Em entrevista à CNN Portugal, o diretor da Unidade de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Polícia Judiciária sublinha que o mercado europeu de drogas, em particular de cocaína, tem vindo a ganhar cada vez maior relevância e que, em Portugal, as redes criminosas têm procurado ter o apoio de trabalhadores colocados em lugares-chave nos portos. Deixa também um alerta para o crescimento da criminalidade violenta, associada a "ajustes de contas e disciplina interna" entre organizações criminosas
A Polícia Judiciária quer um reforço das unidades de combate ao tráfico de droga para impedir o crescente fenómeno da entrada de cocaína no país, especialmente através dos portos nacionais. “Nós necessitamos de mais músculo”, admite em entrevista à CNN Artur Vaz, líder do combate ao narcotráfico em Portugal, que alerta para a tendência de recrutamento de trabalhadores precários pelas organizações criminosas nesses locais. “Há cumplicidades de funcionários que prestam serviços em empresas nesses portos.”
Depois de o Governo ter manifestado preocupação com a crescente violência das redes criminosas, o diretor da Unidade de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da PJ salienta que a maior parte destes casos a nível nacional dizem respeito a “ajustes de contas” e à necessidade que os grupos de traficantes têm de “impor alguma disciplina interna”. Artur Vaz sublinha ainda que o modus operandi das organizações de tráfico de droga estão cada vez mais inovadores. "Já tivemos situações em que a droga chega e parece que é carvão, outras em que vem dissimulada em líquidos ou outros materiais."
As apreensões de cocaína em Portugal voltaram a bater recorde: 21,7 toneladas em 2023, o que representa a quantidade mais elevada apreendida pelas autoridades da última década e meia. Há uma mudança no mercado de droga?
O mercado europeu de drogas, em particular da cocaína, tem vindo a ganhar relevância nos últimos anos. Se até aqui há poucos anos o mercado norte-americano era o principal mercado consumidor de cocaína, presentemente diversos indicadores apontam no sentido de que é o mercado europeu. Aliado a isto, desde 2015/2016 existe um aumento de produção muito significativo na América Latina, nos países produtores, essencialmente na Colômbia.
E quais as principais portas de entrada da droga na Europa?
Nos últimos anos, as organizações criminosas têm privilegiado o transporte de cocaína em grandes quantidades através de contentores. Os principais pontos de entrada são os grandes portos europeus.
Em Portugal, há falta de polícias nos portos?
Sim. De facto, necessitamos de mais músculo. Nem tudo é resolvido só por meios humanos, mas os meios humanos são essenciais. Nos últimos anos, tem vindo a ser feito um esforço nesse sentido, mas há necessidade de um reforço das unidades de combate à droga na Polícia Judiciária.
Tem algum número em mente?
Não, não lhe vou dar nenhum número.
Há algum porto que observe com maior preocupação?
Em Portugal, existem quatro portos através dos quais circulam mercadorias que vêm de outros continentes: Sines, Lisboa, Setúbal e Leixões, e em todos se têm registado ocorrências de tráfico.
E como é que, em regra, funcionam essas redes de tráfico que chegam aos nossos portos?
As organizações criminosas aproveitam-se das infraestruturas e dos meios de transporte para fazerem circular grandes quantidades de droga. E como circulam, muitas vezes, através de contentores que têm de passar pelos portos, por vezes, há cumplicidades de funcionários que prestam serviços em empresas nesses portos.
Essas redes recrutam que tipo de trabalhadores?
Aquilo que sentimos é que estas redes criminosas procuram ter o apoio de pessoas colocadas em lugares-chave que as possam auxiliar na concretização das suas atividades ilícitas. Ou que lhes possam fornecer algumas garantias ou segurança de que essas atividades não serão descobertas.
O que é que a PJ tem feito para lidar com esse fenómeno?
Recolha de informação em articulação com outras autoridades nacionais, nomeadamente com a Autoridade Tributária, ou com empresas privadas. Temos de desenvolver aqui um trabalho conjunto em matéria de repressão.
Um dos problemas é o dinheiro da droga corromper facilmente as pessoas?
