Militantes ganham milhares com contratos sem concurso nas juntas de freguesia da capital

13 jul 2023, 07:00

Em quase todas as freguesias de Lisboa há contratos assinados com elementos do partido eleito ou próximos dele. Análise da CNN Portugal encontrou pelo menos 60 nestas condições nos últimos dois anos. Grande parte são serviços de consultoria e assessoria. Politólogos e especialistas em corrupção garantem que esta tendência revela “a falta de ética que se vive no setor"

O “fenómeno é recorrente”, “pode ser ainda maior do que aquilo que se pode pensar” e “revela a falta de ética que se vive no setor”. É desta forma que Luís de Sousa, politólogo e especialista em corrupção, classifica o cenário da contratação pública nas Juntas de Freguesia de Lisboa: candidatos autárquicos com contratos por ajuste direto, vários milhares de euros pagos a empresas de ex-deputados na Assembleia da República e membros de assembleias municipais que são, ao mesmo tempo, assessores nas freguesias da mesma cor política.

Estas situações, visíveis através da plataforma do Governo para a contratação pública, existem em quase todas as freguesias da capital e revelam, assim, que muitas vezes são aqueles que têm ligações aos partidos que acabam por ser contratados por ajuste direto ou por convite para prestar diversos serviços, em especial nas áreas da assessoria e consultoria.

Esta prática, defende Luís de Sousa, “distorce a livre concorrência e, além de danos financeiros, pode gerar danos reputacionais”. Segundo este investigador, que tem conduzido inquéritos a comportamentos deontologicamente reprováveis de políticos, não há dúvidas: “Se os portugueses fossem questionados sobre se se é correto um membro de uma assembleia municipal ter um contrato por ajuste direto com uma Junta de Freguesia, os cidadãos considerariam essa realidade reprovável”. 

No entanto, é isto que está a acontecer em várias freguesias de Lisboa, segundo uma análise feita pela CNN Portugal, algo que se traduz num “conflito ético brutal”, realça André Corrêa d’Almeida, presidente da associação All4Integrity e professor associado na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, destacando que há o risco de estas pessoas “poderem influenciar o resultado dos mecanismos para os quais foram eleitos - e não há legislação nem ferramentas para contrariar isto”.

Os líderes das Juntas, por seu lado, alegam não estar em causa qualquer incompatibilidade e afirmam que a escolha de pessoas por proximidade política deve-se à convergência de pensamento e à falta de meios próprios. No entanto, os especialistas em corrupção têm outro entendimento: Luís de Sousa considera que esta prática “não salvaguarda o interesse público” e afirma que “o favorecimento de pessoas próximas do partido distorce o mercado e impede uma justa afetação de recursos”. Também André Corrêa d’Almeida sublinha que neste tipo de contratos “não havendo concursos públicos, não há garantia de que a Junta esteja a pagar o melhor preço pelo melhor serviço”.

A análise aos contratos públicos assinados pelas 24 freguesias da capital nos últimos dois anos mostra que foram pelo menos 60 os contratos acordados com pessoas ligadas a partidos políticos - entre militantes, ex-presidentes de Junta, membros de assembleias de freguesia, candidatos autárquicos, deputados municipais e ex-deputados na Assembleia da República. 

A contratação pública nas Juntas de Freguesia de Lisboa está, aliás, a ser alvo de investigação há cerca de seis anos no âmbito do processo Tutti Frutti, uma investigação revelada pela CNN/TVI que dá conta de uma alegada conspiração entre dirigentes do PS e PSD para negociar lugares políticos também ao nível das freguesias e autarquias.
 
Uma das peças chave deste processo são as avenças dadas por Sérgio Azevedo, ex-deputado do PSD, a militantes sociais-democratas para prestarem serviços de apoio técnico ao grupo do PSD na Assembleia Municipal de Lisboa. O Ministério Público entende que três militantes, Patrícia Leitão, Filipa Lages e Nuno Vitoriano receberam entre 1.500 e 1.900 euros por mês, em 2013, sem prestarem qualquer trabalho.  

