Enviar grávidas para o privado é uma "alternativazinha perversa, mas sempre é melhor do que andar de maternidade em maternidade". É mesmo melhor?

3 jul 2023, 18:00
Gravidez (Pexels)

PAÍS Diz quem anda no terreno que a capacidade de resposta no privado é limitada, em especial nos casos mais complexos - como os de bebés prematuros. E há este detalhe: “Os privados já têm os seus problemas e na região de Lisboa não esticam”. E há quem acrescente um outro detalhe: "As grávidas preferem ser seguidas no serviço público". Mas eis um facto: independentemente destas e de outras considerações, a transferência de grávidas para o privado está em curso

A medida foi aplicada mais cedo do que o esperado: antevia-se que apenas com o verão em pleno, e os normais constrangimentos nos blocos de obstetrícia e ginecologia, as grávidas pudessem ser transferidas para o setor privado no momento do nascimento do bebé. Mas este domingo deu-se a primeira transferência: uma grávida de baixo risco acompanhada no hospital de Santa Maria, em Lisboa, foi transferida devido a “constrangimentos na escala clínica”.

“A transferência para o setor privado não devia ser apontada como a primeira solução. Costuma dizer-se que há erros que não se pedem, evitam-se. É o caso”, argumenta Joana Bordalo e Sá, presidente Federação Nacional dos Médicos (FNAM), lembrando que existiriam na área de Lisboa outras alternativas ao privado dentro do próprio serviço público.

Os médicos ouvidos pela CNN Portugal concordam que esta não deveria ser a solução. A prioridade, apontam, estaria no difícil e desejado reforço de profissionais no Serviço Nacional de Saúde (SNS), bem como na melhoria das condições de trabalho.

Mas enquanto isso não chega, diz Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), enviar grávidas para o privado é uma “alternativazinha”. “É perversa porque demonstra a incapacidade do SNS, mas para a grávida sempre é melhor do que andar de maternidade em maternidade”, concretiza.

E isso é sinónimo de maior tranquilidade para as grávidas? Pode não ser, segundo Joana Bordalo e Sá. “Tenho um alto grau de incerteza em relação a isso. Nesta área, o SNS é sempre das primeiras hipóteses, as grávidas preferem ser seguidas no serviço público porque confiam nas equipas”. Todavia, se no momento decisivo do parto se veem nas mãos de outros profissionais, diz, isso pode ser motivo adicional de ansiedade.

Novas medidas, o caos de sempre?

Será que este complemento na resposta do SNS às grávidas durante o verão permite inverter o cenário de caos que se verificou no ano passado? Os médicos descartam esse cenário. “A situação vai piorar em vez de melhorar. Não há nenhuma indicação que nos faça sentir que isto vai melhorar”, antecipa Jorge Roque da Cunha.

Até porque a capacidade de resposta no privado é limitada, em especial nos casos mais complexos, como de bebés prematuros, acrescenta Nuno Clode, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno Fetal (SPOMMF). “Pela minha experiência, há muitas grávidas que queriam ir para o SNS mas que desistem e optam pelos planos de seguro porque o SNS não lhes dava essa segurança [sobre o local do parto]”, refere à CNN Portugal.

Para Nuno Clode, o que se espera é uma “repetição do ano passado”, “independentemente” da entrada do privado nesta equação. “Os privados já têm os seus problemas e na região de Lisboa não esticam”, junta.

Porque chegámos a este ponto: “conflito e falta de democracia interna”

“Se houvesse mais médicos no SNS não tínhamos chegado a este ponto. Sai muito mais caro esta transferência para o setor privado”, lamenta Joana Bordalo e Sá. Estes profissionais voltam esta semana às negociações com o Governo. Mas as expectativas são muito contidas, tendo em conta longos meses sem avanços.

O cenário mais preocupante está no Santa Maria, devido à demissão dos chefes de equipa de urgência de obstetrícia e ginecologia (em causa está o encerramento do serviço de obstetrícia devido às obras de beneficiação da maternidade) e à recusa dos profissionais em fazerem mais horas extraordinárias – o que torna mais difícil gerir as escalas nos blocos de partos.

“Chegamos a este ponto porque há conflito e falta de democracia interna. Apesar da falta de pessoal, os médicos estavam disponíveis para resolver as coisas e encontrar soluções. De repente, veem os líderes exonerados e mudam de atitude, apoiando-os”, descreve Joana Bordalo e Sá.

Já Jorge Roque da Cunha lembra que o problema é antigo mas que as saídas de milhares de médicos - seja por rescisões ou reforma, aliado ao facto de estes profissionais estarem cansados e já não aguentarem fazer “300, 400, 500 horas extraordinárias” - só deixam mais evidente a rutura iminente da resposta do SNS.

A CNN Portugal conseguiu confirmar que a a grávida que foi transferida este domingo do Santa Maria encontra-se no Hospital da Luz, que não tem registo de outros casos. Foram contactados os grupos CUF e Lusíadas, numa tentativa de perceber se existiram outras situações de grávidas transferidas pelo SNS, mas não foram obtidas respostas até à publicação deste artigo. Também o Ministério da Saúde foi contactado neste sentido, sem qualquer esclarecimento até ao momento.

Entretanto o diretor interino do serviço de obstetrícia do Santa Maria confirmou que uma segunda grávida foi transferida já esta segunda-feira para um hospital privado, recusando-se a revelar qual o destino.

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