O tráfico de droga tem esta característica de ser um tipo de crime que é indutor de outro tipo de criminalidade, nomeadamente corrupção, aos mais vários níveis. É uma atividade que é geradora de elevados proveitos económicos, e a partir daí o dinheiro tem esta capacidade de corromper as pessoas.
Que outros crimes estão ligados ao tráfico de droga?
É indutor de outro tipo de criminalidade, nomeadamente violenta. Esta tem vindo a aumentar um pouco por toda a Europa e também em Portugal, embora não com os níveis que se registam noutros países.
O tráfico de droga está a contribuir para o aumento da criminalidade violenta no país?
Temos registado, nos últimos anos, algum acréscimo de violência associada ao tráfico. Mas não com os índices registados noutros países europeus.
Que situações, dentro do tráfico de droga, estão a gerar mais violência?
O que registamos em Portugal são maioritariamente casos de ajustes de contas derivados de negócios mal resolvidos entre traficantes ou grupos de traficantes. Muitas vezes ficam com a droga e não pagam, ficam com o dinheiro e não entregam a droga. E este tipo de negócios leva a que em situações extremas recorram a atos de violência.
Um dos maiores e mais violentos grupos de tráfico de droga do mundo é o brasileiro "PCC". E alguns dos seus elementos já foram apanhados em Portugal. A presença deste grupo no país preocupa-o?
A presença de elementos de qualquer que seja a organização que se dedique ao tráfico de drogas em território nacional é sempre motivo de preocupação e motivo para a Polícia Judiciária investigar as atividades que possam estar a desenvolver em Portugal.
Que alterações há atualmente nos esquemas utilizados pelos correios de droga?
Estes grupos que se dedicam ao tráfico de droga têm uma característica que é uma grande capacidade de adaptação e uma grande versatilidade. Ou seja, rapidamente se adaptam às dificuldades impostas pelas autoridades. Se apertamos mais no aeroporto de Lisboa, viram-se para outros aeroportos. E a forma de operar está sempre a inovar. Estão muito atentos àquilo que é a realidade e às novas possibilidades de ocultação e de dissimulação de droga.
Que inovações são essas?
Já tivemos situações em que a droga chega e parece que é carvão. Outras vem dissimulada em líquidos ou outros materiais.
Além dos portos, os esquemas dos correios de droga costumam ser auxiliados por portugueses?
Temos muitos correios de droga que apenas passam pelo aeroporto de Lisboa com destino a outros países europeus. Na generalidade desses casos não há o envolvimento de ninguém português. Agora, se for um correio com destino a Portugal já há envolvimento de portugueses.
É o que sucede nos portos que referiu.
Um contentor que é importado por uma empresa portuguesa, muitas vezes há portugueses envolvidos. Prestam apoio logístico a esses grupos criminosos, que normalmente são chefiados por indivíduos que não são nacionais.
Como é que é feita hoje em dia a venda de droga no país?
Depende do tipo de drogas. A droga mais consumida em Portugal é a canábis. A heroína continua a ser consumida, embora não nos índices do final dos anos 80 e 90, em que havia uma verdadeira epidemia de consumos. O consumo da cocaína tem vindo a crescer e o de várias drogas sintéticas também. Continua a existir muito a venda dos chamados dealers, que têm os seus clientes.
A compra online é relevante?
A venda através da internet e darknet também é frequente.
Há quem venda em locais específicos?
Sim, uns vendem em locais específicos, em estabelecimentos comerciais. E também junto às escolas.
Há atualmente muito tráfico junto às escolas?
Não é uma situação generalizada, mas, infelizmente, tem havido situações. Embora quer a PSP quer a GNR tenham vindo a fazer um trabalho exemplar com o programa Escola Segura, vão surgindo algumas situações em que nas imediações das escolas há a venda desse tipo de drogas. São casos a que naturalmente as autoridades dão uma grande prioridade.
No início do ano, a Comissária Europeia dos Assuntos Internos disse estar preocupada com a utilização de cada vez mais crianças pelas redes de tráfico de droga. Vê esse fenómeno em Portugal?
Há alguns países europeus que, de facto, têm vindo a registar essa tendência. Em Portugal temos notado algumas situações, mas não tem uma expressividade que eu considere de maior relevância.