“Todos os dias alguém morria, eram levados, torturados e voltavam moribundos". A odisseia de Oleksandr, prisioneiro de guerra no Donbass

12 jun 2023, 07:00
Olexandr

Era conhecido dentro das estruturas de apoio ao exército ucraniano como alguém capaz de arranjar fardas militares em grande quantidade e a um preço barato. Estava a ajudar a completar uma missão no verão após a guerra no Donbass começar, quando se enganou no caminho e acabou dentro de uma prisão separatista em Donetsk. “As torturas começaram logo no primeiro dia quando perceberam que eu não iria colaborar", conta em entrevista à CNN Portugal

As repentinas trocas de posições nas linhas da frente nos subúrbios de Donetsk, no leste da Ucrânia, não permitiam que Oleksandr distinguisse o território aliado do inimigo, por isso avançou. Quando foi mandado parar por militares separatistas, recorda-se, agarrava firmemente o volante de um Opel Omega ao mesmo tempo que olhava “com algum nervosismo” para a amiga “bonita e arrojada” que estava com ele no banco do pendura. Perguntaram-lhe o que fazia ali e o primeiro instinto foi repetir uma história que já tinha ouvido da boca de outros voluntários de Kiev que transportavam mantimentos para as forças que combatiam na guerra do Donbass, no verão de 2014. “Quando reconheci as insígnias no uniforme deles, menti e disse que estava a transportar a minha mulher de Mariupol para Dnipro, o que naquele tempo era uma migração muito comum na Ucrânia e aquela estrada fazia parte desse percurso”.

Os militares pediram a ambos para sair do veículo e revistaram-no. No porta-bagagens encontraram várias malas carregadas com comida, fardas militares e, em cima deles, um conjunto de bandeiras ucranianas. O azul e amarelo foi o suficiente para “mudar o tom da conversa”. “Apontaram-me uma metralhadora à cabeça e taparam-me os olhos com uma venda”, conta, acrescentando que conseguiu apenas ouvir a rapariga que estava com ele a ser levada à força e, minutos depois, disparos ecoavam por todo o lado. “Só os ouvia a gritar comigo: ‘O que achas que lhe aconteceu? Queres ser o próximo? Queres ser tu a seguir?’”.

Oleksandr, que hoje tem 39 anos, foi um dos organizadores locais de manifestações de apoio à revolução Euromaidan, uma série de protestos populares desencadeados pela rejeição de acordos que aproximariam a Ucrânia à União Europeia e que culminaram na demissão do ex-presidente Víktor Yanukóvytch, tido como muito próximo do regime de Putin. 

Em abril de 2014, enquanto Oleksandr estava a trabalhar numa empresa que fornecia segurança através de mecanismos GPS para carros de luxo, separatistas armados com o apoio da Rússia tomaram o controlo de edifícios governamentais ucranianos, proclamaram as repúblicas de Donetsk e Luhansk (RPD e RPD) como entidades independentes e desencadearam um conflito violento com o governo de Kiev. 

Em Odessa, cidade onde nasceu e a partir de onde falou com a CNN Portugal, Oleksandr estava a começar a ganhar nome junto das equipas de voluntários que apoiavam o exército ucraniano. Era conhecido como alguém que conseguia localizar e comprar a bom preço materiais de apoio logístico para os militares. E frequentemente era em Kharkiv que encontrava os melhores negócios. “Uma vez cheguei a comprar e transportar 100 quilos de uniformes militares em segunda mão, como casacos, calças, botas”. 

 

Oleksandr (primeiro à esquerda) numa das reuniões de preparação das manifestações de apoio à Euromaidan/ D.R

Foi numa dessas viagens, pouco tempo depois da Batalha de Ilovaisk, um feroz confronto militar entre as forças de Kiev e separatistas apoiados pelo Kremlin que resultou em perdas muito significativas para o lado ucraniano, que, a 7 de setembro de 2014, dois voluntários se enganaram no caminho. Ele e uma jovem que tinha conhecido na sua cidade natal. “Era mesmo destemida, juntos participámos em situações muito perigosas em Odessa, quando o Euromaidan terminou em Kiev, tudo estava apenas a começar em Odessa”, afirma, confessando que ainda me sinto culpado por aquilo que aconteceu, “mesmo sabendo que ela entendia os riscos envolvidos”.

“Partimos para essa missão e sabíamos que a situação nas linhas da frente não estava muito estável e constantemente em mudança. Todos os dias mudava, ontem era nosso território, hoje já não e, naquele dia, o que aconteceu foi que conduzi até uma posição que já não era nossa”, continua.

Oleksandr foi levado para uma câmara minúscula na cave do número 62 da rua Schorsa, no centro de Donetsk, um edifício onde hoje estão sediados os Serviços de Segurança Nacional da autoproclamada República Popular de Donetsk. Conta que dividia o espaço com dezenas de outros prisioneiros e que muitos acabaram por morrer, ali, aos seus pés vítimas dos constantes espancamentos dos guardas “numa pequena cela onde era impossível deitarmo-nos”.

“As torturas começaram logo no primeiro dia quando perceberam que não iria colaborar. Disparavam balas a centímetros da minha cara e atiravam-me com outros objetos, tudo aquilo que conseguiam encontrar era uma arma. Partiram-me costelas e outros ossos. Durante a primeira semana, quando as torturas eram mais terríveis, houve uma vez em que olhei para os meus genitais e reparei que tinham uma cor preta sólida e estava num tal estado emocional que a minha única resposta a isto foi uma observação do género ‘que surpresa, nunca achei que podiam ficar assim’”.

