Geraldinos & Arquibaldos LXII
«Jornalismo é publicar algo que não interessa a alguém. Tudo o resto é publicidade.»
É um bom lema este de William Hearst. Praticamo-lo é pouco.
Apesar de não se reger pelas mesmas regras do jornalismo, o que o Football Leaks mais fez nos últimos anos foi divulgar documentos indesejáveis.
Fugas ao fisco, comissões avultadas em transferências, pagamentos indevidos, controlos antidoping positivos, violações do fair-play financeiro… Ao todo, mais de 70 mil documentos revelados.
O tema voltou a ter algum destaque, por estes dias, após a entrevista à Der Spiegel, à Mediapart e ao canal público alemão NRD de Rui Pinto, português que assumiu a ligação à plataforma.
Sobre o suspeito, entendamo-nos: havendo indícios criminais, caber-lhe-á responder por eles em tribunal. Ponto final. Aliás, ponto e vírgula. Porque tem, de facto, um certo potencial dramático ver como um indivíduo num apartamento esconso em Budapeste consegue pôr o mundo do futebol em alvoroço.
Contudo, esta reflexão tem sobretudo que ver com o tratamento jornalístico do assunto.
No princípio de tudo está a definição: se praticamente todos nos acomodámos ao termo hacker (pirata informático), a eurodeputada Ana Gomes sublinhou atempadamente a possibilidade de estarmos perante um whistleblower (denunciante), o que não é de todo despiciendo.
Crucial tem sido também a abordagem: se na imprensa estrangeira vemos genuíno interesse nas informações divulgadas; no panorama nacional, o mote oscila entre a sanha persecutória e as sentenças dadas a priori a quem as divulgou – o que não deixa de ser curioso se recuperarmos o entusiasmo inicial com que alguns interlocutores acompanharam as primeiras revelações do Football Leaks.
Por cá, mais do que a mensagem, discute-se o mensageiro. Mais do que o conteúdo, debate-se a forma.
Com a devida ressalva de não conhecermos a plenitude das motivações ou sequer a responsabilidade criminal que lhe poderá ser imputada, por cá faz-se pouco esta pergunta: prestou ou não o Football Leaks um serviço ao futebol e à comunidade?
Focarmo-nos neste caso concreto é, no entanto, dispersarmo-nos do essencial. O debate para o qual o tema nos convoca é bastante mais estruturante. Apesar de, lamentavelmente, quando não o evitamos, inquinarmo-lo pela clubite.
A questão maior tem que ver com o choque entre o direito à privacidade e o dever de informar.
Desde Watergate, até aos Panama Papers, passando pelos casos de Julian Assange ou Edward Snowden, a questão que se coloca nos pratos da balança é sempre a mesma: «Os meios justificam os fins?»
Ora, o jornalismo vive de fugas de informação: a maioria delas são absolutamente legítimas; outras estão num limbo ou para lá disso – como violações do segredo de justiça ou publicação de documentos confidenciais. Nesses casos, evoca-se o supremo direito a informar.
Publicar informações verdadeiras e de interesse público: essa será a função primordial do jornalismo. E não a de evitar a polémica a qualquer custo ou alhear-se da sua função de escrutinar.
O jornalismo não cumpre a sua função quando se remata qualquer escândalo no futebol com um «vamos mas é falar de bola». Falemos de bola, pois claro, sempre. Exceto quando ela nos esteja apenas a servir de distração.
É um logro pensar que cabe ao jornalismo participar na propaganda do futebol. Caberá protegê-lo, sim, mas sempre considerando na medida do possível todo o panorama, de modo a dar-lhe o devido contexto e rejeitando sempre qualquer tentativa de instrumentalização.
Para que a discussão não se torne académica, voltemos aos casos concretos do mundo lá fora.
Em meados de janeiro, o jornalista ganês Ahmed Hussein-Suale foi assassinado na capital do seu país. Foi alvejado três vezes por homens que seguiam de motorizada nas ruas de Accra.
Ahmed foi um dos responsáveis por revelar um esquema de corrupção generalizado no futebol do Gana.
Sobre Ahmed conheço pouco mais do que esta triste nota biográfica. Não tenho ideia se ele simpatizava com o Hearts of Oak ou com o Asante Kotoko.
Sei apenas, pelo que li, que fazia parte da plataforma Tiger Eye e que estava sob ameaça de um político chamado Kennedy Agyapong.
Sem nunca antes ter ouvido falar sobre Ahmed, suspeito que teria tido uma vida mais tranquila se se contentasse apenas em contemplar a bola, ignorando os escândalos que lhe entravam olhos adentro.
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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado pela expressão criada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.