José Mourinho? Andá pa’ allá, andá pa’ allá

15 dez 2022, 21:21
José Mourinho foi expulso no Roma-Hellas Verona (Riccardo Antimiani/EPA)

«Quem é que defende?», o espaço de opinião de Sofia Oliveira no Maisfutebol

Há fenómenos que me emocionam mais do que outros. A vida é mesmo assim. Não é?

Por exemplo, a minha avó emociona-se muitíssimo sempre que é capaz de me convencer a comer qualquer um dos seus preparados. Não me interpretem mal. Eu adoro todos os preparados da minha avó. A contrariedade, aqui, é que, para a minha avó, eu estaria sempre a comer. Portanto, sendo mais rigorosa e completa, a minha avó emociona-se muitíssimo sempre que é capaz de me convencer a comer qualquer um dos seus preparados, quando eu, à primeira tentativa, digo: «Não, avó, obrigada. Almocei há dois minutos e meio.»

Eu, por outro lado, no que toca a emoções, não elevo tanto a bitola para ficar com a lagriminha ao canto do olho. Tanto me emociono quando Sérgio Conceição empata ou perde e não é expulso pelo árbitro, como me emociono quando o Darwin acerta duas acções consecutivas entre linhas.

Foi por culpa desta minha destreza a emocionar-me que me emocionei com a criação do barómetro que atesta a competência ou a falta de competência dos comentadores de futebol. É verdade, amigos. Finalmente, hã? O aparelho veio de Marrocos e chama-se Azzedine Ounahi. Curiosidade: a pessoa que o apresentou ao Mundo não sabia que ele existia.

Vá, vamos lá falar a sério. Então, Luis Enrique, ex-seleccionador espanhol, aquando da eliminação da Espanha nos oitavos-de-final do Mundial do Catar, precisamente às mãos de Marrocos, carregou de elogios «o número 8» da equipa adversária. «O número 8», como Luis Enrique lhe chamou por não se recordar do nome dele, era Azzedine Ounahi, médio de 22 anos, agora ao serviço do Angers, último classificado da Ligue 1. «¿De dónde ha salido ese muchacho?», perguntou na conferência de imprensa. Lá está, visivelmente emocionado. O que Luis Enrique não sabia é que, com essa questão, havia dividido o cenário do comentário desportivo em duas facções: a dos comentadores competentes, na qual constam todos aqueles que, ao contrário do ex-seleccionador espanhol, conheciam Ounahi; a dos comentadores incompetentes, no qual constam todos aqueles que, tal como o ex-seleccionador espanhol, não conheciam Ounahi.

Por que é que este episódio devia ter sido escrito pelos Gato Fedorento? Porque muitos dos que ocuparam a facção dos comentadores competentes foram lá parar por via de um trunfo que descartam até à exaustão: «Um comentador não pode saber mais do que um treinador». Delicioso. Mas o episódio melhora.

No dia em que a hipótese de Fernando Santos poder abandonar o cargo de seleccionador nacional ganhou força, o nome de José Mourinho foi tido como o favorito para a sucessão. E é em dias como esses que eu acho que a minha emoção fica mais perto de tocar na emoção que a minha avó sente sempre que é capaz de me convencer a comer qualquer um dos seus preparados, quando eu, à primeira tentativa, digo: «Não, avó, obrigada. Almocei há dois minutos e meio». Reparem: andam para aí seres humanos que classificaram de comentadores competentes aqueles que conheciam Azzedine Ounahi, mas que intitulam de comentadores incompetentes aqueles que veem as equipas de José Mourinho jogar e que, por isso, não querem que José Mourinho seja o sucessor de Fernando Santos. Vocês são tão divertidos.

De facto, há um ponto de ligação entre a coroação dos vossos comentadores competentes e a coroação de José Mourinho. Em ambos os casos, os coroados, em algum momento dos seus percursos, chegaram ao topo descartando as suas convicções. Os comentadores competentes tornaram-se competentes quando fingiram que nunca defenderam que um comentador não pode saber mais do que um treinador e José Mourinho foi competente quando fingiu que nunca defendeu que «numa equipa, para jogar um futebol de controlo e um futebol de posse de bola, é sempre mais importante um super-jogador do ponto de vista técnico que um jogador que marca golos. Se uma equipa está dependente de um jogador que marca 20 ou 30 golos numa época e se o jogador se encontra num momento difícil, as coisas não serão fáceis» (Mourinho, 2008).

Dois anos depois, no Real Madrid, a lesão de Higuaín e a seca de golos de Benzema levou Mourinho a resgatar Adebayor ao Manchester City por empréstimo. Dois anos depois, vimos Pepe integrar o meio-campo de um treinador que outrora nos ensinava que, nessas posições, «não me agrada um jogador que destrói o jogo do adversário. Muitos pensam que o jogador mais posicional à frente da linha defensiva deve ser um jogador muito defensivo. Eu não penso assim. Penso que esse jogador deve ser um jogador com boa capacidade para jogar a bola, com qualidade, com visão, com tranquilidade, para ser quase como o homem que inicia a construção de jogo nessa zona» (Mourinho, 2008).

Há fenómenos que me emocionam mais do que outros. A vida é mesmo assim. Não é?

Mourinho mudou a partir do terceiro ano do Chelsea. Não mudou porque deixou de ser competente, mas porque passou a conceber o seu jogo de maneira diferente. As Ligas dos Campeões que não venceu em 2004/05 (meias-finais) e 2006/07 (meias-finais) por pormenores, venceu em 2009/10, pelo Inter, trocando o culto da posse pelo culto pelo espaço, abdicando da iniciativa de jogo, defendendo o melhor que podia, atacando pela certa e rezando pela inspiração dos seus avançados ou pelos erros dos adversários. Nada contra, mas esta podia ser a descrição da conquista de Fernando Santos no Europeu de 2016.

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