Esta rede de influência do partido no poder local, em particular nas juntas, é ainda hoje visível: pelo menos um daqueles militantes, no caso Patrícia Leitão, assinou este ano um contrato por ajuste direto de prestação de serviços de assessoria técnica ao presidente da junta de freguesia do Lumiar, Ricardo Mexia, por 24 mil euros.

Ricardo Mexia justifica esta contratação pela necessidade de adquirir serviços essenciais que a Junta não detinha, adiantando que "a questão de eventual incompatibilidade não parece existir". "Nem o critério de filiação partidária é relevante. Nem de forma positiva, nem negativa. Temos lá pessoas que são militantes em outros partidos e outras que não são militantes em nenhum (que são a maioria)".

Entre as várias Juntas que foram investigadas na operação Tutti Frutti, a da Estrela é uma das que aparece citada com maior frequência no processo e o seu presidente, o social-democrata Luís Newton chegou, em maio deste ano, a pedir para ser constituído arguido nesse processo. Nos últimos dois anos, segundo verificou a CNN Portugal junto da plataforma de contratação pública do Estado, a Junta governada através da coligação PSD/CDS, entregou contratos a ex-candidatos, coordenadores políticos e anteriores assessores de governantes dos mesmos partidos.

Raquel Abecasis, a anterior candidata independente pelo CDS à Junta de Freguesia das Avenidas Novas e às legislativas, fundou a empresa unipessoal ‘100X+ CONSULTORES’ em dezembro de 2020. Um mês depois da criação da empresa, a Junta da Estrela assinou com a empresa de Abecesis um contrato de 18 mil euros para a prestação de serviços de consultadoria de comunicação e, em março de 2022, assinou um outro idêntico por 15 mil euros.

Paralelamente, em janeiro de 2021, a mesma Junta assinou com o consultor João Maria Jonet, que trabalhou na Comissão de Relações Internacionais do Partido Social Democrata e mais tarde na campanha de Jorge Moreira da Silva contra Montenegro, um contrato para de “consultadoria no âmbito do Gabinete de Inovação e Planeamento Estratégico”. O contrato, por ajuste direto, teria um valor total de 16.200 euros, mas foi revogado após 53 dias, tendo apenas sido pago a Jonet 3.321 euros.

À CNN Portugal, fonte desta Junta de Freguesia detalha que o seu executivo "não adota como critério de adjudicação a ideologia do candidato nem a circunstância de ser ou não militante de partido político". Já especificamente sobre a contratação da empresa de Raquel Abecasis, a mesma fonte refere que se trata "de uma profissional maior que qualquer dimensão partidária" e que "foi uma enorme mais-valia para esta Junta de Freguesia, e a Comunidade que servimos, ter contado com a colaboração da referida sociedade".

Segundo os especialistas ouvidos pela CNN Portugal a contratação de pessoas ligadas aos partidos políticos nas Juntas de Freguesia parece uma prática que se instalou no poder local, sendo até estudada a nível académico. “As juntas são uma espécie de escola de política para se aprender o que são as atividades públicas.  Acaba por ser uma iniciação para quem quer abraçar a carreira política”, garante a politóga Paula do Espírito Santo.

Já Regina Queiroz, professora universitária e investigadora na Universidade Nova sobre justiça social, ética e política, sublinha o facto de as juntas serem espaços de “menor exposição pública” e “menos escrutinadas”. Por outro lado, acrescenta, tornaram-se locais de “recrutamento de pessoas que vêm mais tarde a ter preeminência na vida política e partidária”. Mas não só. De acordo com a especialista, as juntas são vistas por muitos do que deixaram, entretanto, de ter importância como uma forma de manter alguma “influência do ponto de vista político”.

