Fim dos limites às rendas e das restrições ao alojamento local: os prós e os contras das medidas de Montenegro para a habitação

12 abr, 08:00
Imobiliário (Associated Press)

O Governo quer reverter as medidas do pacote Mais Habitação anunciado por António Costa há um ano. O objetivo é não penalizar os proprietários e, assim, estimular o mercado.

Reverter o programa Mais Habitação, desistindo dos limites às rendas e das restrições ao Alojamento Local, pode ser um passo importante para estimular o mercado, mas o problema da habitação exige um olhar mais abrangente e um conjunto de medidas mais complexas para não perder de vista a justiça social, afirmam os economistas Vera Gouveia Barros e João Pereira dos Santos.

"É determinação do Governo revogar normas como o arrendamento forçado, os congelamentos de rendas (aplicando subsídios aos arrendatários vulneráveis), e as medidas penalizadoras do alojamento local como a Contribuição Extraordinária sobre o Alojamento Local, a caducidade das licenças anteriores ao programa Mais Habitação, e outras limitações legais consideradas desproporcionais”, lê-se no Programa do Governo e confirmou o primeiro-ministro Luís Montenegro na sua intervenção esta quinta-feira na Assembleia da República: a habitação é uma das áreas onde tenciona intervir rapidamente.

As suas palavras foram aplaudidas pelos proprietários e criticadas pelos inquilinos, como seria de esperar. Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários, aplaudiu "vigorosamente" a anulação do programa que, nas suas palavras, “assentou num ataque feroz aos proprietários privados", sublinha.  Já a Associação de Inquilinos Lisbonenses mostrou-se preocupada pois entende que Montenegro está a regressar aos tempos da Troika.

"Já se esperava, estas medidas estavam no programa da AD", comenta à CNN Portugal o economista João Pereira dos Santos. "Aquilo que os dados sobre o congelamento das rendas nos mostram é que esta medida beneficia apenas aqueles que já estão no mercado, à custa daqueles que querem entrar." Apesar das boas intenções que uma medida destas tinha, na sua opinião é preferível que "as rendas sigam mais os preços de mercado".

A economista Vera Gouveia Barros tinha sido bastante crítica do pacote Mais Habitação, incluindo da limitação de rendas, por isso concorda a posição do Governo: "Não posso estar a dizer que estou a promover a confiança dos proprietários e levá-los a pôr casas de mercado e depois congelar as rendas - não era assim que se chamava mas era isso que acontecia na prática -, portanto, essa medida acabou por retirar casas do mercado e não era isso que pretendia". Deste ponto de vista, se o Governo acredita que "o problema se resolve no lado da oferta", o fim dos tetos às rendas "pode ser bom".

Sobre a medida do arrendamento coercivo, uma das mais polémicas medidas do Mais Habitação, Vera Gouveia Barros considera que "o problema maior foi o pânico que causou entre as pessoas". "A propriedade é, para muitos dos portugueses, onde está a sua riqueza", esclarece, e, por isso as reações foram muito inflamadas. "Na apresentação do pacote, a ministra referia as 750 mil casas vagas que aparecem no censos, mas na verdade cerca de metade dessas casas estão vagas mas já estão no mercado de arrendamento ou de venda, e as outras estão vagas por uma série de outros motivos. E, se excluindo as casas dos emigrantes, as casas pendentes de situação judicial, as casas de pessoas que estão em internamento, como é o caso de idosos em lares, e outros casos, verificava-se que não eram assim tantas as casas que pudessem ser alvo desta medida", explica esta especialista.

"A confiança demora muito tempo a construir e costuma-se dizer que basta um segundo para ser destruída. Ora grande parte dessa confiança foi destruída com as medidas do três governos anteriores, com a política que começou na 'geringonça'", afirma Vera Gouveia Barros, considerando que os proprietários de casas foram muito penalizados ao longo dos anos e, por isso, reagiram a essa desconfiança e a essa insegurança da única maneira que sabiam: "Se eu sei que não vou poder aumentar as rendas durante um longo período, então se calhar já vou pôr um preço muito elevado no início". 

Vera Gouveia Barros acredita que "esta mudança de Governo com forças políticas que estão mais sensíveis a estas questões" pode fazer a diferença, mas sublinha que para um problema tão complexo são necessárias muitas medidas que atuem em diferentes níveis, da fiscalidade à mobilidade.

