O sofrimento escondido da rainha, os bastidores das viagens reais e as gafes do protocolo. O dia a dia da rainha mais famosa do mundo

10 set 2022, 19:05
O momento em que a BBC tocou o hino britânico em homenagem a Isabel II

José Bouza Serrano, embaixador e antigo chefe de protocolo do Estado que organizou a vinda dos filhos de Isabel II a Portugal, vai lançar uma biografia da rainha, que conheceu, já na terça-feira. À CNN Portugal, numa entrevista, recorda alguns episódios que marcaram um reinado que durou 70 anos

Tem estudado as várias monarquias e até já escreveu um livro sobre o tema. O que distinguia a rainha Isabel II?

Ela possuía um carisma especial. Era uma mulher única, irrepetível com um sentido de serviço ao seu povo e à coroa. E tinha a qualidade de ter sido sagrada.  A rainha Isabel II foi consagrada com os óleos santos.

Foi ungida?

Sim, foi ungida e mais nenhum chefe de Estado é ungido. Mas essa parte nunca foi transmitida na televisão. Aliás, na época, em 1953, o Winston Churchill não queria que a cerimónia na abadia de Westminster fosse transmitida na televisão, nenhuma cerimónia o tinha sido até então. Mas o príncipe Filipe, que era todo moderno, insistiu muito para que todos pudessem ver pela televisão. Foi a primeira vez que isso aconteceu e a partir daí todas as cerimónias de sacramento foram transmitidas pela televisão, como os casamentos dos filhos da rainha. Nessa primeira cerimónia, o Arcebispo de Canterbury não quis que a parte unção fosse filmada.

Então essa parte foi mais reservada?

Sim. Puseram uma veste branca à rainha e foi ungida com a cruz. É a parte religiosa da cerimónia e uma tradição britânica. E dava-lhe uma relação especial com Deus. A rainha Isabel II via a função dela e a sua natureza como uma ligação a Deus. Por isso, nunca iria abdicar, pois via o seu papel como uma ligação a Deus, obrigação de cumprir uma missão na terra.

Chegou a conhecer a rainha?

Sim, estive com a rainha Isabel II duas ou três vezes. Mas a primeira vez que a vi eu tinha seis anos.

Viu-a onde?

Via-a passar na carruagem, no Rossio, quando ela veio cá a Portugal em 1957. Fomos para a rua ver. Foi marcante. Mas nunca imaginei que anos mais tarde a viesse a conhecer, nem que fosse eu a organizar a vinda dos filhos dela a Portugal.

Foi muito difícil organizar as visitas dos filhos da rainha?

São sempre visitas mais complicadas do que a dos republicanos.

Lembra-se de alguma situação em concreto?

Naquela altura, em 1979, a princesa Ana, por exemplo, não andava em Mercedes Benz pois era um carro alemão e não podia; eles ligavam muito a isso. Também não davam autógrafos. Um dia, um presidente de câmara pediu-lhe um autógrafo e ela disse: “A rainha não nos deixa dar autógrafos“. Também não recebem as flores dentro de celofane, mas só nos bouquets e todas as cores usadas são combinadas. Todos têm uma ficha pequena com os dados biográficos das pessoas que vão encontrar. 

Na sua carreira diplomática esteve em vários países com monarquias…

Só estive em monarquias. Tive sorte. Comecei por Espanha, depois Bélgica, a seguir no Vaticano - que é uma monarquia eletiva - e fui representante na Ordem de Malta - outra monarquia eletiva. Depois, ainda estive como embaixador na Dinamarca e na Holanda.

E o que diferencia a monarquia inglesa de todas essas?

A inglesa acabava por ser um modelo para todas as outras. Era a mais poderosa em sentido de representação. As monarquias do norte da Europa são mais sóbrias e não têm tantos meios à disposição. Iam-nos buscar de coche para ir ao rei ou rainha, mas eram coches pequeninos. Já os ingleses são especialistas em decorar as cerimónias com pompa e ostentação. Isso ficou a dever-se ao rei Eduardo VII. A rainha Vitória não lhe ligava nenhuma e então ele tinha mais tempo para poder decidir tudo em relação aos uniformes, aos galões, às decorações.

E seguiam com rigor o protocolo? Como especialista em protocolo, como via a ação da rainha?

Sim, seguiam sempre. À mesa, com os convidados, a rainha começava sempre a conversar com quem estava à sua direita e só ao terceiro prato se virava para a esquerda. Não valia a pena a pessoa que estava à esquerda começar a falar com ela que ela não falava. O protocolo serve para ajudar.  Ela também tinha códigos que manteve com os ajudantes durante anos, como o das malas.

