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Psicóloga Clínica, autora, oradora

Com o surto de gripe A, há outra emergência a acontecer em várias casas: e agora, quem irá cuidar de quem habitualmente cuida?

31 dez 2023, 16:07

Acredito que a maioria de nós, algures no tempo, já teve aquele pesadelo em que vai a descer as escadas quando de repente acabam os degraus e entra em queda livre. É uma sensação assustadora, de perda de controlo e desamparo. Acontece que, nesta época, muitos pais que foram apanhados pela gripe A, além da maleita que carregam, ainda têm de preparar refeições, arrumar a casa, tratar da roupa, cuidar das crianças, acarinhar e transmitir alguma estabilidade num momento de pouca previsibilidade. A isto soma-se a carga mental de pensar qual dos filhos toma a próxima medicação, em que horário, com que dosagem, bem como tomar a sua; tudo numa fase em que a generalidade das pessoas mal se aguenta em pé. 

Enquanto rede de apoio, de nada adianta ficar de braços cruzados a assistir a alguém em queda livre ou atirar palavras que, ainda que proferidas em tom de incentivo (“tu és forte, vai passar rápido”), têm um sabor amargo a desamparo e solidão. Mais, podem até gerar uma espécie de expectativa de que os pais devem ser invencíveis, suportar tudo, o que os empurra para uma zona de sobrevivência e sensação de estarem a falhar quando começam a acusar o desgaste.

Os pais precisam de passar a ser vistos como aquilo que realmente são - seres humanos! Como qualquer ser humano, há momentos em que necessitam de se libertar deste lugar de pilar, para se conectarem com a sua vulnerabilidade e verem respondida aquelas que são necessidades básicas - receberem colo e serem cuidados.

Este colo pode chegar de várias formas:

1 - Preparar uma refeição. Ainda que não seja recomendado frequentarmos a casa de alguém infetado, podemos confecionar uma refeição e deixar à porta da família (idealmente perguntando primeiro o que estão a conseguir ingerir). Ter uma forma de alimentar, sobretudo, as crianças, é menos um peso em cima dos ombros dos pais.

2 - Entregar algumas compras em casa/medicação. Mesmo em lares onde existem dois cuidadores, o facto de um ir às compras/à farmácia implica que o outro, estando doente, fique a cuidar das crianças, também elas afetadas, o que é uma sobrecarga. Podermos avaliar junto da família o que precisam e entregar-lhes esses bens faz toda a diferença. Reparem que por muito longe que estejamos, a maioria dos hipermercados faz entregas, assim como as aplicações que levam refeições a casa. 

3 - Aliviar a carga mental. Oferecer apoio, dentro do que é possível, para terminar alguns assuntos é muitas vezes bem-vindo (aquele e-mail que falta enviar para a escola ou dar a leitura da eletricidade).

4 - Oferecer apoio emocional. A parentalidade é um ato de doação que por vezes pode escapar de uma zona saudável e transitar para um campo em que passamos a dar aquilo de que internamente estamos despojados - tolerância, energia, disposição. Darmos aos pais um espaço seguro, sem julgamentos, para expressarem como se sentem, sem entrarmos em comparações (“pois, eu passei bem pior, éramos cinco doentes e sem ajudas”), sem cobrarmos nenhum tipo de desempenho, apenas escutando, validando (aceitando) aquilo que nos trazem (“deve estar a ser mesmo muito difícil passar por tudo isto”) e dando colo.

Acima de tudo, lembrarmo-nos que o facto de eventualmente nunca nos termos sentido cuidados nestes momentos não significa que tenhamos de perpetuar o que nos faltou. Podemos fazer diferente, sempre, e curiosamente quando o damos, há um lado nosso que finalmente parece receber. Por outro lado, sabermos receber ajuda. Pode ser um lugar desconfortável para quem nunca se sentiu visto e importante para os outros, mas permitam-se fazê-lo, todos merecemos receber amor. Afinal, não é isso que está por detrás da maioria dos desejos para o próximo ano?

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