Mais reabilitação e mais habitação pública

O Governo admite reduzir a burocracia, eliminar taxas e criar parcerias público-privadas para incentivar a construção. O objetivo é resolver o problema da falta de habitação em Portugal, onde o executivo de Luís Montenegro acena com outra promessa: disponibilizar edifícios públicos de forma “quase-automática” no mercado. De acordo com o Programa do Governo, promete-se a “injeção no mercado, quase-automática, dos imóveis e solos públicos devolutos ou subutilizados”, com o objetivo de atenuar a reduzida oferta de habitações face à atual procura. Todas essas medidas são positivas, dizem os especialistas.

Foi o próprio Presidente da República que esta quinta-feira, numa palestra sobre o 25 de Abril na Escola Secundária de Camões, em Lisboa, afirmou que é preciso mais habitação pública. Interrogado sobre as dificuldades no acesso à habitação, o chefe de Estado respondeu que "a habitação está a ficar muito, muito, muito cara" em Portugal e que "este é um problema dos estudantes, mas é um problema dos portugueses em geral": "É preciso haver mais habitação de iniciativa pública, é preciso, num país com a pobreza que nós temos", defendeu Marcelo Rebelo de Sousa. "Não é apenas o setor privado ou o setor social que resolve o problema. É preciso que Estado e poder local tenham um papel fundamental, construindo mais, disponibilizando mais habitação", acrescentou.

Uma das medidas mais óbvias passa por não só inventariar os imóveis do Estado que estão disponíveis mas também perceber onde se localizam, quais são as tipologias, como podem ser adaptados, que obras são necessárias, se podem ser adaptados para habitação ou rentabilizados de alguma outra forma, afirma Vera Gouveia Barros.

O economista João Pereira dos Santos concorda: "É preciso aumentar rapidamente a habitação pública" e isto pode fazer-se através da construção mas também através da utilização do que já há: "Pôr parte do património de Estado, aquele que não está a ser utilizado, ao serviço da habitação, não só para famílias mas também para residências", defende.

"A construção e a reabilitação urbana são importantes, mas também a melhor utilização do que já existe. Tem de haver mecanismos de transparência para percebermos melhor que parte do património do Estado é que poderia ser utilizada, e tem de haver algum mecanismo de compensação para que isso aconteça de forma célere, para que não aconteça o que acontece agora que os projetos não avançam", diz, dando o exemplo da anunciada residência na 5 de Outubro que ainda não se concretizou. "O mercado pode atuar mas o Estado tem o dever de rapidamente, em parcerias com privados ou não, disponibilizar mais habitação."

Alojamento local e vistos gold: é preciso encontrar o meio termo

João Pereira dos Santos foi um dos autores de um estudo recente que concluiu que os vistos gold foram um dos fatores que contribuíram para aumentar os preços das casas em Portugal. Depois da entrada em vigor deste regime, que permitia dar vistos de residência a quem comprasse uma casa por um mínimo de 500 mil euros, e face ao período anterior, houve um aumento de 60% de imóveis vendidos precisamente por esse valor, sugerindo a existência de uma distorção de preços para que as casas fossem abrangidas pelo programa. Além de os investidores estrangeiros terem acabado por pagar mais pelas casas do que teriam pagado antes do programa, os compradores portugueses foram também "arrastados" pela alteração, uma vez que todo o mercado foi afetado.

No entanto, o economista alerta que os vistos gold "são importantes mas não são a única causa" da subida dos preços. O aumento do turismo com o alojamento local e a abertura de novos hotéis, o aumento da imigração e o regime de residentes não habituais são outros dos fatores a ter em conta. 

Por isso, diz que antes de se acabar com os vistos gold seria preciso ter mais dados: "Não sabemos se as casas foram compradas por pessoas que se fixaram em Portugal ou que só vêm 14 dias, o que tem impactos diferentes na economia. Não sabemos se as casas estão fechadas ou colocadas em arrendamento, nem onde foram compradas, se em zonas de reabilitação ou mais turísticas".

No caso dos alojamentos locais, João Pereira dos Santos também não defende a sua completa proibição: "Eu era completamente contra restringir o alojamento local em todas as zonas litorais, sem perceber as necessidades dessa zona. Essas restrições podem fazer sentido em algumas zonas que estão sujeitas a uma maior pressão do turismo, mas não pode ser uma decisão cega", diz. "Sou mais a favor de uma legislação como a que existe nos EUA, com restrições referentes ao número de dias em que uma habitação estar a ser promovida nos sites de alojamento local. Uma família que queira arrendar a sua habitação nas férias pode ser uma maneira de ter um rendimento extra e de solucionar um problema de falta de alojamento para turistas na época alta, isso seria benéfico para todos", exemplifica.

"Não podemos passar de um extremo em que tudo é proibido para a desregulação total, penso que deve haver restrições com critérios e terá de haver uma coordenação com os municípios", afirma o economista. 