Apercebeu-se de uma coisa rapidamente. O interrogatório não ia envolver mais nenhuma pergunta. “Lembro-me de ser interrogado, talvez pela terceira vez, e eles começaram a bater-me, mas sem falar comigo, sem me questionar sobre nada. Quando deixei de ter forças para aguentar o espancamento, implorei-lhes que me fizessem qualquer pergunta. Quando estás a ser espancado e respondes a perguntas, é uma oportunidade para descansar um instante e recuperar alguma força”.

Uma das primeiras celas por onde passou, uma espécie de cave por baixo das escadas, refere, “tinha uma largura de 80 centímetros. “Todos os dias alguém morria, eram levados, torturados e voltavam moribundos. A única forma de dormir era sentado, mas por causa de todas as lesões não me conseguia sentar”.

Entre os guardas e os funcionários que, rotineiramente, se embebedavam, invadiam as celas e “atacavam toda a gente a torto e a direito”, há dois que Oleksandr confessa não esquecer. Conhece-os apenas pelo apelido. “Um era conhecido como yozhik - ouriço, em russo - era um tipo pequeno, mas muito violento e sádico, mas o mais terrível era o mineiro, ele era o chefe daquela prisão e era ele que dava as ordens para as torturas que sofríamos”.

Numa dessas noites, em que não conseguia adormecer por causa das dores, Oleksandr ouviu alguém a gritar insistentemente. Primeiro os sons pareciam vir da rua, mas alguns minutos depois, voltava a ouvi-los mais próximo de si. Entre o sofrimento, distinguiu umas palavras: ‘sou conhecido do Zakharenko, parem’, dizia a voz, referindo-se ao então presidente e primeiro-ministro da autoproclamada República Popular de Donetsk que foi assassinado em 2018 numa explosão dentro de um café. “Essa pessoa acabou por morrer depois de espancada por guardas e nos dias seguintes o chefe da prisão, tal como praticamente a equipa toda, foi substituída”. 

Oleksandr esteve um ano detido naquele complexo. Tentou fugir uma vez, mas foi apanhado pelos guardas. Era também, conta, muitas vezes obrigado a trabalhar vários dias em plena frente de batalha em Donetsk, o que lhe causou graves ferimentos. “As minhas pernas começaram a falhar. Estavam ambas muito inchadas. Passado algum tempo, não conseguia pisar o meu pé direito. Estava constantemente a sentir tonturas porque o pus começou a entrar na minha corrente sanguínea. Quando já não conseguia andar, levaram-me até um médico que também estava preso, que, para me operar, cortou-me a perna até ao osso. Tudo dentro da cela. Depois dessa operação um guarda levou-me a um hospital onde lhe disseram que precisava de cuidados médicos constantes”. 

Oleksandr diz que essas recomendações foram ignoradas, porque os guardas daquele complexo prisional precisavam de mão de obra para os trabalhos mais ‘sujos’. No final de fevereiro de 2015, cerca de um mês depois do Aeroporto de Donetsk ter sido destruído durante combates entre as forças separatistas e os militares de Kiev, o ucraniano foi enviado para aquela zona para recuperar cadáveres que viriam a ser entregues às famílias. “Por um lado, era uma honra poder prestar um último tributo aos soldados mortos e às suas famílias, mas, como se pode imaginar, não nos foi fornecido equipamento apropriado para lidar com a falta de segurança no local, onde havia muitos explosivos por detonar por baixo dos destroços”.

Estava em sério risco quando recebeu a notícia de que iria ser libertado numa operação de troca de prisioneiros, que aconteceu a 27 de agosto de 2015. 

Fotografia do grupo de prisioneiros libertados em agosto de 2015. Oleksandr é o segundo a contar da direita/ D.R

No vídeo, entretanto, publicado pela comunicação social ucraniana, Oleksandr aparece de jeans e com um polo azul a sair de um carro encarnado do corpo de oficiais do exército de Kiev. Os primeiros minutos em liberdade mostram-no a pedir um cigarro a um dos militares, antes de pousar para uma fotografia de grupo. Sorri ao entrar com os outros doze prisioneiros numa camioneta até casa. Quando lá chegou, foi recebido pelos familiares também com uma notícia. A mulher que viajava consigo no carro no verão em que tinham sido levados por militares separatistas tinha fugido há seis meses da prisão onde foi colocada e estava de volta a Odessa.

Os amigos dizem que ele emagreceu demasiado durante aquele tempo, o que se torna evidente numa das primeiras fotografias que deixa que lhe tirem. Está à beira-mar, de calções de banho, numa praia na localidade de Hrybivka. Um ano a seguir, decidiu avançar com um processo de indemnização por danos físicos e morais no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos contra a Rússia. O caso está, neste momento, parado por causa da invasão russa de 24 de fevereiro de 2022, explica o ucraniano.

No ano passado, quando as bombas caíram em Odessa, Oleksandr diz que nunca se assustou, estando já “demasiado familiarizado com os sons da guerra”. Regressou àquilo que diz saber fazer melhor, pegou no carro e começou a realizar viagens. Uma das suas mais recentes missões foi a Mykolaiv, quando era uma das frentes mais ativas da guerra, para entregar capacetes, armaduras e fardas. 

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