Como era esse código?

A forma como ela colocava a mala era sinal para eles saberem se ela queria acabar uma conversa ou fazer outra coisa qualquer.

Quais foram, para si, os piores momentos que a rainha passou ?

O mais difícil foi conciliar a sua natureza de chefe da Igreja Anglicana com as opções sentimentais da irmã e dos filhos que foram todos ao arrepio daquilo que ela gostava que tivesse acontecido. O divórcio, que era uma coisa que abominava. Começou pela irmã e depois os filhos e com o Príncipe de Gales foi ela que os convenceu a divorciarem-se depois dos escândalos todos. O Eduardo é o único casado.

Como é que a rainha foi lidando com esse assunto?

Com grande sacrifício, para tentar salvar a instituição. A questão sempre foi salvar a coroa e a monarquia, que esteve em crise muitas vezes.

E como define a relação da rainha com a princesa Diana?

A rainha Isabel II tentou muito. Mas a Diana não cumpria o que combinavam e ligava para a imprensa a contar.

E como acha que ela via o caso Harry e Meghan?

Ela teve imensas atenções com a Meghan. Levou-a, aliás, no comboio real, por exemplo, que não ia com as outras. A Meghan foi tomar chá com ela e os cães da rainha adoraram a Meghan, pois ficaram encantados à volta dos pés dela enquanto tomavam chá. Eu falo nisso no meu livro: a rainha sentiu uma certa atração pela Meghan. Mas ela e o Harry não souberam estar à altura das obrigações.

Na carta que escreveu no Jubileu,  Isabel II pediu que Camilla Parker-Bowles fosse rainha consorte. Isso foi essencial para estes momentos que estamos a viver agora?

A rainha teve a gentileza de resolver o problema da Camilla porque seria desagradável o príncipe estar a decidir em causa própria. Ela deixou resolvido quando disse que gostaria muito quando chegasse a altura – e chegou -  a Camila estivesse ao lado de Carlos como rainha consorte.

Com base no trabalho de investigação para o seu livro sobre Isabel II que vai lançar esta terça-feira, quais eram as caraterísticas mais vincadas da rainha?

Ela era muito sólida. E tinha uma grande disciplina. Como começou muito nova, o pai nem teve tempo de a ajudar a formar-se completamente. Ela viveu sempre com muita autodisciplina. E cumpriu a ideia de que os sentimentos não se revelam, só em grande intimidade, e que não há que tomar posições políticas. Há sim o reinar, que está por cima de tudo pois era a representação última de um Estado e de várias Nações.

Que disciplina era essa?

Ela tinha mesmo uma autodisciplina extraordinária e um espírito de sacrifício enorme. Há uma biógrafa da rainha que conta que quando tinha sete anos se levantava a meio da noite para ver se a roupa estava bem dobrada em cima da cadeira. Tinha um grande sentido de abnegação. O seu tio Eduardo XVIII, por exemplo, quando lhe entregavam as caixas vermelhas com documentos, abria e sujava tudo com as marcas dos copos de whisky. Já ela, a rainha Isabel II, fazia tudo impecavelmente, com um sentido de dever.

Há muitos episódios que revelam essa autodisciplina?

Antes de ser coroada, treinou imenso dentro do Palácio; andava com uns lençóis atados para sentir o peso do manto e fazer tudo corretamente. Era nova e a estatura era frágil para tanto peso do manto.

José Bouza Serrano vai lançar um livro sobre Isabel II na próxima terça-feira

Quantas vezes viu a rainha?

Vi-a em Ascot, em Londres e em Glasgow, quando foi Capital Europeia da Cultura, eu e o Pedro Santana Lopes fomos cumprimentá-la. Depois voltei a vê-la em Itália, na Ópera de Milão, onde ela estava no camarote com o príncipe. Nessa visita oficial, no dia seguinte houve uma exposição de design e quando estávamos todos à porta, pois íamos ser o grupo seguinte a entrar, ela chegou com o embaixador de Inglaterra, passou e baixou a cabeça para nos cumprimentar.

Conta tudo isso no seu livro?

Sim. O meu livro começa com a morte do príncipe Filipe e vai até ao Jubileu. Depois, há uma parte dedicada à rainha improvável pois ela era filha do Duque de Iorque, que não era o herdeiro natural, conto a coroação do pai, a abdicação do tio, a relação com a irmã, a descendência toda dela. E há também um capítulo sobre os anos mais recentes que se chama “a Plenitude dos tempos”.

Como era a relação dela com os filhos?

