante o gáudio dos que assistiam. Poucos esquecerão aquela adepta que, talvez já algo tocada pelo álcool, se levantou e ergueu o indicador. Faltava um ponto, um só ponto. Um. Ponto. Um ponto que nunca chegou. A adversidade sempre foi a praia do sérvio, que deu a volta ao encontro e triunfou ao cabo de 4 horas e 57 minutos, a final mais longa de todos os tempos daquele torneio. A crueldade do desfecho estava bem espelhada nas estatísticas do encontro, que ditavam que o suíço tinha sido superior em quase todas as métricas. Faltou o resultado final.

Novak Djokovic e Roger Federer após a final de Wimbledon de 2019 (AP)

Foi um duro golpe do qual Federer nunca conseguiu recuperar. As lesões e operações em catadupa certamente também não facilitaram. Poucos imaginariam que a derrota perante Hubert Hurkacz nos quartos-de-final do major britânico de 2021 seria a sua última grande partida, até porque todos ansiavam pelo regresso de mais uma pausa prolongada devido a cirurgia.

Não houve uma retirada em court, com uma ovação prolongada da multidão. Não houve um discurso emocional de agradecimento à mulher, Mirka, que sempre o acompanhou desde que se conheceram nos Jogos Olímpicos de Sydney em 2000. Não o pudemos ver acompanhado dos filhos, a posar para os fotógrafos uma última vez. Tudo aconteceu na internet, apanhando meio mundo de surpresa. Não houve tempo para preparar o luto, para nos mentalizarmos de uma realidade que pairava nas nossas cabeças, mas que queríamos, desejávamos que não chegasse. O anticlímax do final da carreira pode deixar um gosto amargo, mas é nesta altura que nos devemos lembrar dos grandes momentos. As direitas paralelas, cruzadas, descruzadas, os tweeners, os ases, as palavras, os sorrisos, os sentimentos que em nós despertou. É pensar no que de melhor aconteceu e, no fim, agradecer. Agradecer a Federer por nos conceder o privilégio de o vermos. E agradecer aos deuses por sermos contemporâneos de tal genialidade. Não houve, não há e não haverá mais ninguém igual a Federer. E é isso que o faz especial.

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