Afeganistão: Passou um ano e passaram muitos mais

15 ago 2022, 19:31

Passou um ano sobre a retirada do Afeganistão. Mesmo quem não se interesse muito por este tipo de questões recordará o ambiente confuso, os milhares de pessoas que acorreram ao aeroporto de Cabul na esperança (quase sempre vã) de poderem deixar o território. Muitos sabiam que, afastando-se ao longe o último avião, o seu destino estava traçado. Se fosse mulher, muito pior. Porque não se trataria de uma questão de vingança quanto a uma qualquer colaboração com os “invasores”, mas antes de uma vingança perpétua do novo regime contra os seres femininos.

Deixaram-se para trás muitos dos que nos apoiaram no sonho de um Afeganistão mais livre, mais democrático, desenvolvido e com mais respeito pelos direitos humanos. Hoje, ou foram mortos, ou detidos, ou torturados, com as exceções que vão sendo contadas sobre este ou aquele que conseguiu fugir do território.

Esta é, no entanto, uma história muito mais antiga. Joe Biden não a inventou: quando muito, não conseguiu arranjar-lhe um final feliz. Houve uma avaliação sobre porque é que houve tantas coisas a correrem mal em agosto do ano passado, ao ponto de alguns falarem da queda de Cabul como uma nova queda de Saigão, em 1975? Houve a tal accountability, cuja falta tantas vezes nos é atirada à cara como problema congénito? Não, fez-se o possível por seguir adiante o mais depressa possível e, entretanto, começou a crise e depois guerra ucraniana, e a vida continua, não é?

“Este” Afeganistão dos talibãs surge dos destroços da guerra contra o invasor soviético, começada em finais dos anos 70 do século passado e acabada mais ou menos dez anos depois. Muitos dos líderes talibã que depois estiveram envolvidos na guerra civil que a seguir se iniciou tinham combatido antes contra os soviéticos, e eram-nos simpáticos – segundo o princípio, mais do que discutível e muitas vezes imoral, de que o inimigo do meu inimigo meu amigo é.

Início dos anos 90? Tínhamos mais com que nos ocupar, porque em 1990, também no mês de agosto, Saddam Hussein, um que antes tinha sido nosso grande amigo e o “nosso homem” na região, decidiu invadir e anexar o Kuwait. Em janeiro de 1991, começou a segunda Guerra do Golfo, depois da primeira, entre 1980 e 1988, que opôs o Iraque ao Irão e causou muitas centenas de milhar de mortos. Na primeira Guerra do Golfo, também foi o “nosso homem” a começar, mas, na altura, Khomeini representava o mal absoluto e Saddam era quem tínhamos à mão. O Iraque foi derrotado, e restabelecida a soberania e independência do Kuwait. Mas a história, como se viu com nova guerra contra o Iraque em 2003, estava longe de concluída.

Não demasiado longe, no Afeganistão, os talibãs ganharam a guerra civil.

Representantes de uma certa identidade pashtun, tiveram a força militar e a capacidade de sedução suficiente para porem do seu lado a maioria da população. Com um radicalismo quantas vezes cruento e absurdo, fizeram a sua interpretação do Islão e aplicaram-na sem dó nem piedade a todos os que ousassem resistir. Execuções sumárias, lapidação de mulheres “culpadas” de adultério ou de qualquer outra coisa (os homens não pecavam, ou pecavam menos, porque só a mulher era, afinal, diabólica), uma brutalidade que, por exemplo, proibiu a música e até o chilrear dos pássaros dentro de uma gaiola.

Fomos tendo os sintomas todos de que dali, daquele regime, podiam vir problemas sérios. Mas, não ligámos, desde logo que não tínhamos alternativa em que quiséssemos investir. Depois de a Al-Qaeda ter reivindicado os atentados brutais de 1998 contra as embaixadas dos Estados Unidos em Nairobi (Quénia) e Dar-es-Salam (Tanzânia), Bill Clinton encheu-se de brios e bombardeou Cabul e Cartum, os dois países que, principalmente, dariam santuário aos terroristas.

O Conselho de Segurança também adotou várias resoluções ao abrigo do Capítulo VII, achando (com razão) que o regime talibã punha em causa a paz e segurança internacionais com o seu comportamento. Mas, de facto, penso às vezes que houve mais comoção com a destruição (bárbara) dos Budas de Bamiyan à canhonada do que com as violações de direitos humanos que estavam perante os nossos olhos.

