No dia em que o Governo se prepara para apresentar um pacote de ajuda às famílias que têm casa própria ou querem arrendar, João Pereira dos Santos e Vera Gouveia Barros, dois dos autores do estudo "Mercado Imobiliário em Portugal", fazem o diagnóstico e apontam saídas para os problemas da habitação em Portugal
Rendas mais caras e crédito à habitação mais difícil de conseguir. Os especialistas afirmam que o problema na habitação em Portugal já existe há mais de dez anos, desde a crise de 2008, mas a inflação que chegou em 2022, e perdura em 2023, coloca novos desafios. É nesse sentido que o Governo se reúne esta quinta-feira num Conselho de Ministros dedicado exclusivamente ao tema, e no final do qual devem ser apresentadas medidas concretas para ajudar as famílias.
Medidas sem estudos
Grande parte dos problemas estão identificados: há pouca construção, os salários são baixos ou a mais recente inflação. Mas diz quem sabe que faltam estudos para se saber qual a verdadeira dimensão do problema e o que pode ser feito para chegar a uma solução.
João Pereira dos Santos, que foi um dos autores do estudo “O Mercado Imobiliário em Portugal”, afirma que “muitos dos diagnósticos não estão feitos”, dando mesmo alguns exemplos, como o número de casas vagas, que se tem mantido mais ou menos constante, mas que não estão no mercado, e ninguém parece ter uma explicação para isso.
“Toda a gente fala do número de casas vagas, mas ninguém sabe muito bem porque é que estas casas estão vagas, porque é que não estão no mercado de arrendamento de curto ou de longa duração”, afirma o também professor do Instituto Superior de Economia e Gestão.
É que os estudos, muitos deles, são encomendados pelo próprio Governo, mas para Vera Gouveia Barros há uma parte essencial que continua a não ser ouvida: os economistas. Também autora do estudo “O Mercado Imobiliário em Portugal”, a especialista defende que é essencial ouvir estes profissionais além dos arquitetos, engenheiros e sociólogos, uma vez que são eles que “têm as condições para responder” a várias das questões levantadas pelo problema na habitação, nomeadamente o funcionamento do mercado.
Afirma Vera Gouveia Barros que “os economistas foram arredados do debate”, não estando presentes nas várias consultas feitas pelo Executivo. “Há aqui um problema, porque quando quero intervir no mercado, seja para fazer legislação, seja para perceber como funciona o mercado, preciso de alguém de Economia”, acrescenta, apontando que não basta fazer uma simples relação entre oferta e procura para perceber a dimensão da questão.
“Comprar uma casa na Lapa não é a mesma coisa que comprar um apartamento no Alto dos Moinhos”, aponta, lembrando que existem diferentes segmentos, e que para isso deve ser tida em conta a disciplina da Economia de Família. Os preços são outros, logo, o público também é outro.
Casas há, mas para quem?
Num breve passeio por algumas das freguesias de Lisboa encontramos vários edifícios em construção. Só num raio de poucos quilómetros, entre Campo Pequeno e Campolide, existem pelo menos quatro blocos de apartamentos em construção. À porta indicam as tipologias e oferecem imagens com belas piscinas ou condomínios privados. Mas para quem são essas casas?
Um dos problemas já identificados é a falta de construção de casas, o que também afeta as disponíveis. 2022 foi, desde 2007, o ano em que menos casas estavam no mercado para compra e venda, mas não é só. A crise de 2008 levou a uma forte quebra na construção. Nesse ano, segundo o Pordata, foram construídos em Portugal 59.256 fogos para habilitação familiar. Esse número em 2021, em que até desceu para máximos de 10 anos, não ultrapassou os 20 mil. Apenas um terço das casas construídas 13 anos antes.
Vera Gouveia Barros nota que o problema não é de agora. “Já em 1947 o Diário de Notícias fazia capa com a questão da habitação, com um título que dizia ‘Casas baratas é o que faz falta em Lisboa’”. A especialista nota que a situação é totalmente diferente – quase erradicámos os bairros de lata – mas faltam casas. Com efeito, apenas 3,1% dos edifícios existentes em 2021 foram realizados na década entre 2011 e 2021, de acordo com os últimos Censos, até porque neste momento não compensa a quem faz desta área um negócio.
"Ao privado, pelo menos agora, não interessa estar a construir este tipo de habitação [de renda acessível]", diz a especialista, sublinhando que, no setor público, "é o Governo que tem a obrigação de melhorar as condições de habitabilidade".
A construção diminuiu, e a que existe não se conhece. É isso que diz João Pereira dos Santos, que nota uma ausência de estudos sobre a tipologia e o destino das novas construções. “É bastante diferente se a única construção que está a ser feita for destinada a um mercado de luxo ou se essa pouca construção for destinada a reabilitação urbana”, nota, defendendo que é preciso conhecer as medianas de preços para se perceber melhor quais as medidas que o Governo pode tomar.
O economista concorda que "todos os recursos da construção estão cada vez mais centrados no mercado de luxo", em vez de se direcionarem para uma renda acessível. Falta de investimento em habitação pública por um lado, com culpa para o Governo e para as câmaras, e de desinteresse das empresas privadas, que não veem rentabilidade suficiente em estar a construir casas baratas, até porque os terrenos e os materiais estão cada vez mais caros, então justifica-se uma subida do preço para retirar lucro do investimento feito.
