Estamos mais interessados no Titan do que na “pior tragédia de sempre no Mediterrâneo"? “A vida de uma pessoa famosa não vale a mesma coisa do que a vida de 100 crianças"

22 jun 2023, 18:00
Barco de migrantes que naufragou na Grécia (Hellenic Coast Guard via AP)

O mundo parou para acompanhar o resgate do Titan, o submergível que desapareceu quando fazia uma expedição aos destroços do Titanic. Dias antes, um barco pesqueiro naufragou no Mediterrâneo e podem ter morrido mais de 500 pessoas. O que pode explicar a diferença de atenção entre os dois acontecimentos? Além dos fatores sociológicos, destaca-se o alerta: “As pessoas estão despidas de humanidade”

Um barco de pesca que teria mais de 750 migrantes a bordo, entre eles mais de 100 crianças, naufraga ao largo da Grécia. Foi a 14 de junho e é agora classificado como "a pior tragédia de sempre no Mediterrâneo". Uma tragédia separada por poucos dias do desaparecimento de um submersível com cinco pessoas no Atlântico Norte, ao largo do Canadá. O interesse mediático, mas também o interesse do público, rapidamente se transferiu de um acontecimento para o outro. Porquê?

“Há vários fatores que contribuem para esta diferença de interesse. A questão da novidade é certamente um deles e notoriedade dos protagonistas também. E, infelizmente, as pessoas que morrem no Mediterrâneo não são conhecidas.  Os náufragos do Mediterrâneo não são conhecidos. São invisíveis”, lembra o sociólogo Manuel Lisboa, da Associação Portuguesa de Sociologia.

A visão do especialista é partilhada por Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal. O ativista dos direitos humanos lembra que “o facto de ser um submarino, da novidade científica, de estar associado ao Titanic e até de ter o nome de Mário Ferreira envolvido, ainda que indiretamente”, pode ajudar a explicar o interesse maior da opinião pública pelo desaparecimento do Titan. “Gostava era que todos os naufrágios merecessem a nossa atenção e, se calhar, não haveria tantos”, sublinha.

“Como ser humano, interessado na dignidade dos direitos humanos, qualquer pessoa que esteja em dificuldades tem de ser ajudada. Entendo que toda a ajuda seja dada àqueles milionários que estão em dificuldades no Mar do Norte. Gostava é de ver a mesma atenção dada às pessoas que morrem todos os dias no Mediterrâneo. Não estou a dizer que devemos abandonar os náufragos do submarino, longe disso. Mas gostava de ver um tratamento igual”, reforça Pedro Neto.

“Bulimia do capitalismo”

A psicóloga Isabel dos Santos, habituada a estudar o efeito de catástrofe na saúde mental, defende que esta diferença de atenção entre os dois acontecimentos reflete o estado em que se encontra a humanidade. A especialista considera que estamos cada vez mais “plásticos”.

“A vida é medida de uma forma muito capitalizada. A vida de uma pessoa famosa não vale a mesma coisa do que a vida de 100 crianças. Acho que as pessoas estão despidas de humanidade. É a bulimia do capitalismo. As pessoas têm os guarda-fatos a abarrotar de roupa, mas estão nuas por dentro”, sublinha Isabel dos Santos, que também faz psicologia clínica e que todos os dias atende pessoas com “cada vez menos empatia”.

O fator egocentrismo, defende, leva “as pessoas a procurarem a tristeza dos outros para colmatar a própria tristeza interior”. E as cinco pessoas a bordo do Titan "têm um rosto e uma identidade vitrínica". "São conhecidos. Dá a ilusão de que são mais próximos de cada um de nós”, responde.

Isabel dos Santos alerta ainda que “a falta de empatia pelo outro” também motiva que esta dualidade entre dois acontecimentos tão similares e ao mesmo tempo tão diferentes se tem vindo a agravar: “Muito, muito, muito. E depois da pandemia, posso dizer-lhe que as pessoas estão muito piores.”

Outros interesses

O sociólogo Manuel Lisboa destaca que a comunicação social tem a sua quota parte de culpa nesta diferença de interesse do público pelos dois assuntos. “Sabemos bem que uma parte do interesse do público também é feito pelo interesse dos jornalistas sobre os assuntos. E depois há ainda a questão da agenda mediática do momento: se o facto acontecer numa altura em que há outro facto mediático mais relevante terá uma menor cobertura jornalística e, logo, vai suscitar também menos interesse no público”, explica.

“E há que o assumir: há uma agenda social de quem domina os órgãos de comunicação social. A questão das pessoas que têm morrido no Mediterrâneo não é neutra do ponto de vista económico, do ponto de vista político, do ponto de vista diplomático e isso tem a sua influência”, aponta também.

A diferença de meios nas buscas

Outra questão que tem sido levantada é a diferença de meios empregues nas operações de busca no Mediterrâneo e no Atlântico Norte.

O naufrágio do pesqueiro ao largo da Grécia pode ter feito mais de 500 mortos. Os números oficiais ainda só identificaram 82 mortos. Mas, ao todo e segundo as últimas estimativas, estariam no barco cerca de 750 pessoas, sendo que perto de 100 seriam crianças, fechadas no porão do barco. A Guarda Costeira da Grécia continua à procura de sobreviventes no local, a sudoeste de Pylos. Nas operações participam uma fragata e três veleiros, sendo que 104 pessoas foram já resgatadas com vida.

Vários navios com tecnologia avançada foram colocados ao dispor das buscas pelo submersível Titan. Um desses veículos é um robô francês capaz de descer aos seis mil metros e que tem vários equipamentos que podem ser cruciais na missão. Nas buscas pelo submersível, participam ainda aviões militares.

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