Só que, entretanto, aconteceu o 11 de setembro. Aí, os talibãs deixaram de ser uns selvagens cruéis e exóticos para personificarem o pior ataque que foi lançado contra o território norte-americano. Sob qualquer perspetiva, e, mais especificamente, sob um critério de gravidade dos efeitos, os ataques do 11 de setembro foram equivalentes a uma agressão. O Conselho de Segurança aceitou o direito de legítima defesa dos Estados Unidos e, por isso, tratava-se apenas de encontrar o agressor. Sim, o agressor. Porque, não tendo o ataque sido reivindicado, estávamos perante um cenário impensável: já no séc. XXI, o país de longe tecnologicamente mais evoluído, a grande potência militar e política, não sabia quem a tinha atacado.

O resto da história é conhecido. Acasalámos juridicamente a Al-Qaeda e os talibãs, porque nos pareceu impossível que uns barbudos quaisquer pudessem ter uma tal capacidade e inteligência para fazer o mal, achando, por isso, que tinham de ter agido a mando de um governo. Fomos para a guerra, começada a 7 de outubro de 2001, descobrimos a teoria dos dois conflitos (um contra o Estado, outro contra o terrorismo), ganhámos a guerra e pusemos a andar dali para fora, conta a lenda que em cima de um burro, o Mullah Omar, líder do Afeganistão desde 1996. O mesmo líder dos talibãs que não sabemos quando nasceu, e mesmo a Enciclopédia Britânica o põe a vir a este mundo algures entre 1950 e 1962.

No Afeganistão, vencido militarmente muito mais facilmente do que alguns vaticinavam, foi-se percebendo, e depois percebeu-se de cátedra no Iraque, invadido em 2003, que ganhar a guerra era fácil: o pior começava depois.

No Afeganistão, os gastos foram astronómicos, e, só para os Estados Unidos e só no plano militar (custos diretos e indiretos, isto é, incluindo juros e as despesas com veteranos e feridos durante o conflito), calcula-se que a conta ultrapasse, entre 2001 e o momento da retirada, 2,3 bilhões de dólares. Ou seja, 2,3 milhões de milhões de dólares. Para se ter uma ideia, o financiamento dos Estados Unidos ao esforço da Ucrânia é colossal, mas parece ridículo (50 mil milhões de dólares) comparado com a sangria afegã: 46 vezes menos. No seu clímax, em 2011 (e não contando com forças de operações especiais ou forças temporárias), os Estados Unidos tinham mais de 110.000 militares no Afeganistão.

Vinte anos de presença no Afeganistão, e quase não deixámos marca. Treinámos e equipámos com o melhor que há as forças armadas e policiais afegãs, e foi só anunciar a retirada: aquilo que pensávamos ser uma transição ordeira foi uma derrocada que foi ganhando velocidade a cada hora que passava e, de repente, percebeu-se que aqueles que eram os “nossos” tinham deposto as armas e entregue todo o equipamento aos senhores afegãos, que regressavam ao poder depois de um “breve” interregno. Com magnanimidade, os talibãs comprometeram-se a entrar em Cabul mais cedo do que previam só para manter a ordem perante o caos reinante, e deram sinais de mais “modernidade” quanto aos direitos humanos e, em particular, aos direitos das mulheres. Foi chão que não deu uvas.

Seria importante que estas duas décadas afegãs nos fizessem pensar, mas não é nada certo que isso venha a suceder, a não ser em alguns think tank mais eruditos.

Hoje, de facto, o Afeganistão está ainda pior. A ajuda internacional representava entre 40 a 45 por cento do PIB afegão, e foi interrompida. Os depósitos do Banco Nacional afegão, na maioria no estrangeiro, estão congelados (cerca de sete mil milhões de dólares). Mais de metade das crianças afegãs estão gravemente subnutridas. Mais de 70% da população tem fome. Estamos, por isso, perante um dilema moral e político muito sério: desbloqueamos os bens e haveres afegãos, apesar dos talibãs? Voltamos a ajudar o Afeganistão como antes, para evitarmos uma catástrofe humanitária e uma pressão migratória brutal, em especial sobre o Paquistão? Podemos olhar para o lado quanto ao que o regime faz, e concentrarmo-nos na população que sofre?

Passaram quase vinte e um anos sobre o fim da guerra de 2001. Passou um ano sobre a retirada do território. Quanto mudámos na nossa forma de pensar, quanto aos nossos métodos e à forma de atingirmos objetivos? Essas, sim, são as perguntas e respostas importantes.

P.S. Portugal não ficou de fora deste esforço, e até por isso é devida uma reflexão sobre o que correu menos bem. Mais de 4500 militares estiveram envolvidos em missões de diferentes naturezas no Afeganistão, e pagámos o nosso preço em sangue. Em 2005, morreu o sargento dos Comandos João Paulo Roma Pereira na sequência de uma explosão que atingiu o blindado em que seguia, tendo ficado feridos mais três militares portugueses. E, dois anos depois, morreu outro militar português, Sérgio Pedrosa, naquele teatro de operações.

Colunistas

Mais Colunistas

Patrocinados