Impostos, taxa de esforço, justiça: três áreas a intervir

No Programa do Governo, entregue esta quarta-feira, lê-se que, nesta matéria, “a intervenção pública com vocação de estabilização deve ser através da subsidiação dos arrendatários que precisam, e não do castigo generalizado dos proprietários, que seria paga por todos no longo prazo”. 

O Governo de Montenegro insiste que as “limitações administrativas de preços” - numa referência ao travão às rendas - devem ser substituídas por “subsidiação pública aos arrendatários em situações de vulnerabilidade/necessidade efetiva”.  E concretiza que a medida será aplicada “em função da taxa de esforço e nível de rendimento”. Para as famílias com taxas de esforço elevadas nas rendas, o executivo acena com a “manutenção” do “subsídio de renda dinâmico”. Mas com um aviso: “enquanto o mercado não estabiliza”. “Ao contrário de limitar o apoio à existência de contratos a março de 2022, tal como no apoio às rendas atual, a Autoridade Tributária verificará o universo de contratos frequentemente, e atribuirá uma comparticipação começando pelas famílias com maiores taxas de esforço”, traça o programa.

"O direito a habitação tem se der respeitado e isso deve acontecer por duas vias: primeiro, acessibilidade económica (e é aqui que falamos da taxa de esforço) e, também, segurança legal da ocupação (não estar sempre com receio de perder a casa)", explica a economista Vera Gouveia Barros. "A maioria dos portugueses quer ser proprietário, isso tem que ver com a noção de segurança, de estabilidade" que neste momento não existe no arrendamento.

No caso da duração, "o que faria sentido era ter uma taxa de tributação que beneficiasse os senhorios que fazem arrendamento mais longos: mais anos de contrato, menos taxas de imposto", afirma Vera Gouveia Barros. "Mas não como existe agora, que não resulta, tinha de ser uma solução um bocadinho mais complexa."

A questão da taxa de esforço é complicada porque, como explica Vera Gouveia Barros, pessoas com rendimentos muito elevados suportam uma taxa de esforço mais elevada, como é óbvio, porque o dinheiro que lhes sobra é suficiente para viverem bem: a taxa de esforço não significa o mesmo para todas as pessoas: é preciso não esquecer a justiça social. Esse foi um dos motivos que levou a economista a discordar desde logo das medidas do Mais Habitação para o rendimento acessível: "O programa exigia também que a renda correspondesse, para o inquilino, a uma taxa de esforço máxima de 35%. Ora, isto incentiva o senhorio a arrendar a sua casa a famílias com maior rendimento. Não beneficia as famílias de rendimento mais baixo, que são as que mais precisam. A economista propõe, antes, uma fórmula que teria em conta a renda, o rendimento per capita do agregado e um valor de referência para rendimento. 

Como explicou num artigo publicado no Eco: "Quanto mais pobre for a família, mais aquela fracção se aproximará de zero. Ou seja, uma família de menor rendimento pode pagar uma renda mais baixa (porque se mantém a condição da taxa de esforço máxima), mas também gera um benefício fiscal superior, de modo a que a renda líquida para o senhorio não diminua. Note-se que a minha proposta é definida com base no rendimento per capita, para beneficiar, por exemplo, as famílias monoparentais, que são daquelas que exibem mais dificuldades no acesso à habitação."

Outra medida, que "demoraria mas teria bom resultados", seria ter "um sistema de justiça que funcione de forma rápida e eficaz": "Estou a pensar não só em inquilinos que não pagam ou que deixam imóveis em mau estado, mas também em senhorios abusadores ou nas casas que estão em disputas judiciais que demoraram ter resolução". 

Dando um primeiro passo nesse sentido, Luís Montenegro já anunciou que quer rever e acelerar os “mecanismos de rápida resolução de incumprimentos” dos contratos de arrendamento, com reforço do Balcão Nacional de Arrendamento ou dos julgados de paz.

Informação é essencial para tomar decisões

Ambos os economista defendem que uma das medidas mais importantes é promover uma "maior partilha de dados".

"Gostava de ver como primeira medida finalmente porem entidades como autoridade tributária a fazerem reportes mais frequentes e detalhadas de dados, para que a comunidade académica possa ter dados claros e perceber o mercado da habitação", afirma  Vera Gouveia Barros. "O problema não é só a subida de preços, é uma realidade muito complexa que tem de ser conhecida para que se tomem as melhores decisões."

"Esses dados existem mas, na verdade, sabemos muito pouco. Esses dados requerem algum trabalho e partilha com a academia, tem de se facilitar o reporte e transparência no debate para podermos ter discussões mais informadas", concorda João Pereira dos Santos, para quem as decisões deviam ser baseadas mais em factos e menos em ideologias.

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