Adorava o Andrew e o que mais lhe custou foi retirar-lhe os títulos. Como manda a tradição tem de se ter um herdeiro e um substituto, e ela teve o Carlos e a Ana, mas decidiu ter mais dois e, no último, até convidou o príncipe Filipe para assistir ao parto.

E era uma pessoa que gostava de crianças?

Ela gostava muito dos netos. Mas há um frase da princesa Ana que fala sobre isso. Ela conta que quando o seu filho Peter nasceu, o primeiro neto da rainha, ela gostou imenso e levava-o de mão dada pelos corredores a mostrar-lhe os quadros todos. Mas depois a princesa Ana diz: “Achei estranho que ela não ligava muito a crianças”.

Um dos maiores gostos da rainha eram os cães e os cavalos.

Gostava dos cavalos e dos cães. Adorava quando os seus cavalos ganhavam as corridas. Ela teve 30 cães, todos descendentes da primeira cadela que o pai lhe deu. Quando o príncipe Filipe morreu, o André deu-lhe dois, mas um morreu. Ela não queria cães novos pois tinha medo de que, quando morresse, ficassem sem dono.

E continuava a ir às corridas de cavalos?

Este ano ainda foi a Ascot, mas o cavalo dela não ganhou. Ultimamente andava mais frágil, como se viu na última imagem dela apoiada num bastão muito grande para receber a primeira-ministra.

Nos anos de reinado lidou com 15 primeiros-ministros. Quais na sua opinião a desafiaram mais? Quais os mais difíceis de lidar?

Foi difícil com a Margaret Thatcher e o Tony Blair. A Thatcher não se interessava nada pela Commonwealth, que era a jóia da coroa para ela, pois era uma coisa que o pai tinha acarinhado muito. Já com Blair não gostou que ele tivesse inventado a expressão “princesa do povo” para a Diana. Além disso, ele quis reformar a Câmara dos Lordes e retirou títulos.

Acha que com Carlos III a coroa inglesa vai mudar muito?

Ele é diferente. E desde logo muda o hino. Mas vai tentar inovar. E vai também reduzir, sem dúvida, a família real.

De que forma é que a família real vai ser reduzida?

Já vimos que no Jubileu a varanda do Palácio de Buckingham já tinha menos gente.  A rainha tinha muitos primos mas o novo rei só tem dois primos direitos que não têm cargo nenhum. E entre os irmãos pode fazer seleção. A  Ana tem até morrer o título de princesa real que a mãe lhe deu.

E no que se refere aos outros irmãos o que será feito?

O agora rei Carlos III teve algumas pegas com Eduardo. Agora que a mãe morreu, ele devia dar-lhe o título de Duque de Edimburgo, mas não estamos certos de que isso vá acontecer. Vamos ver. Já o Andrew está na 'geladeira'.

E em relação aos filhos de Carlos III, como acha que será a relação deles?

Ele tem imensa admiração pelo príncipe William e Catherine. E pode acontecer que ele se concilie com Harry. Mas neste momento a relação é tensa.

Vai ser difícil substituir a mãe?

A rainha Isabel II era a figura mais popular e mais conhecida a nível planetário. Habituámo-nos a vê-la nas notas, nos selos. Deve ser a mais fotografada do mundo. Era um símbolo, uma profissional exímia que não se desviava do caminho por mais que se custasse. Foi uma personalidade fascinante que viveu muitos sacrifícios e não podia demonstrar nada. Mas sofreu em muitas situações. Ela não esperava a reação hostil da população quando morreu a princesa Diana.

Diz-se que a rainha era intocável. Ninguém lhe podia tocar. Porque isso acontecia?

Não se podia tocar na rainha. É uma regra de protocolo e tocar na rainha é um crime de lesa-majestade. As pessoas reais, e em particular a rainha, é intocável. Houve imensas gafes como a do Presidente Pompidou que quando lhe mostrou o Eliseu lhe deu o braço. Não pode. O mesmo aconteceu com a Michele Obama que abraçou a rainha e quebrou o protocolo real.  Não se dá a mão à rainha, espera-se que ela a dê, nem se dirige a palavra à rainha, espera-se que ela fale - são regras.

São esse tipo de regras que marcam a coroa britânica?

No meu livro falo de tudo isso. Aliás, começo o livro com o dia em que ela vai curvada ao enterro do marido. Ninguém a podia ajudar por isso. O príncipe Carlos, que teria permissão, estava no cortejo; então ela olha para trás e pela primeira vez não vê lá o príncipe Filipe que ela estava tão habituada. O livro chama-se a Víúva de Windsor.

O que mais o surpreendeu nesta rainha?

Viveu sempre e sempre igual a ela própria. Nunca saberemos o que ela pensava sobre muitas coisas.

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