"Isso contribui para que o preço de todo o mercado seja inflacionado. Construímos pouco, e o sistema bancário também não ajudou. Temos as taxas de construção mais baixas do último século", acrescenta, vendo esse como um sinal "particularmente importante nas grandes cidades".
O que pode (e vai) fazer o Governo
Será uma das medidas na manga do Governo, que recentemente até criou o Ministério da Habitação. Criados ainda no tempo de Pedro Passos Coelho, os vistos gold são vistos muitas vezes como uma das causas para o aumento do preço da habitação. João Pereira dos Santos lembra que foram atribuídos 10 mil vistos deste género em 10 anos. Um número que parece baixo, e que até só representa 1% ou 2% do mercado em cada ano.
Mas há um senão: "Se formos olhar para o mercado da construção nova, aí teve um grande impacto, o que contribuiu para que os recursos se centrassem na construção de casas de luxo, e não no segmento da renda acessível", atira João Pereira dos Santos
Isso, em conjunto com o turismo, origina um grande aumento da procura por parte de residentes habituais e não habituais. Procura essa que a construção "não acompanhou por vários motivos", entre os quais a falta de investimento.
"Nas grandes cidades os terrenos existem, são privados, e eles querem direcioná-los para o mercado de luxo. Aqui faria parte ser o Governo a intervir", afirma o economista.
Mas como? João Pereira dos Santos e Vera Gouveia Barros assinalam como essencial que se deem incentivos fiscais a proprietários. A investigadora na área da habitação aponta uma medida que poderia funcionar para libertar casas: a redução do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT). Esta é, segundo a especialista, um possível passo para solucionar outro problema: a subocupação das casas.
As várias análises feitas por Vera Gouveia Barros notam um padrão: muitas vezes existem as casas suficientes, só que há uma subocupação dos espaços. O mesmo é dizer que uma pessoa ou duas podem viver num T4 ou T5 quando, na realidade, não precisam de todos esses quartos. A sugestão passa por beneficiar o IMT de pessoas que vendam estes imóveis para transitarem para outros mais adequados à tipologia.
Benefícios esses que, para a especialista, também deviam chegar para a reabilitação urbana, que deverá ser uma das apostas do Governo, com a criação de incentivos fiscais para o arrendamento de casas até então devolutas. Incentivos que devem chegar também para o mercado de arrendamento de casas até aqui destinadas a Alojamento Local, além de estímulos para construção de novas habitações, nomeadamente tendo em vista o aumento da oferta pública de renda acessível. Neste ponto devem ser aumentados os solos e edifícios para habitação. Em cima da mesa estão ainda outros apoios diretos às famílias mais afetadas, nomeadamente aquelas cuja taxa de esforço tenha aumentado para níveis alarmantes na sequência da subida das taxas de juro do crédito à habitação ou a quem procure uma renda acessível.
Vera Gouveia Barros vê um subsídio como uma boa ideia, mas alerta para os moldes em que o mesmo pode ser atribuído, defendendo que se crie um mecanismo de proteção dos inquilinos. "Imaginemos que os potenciais inquilinos estavam dispostos a pagar uma renda de 500 euros. Se agora têm um subsídio de 200 euros vão estar dispostos a pagar 700 euros, pelo que o senhorio tem um poder negocial", nota, referindo que "uma medida pensada para aliviar o fardo dos inquilinos estaria a subsidiar senhorios".
Sejam quais forem, para Vera Gouveia Barros as medidas devem trazer, sobretudo no caso dos arrendamentos, um sentimento de confiança entre as diferentes partes: "Se estiver constantemente a fazer alterações legislativas estou a introduzir insegurança, o que traz um preço alto".
Os milhões do PRR (que são menos que no início)
São mais de mil milhões que o Plano de Recuperação e Resiliência prevê para investimento na habitação, grande parte destinado para o Programa de Apoio ao Acesso à Habitação. Um valor acordado ainda antes da subida da inflação e da guerra na Ucrânia, e que pode hoje significar muito menos ajuda do que há uns meses.
João Pereira dos Santos vê no programa um importante incentivo, mas destaca que os materiais de construção custam atualmente muito mais do que antes da guerra. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, construir uma casa nova custou em dezembro de 2022 mais 6,8% do que em 2021, número que até ficou abaixo de valores registados noutros meses (chegou a ser 18,6% mais caro). Ora, isso tem uma consequência clara: "Desde o momento em que foram calculados até ao momento em que serão executados o preço dos materiais aumentou consideravelmente, e isso tem efeitos no número de casas que poderão ser construídas", afirma o economista, que tem "muitas dúvidas que alguns municípios tenham capacidade para executar tudo o que está previsto".
Ainda assim, e mesmo admitindo um cenário ideal em que todo o valor é executado aos níveis que se pensava inicialmente, o especialista defende que continua a ser pouco, apontando os exemplos de outros países como Dinamarca ou Países Baixos, que têm uma forte presença de habitação pública, de acordo com o estudo de 2021 da Housing Europe, da União Europeia. Nessa tabela Portugal é dos países com pior resultado, com apenas 2% de habitação pública.
"O nosso mercado de habitação pública é extremamente baixo, está na ordem dos 2%. O objetivo é aumentar para os 5%, mais do que duplicar, e mesmo assim, 5% é bastante abaixo da média dos países da União Europeia", acrescenta.