Assessores e consultores

A maior parte dos contratos realizados com elementos ligados aos partidos verificados pela CNN Portugal dizem respeito à prestação de serviços por assessoria ou consultoria técnica. E há, frisa Regina Queiroz, uma justificação para esta tendência que é a de este tipo de consultoria e assessoria, feita por pessoas ligadas ao partido ter a “vantagem de não levantar problemas a nível dos pontos de vista dos projetos que estão a ser desenvolvidos”. Ou seja, conclui a especialista, há uma garantia de que não haverá qualquer “observação crítica em relação ao pensamento já estabelecido” pela liderança da junta.

Foi esta “convergência de pensamento” a justificação dada pelo presidente da Junta de Freguesia da Ajuda quando questionado sobre as razões que o levaram a contratar, em março deste ano, o militante do PS João Gonçalo Pereira para assessorar o executivo. “Há, um nível de assessoria e apoio direto ao órgão executivo que se prende com o desenvolvimento do programa político sufragado pelos cidadãos, o que implica convergência de pensamento e adesão ao referido programa que vulgarmente se denomina confiança pessoal política do titular de órgão executivo com quem desempenha em concreto esse apoio. Nestes casos – como o é assumidamente o da contratação do João Gonçalo Pereira –, a par das habilitações e competências técnicas indispensáveis, relevam, incontornavelmente, as características pessoais do contratado no âmbito da referida confiança”, afirma à CNN Portugal.

O contrato assinado com João Gonçalo Pereira teve um valor 21.522 euros, mas há exemplos em que os valores pagos, muitas vezes por ajuste direto, são de dezenas de milhares de euros. É o caso de João Quintas, assessor do Partido Socialista e ex-adjunto da Secretária de Estado da Educação Inês Ramires, que, em junho do ano passado, conseguiu um contrato com a freguesia da Misericórdia, governada pela socialista Carla Madeira, por 81 mil euros para “prestação de serviços de assessoria nas áreas de informação, cidadania, participação e de apoio aos órgãos da autarquia”. O contrato está em vigor até 2025.

À CNN Portugal, Carla Madeira, presidente da Junta da Misericórdia, afirma que “o procedimento de formação dos contratos públicos em causa cumpriu escrupulosamente a legislação vigente” e que “o direito à filiação e a participação político-partidária não devem ser tidos como fatores de primazia de qualquer ordem, mas também não devem, nem podem, coartar o exercício de funções profissionais desde que devidamente enquadradas e exercidas no quadro legal e normativo em vigor e sob a égide dos princípios da imparcialidade, igualdade e transparência”, o que é “manifestamente” o exemplo dos casos identificados.

Outro exemplo é o da consultora Bridge Providence que foi fundada e é atualmente detida por Fernando Pinto Lopes, antigo deputado do PSD na Assembleia da República entre 2002 e 2005 e atual presidente da Comissão Política do partido em Mêda, no distrito da Guarda. Nos últimos dois anos, a empresa de que Fernando Pinto Lopes é sócio e fundador assinou dois contratos por ajuste direto com a Junta de Freguesia de Santo António liderada pelo social-democrata Vasco Morgado. O valor total destes dois contratos, um em maio de 2021 e o outro em janeiro de 2023, ascende a mais de 78.600 euros e em ambos os casos o serviço foi o de consultoria ao autarca nos “domínios da preparação da sua atuação política e administrativa”.

À CNN, Vasco Morgado explica que "não teve qualquer hesitação" na contratação da Bridge Providence "exatamente porque a mesma foi constituída pelo antigo Deputado" do seu partido, Fernando Pinto Lopes, "desde sempre ligado ao dossiê do Poder Local, acrescendo que o mesmo é morador há muitos anos na Freguesia de Santo António e antigo membro eleito na Assembleia de Freguesia, sempre ativo na defesa dos interesses da nossa Freguesia".

"Na minha ótica", adianta ainda o autarca, "a consultoria especializada fornece suporte estratégico e técnico ao executivo eleito das juntas de freguesia, ajudando-nos a tomar decisões informadas e a implementar políticas e projetos de forma mais eficiente". 

Assembleias e deputados municipais

Outra prática recorrente nas Juntas de Freguesia tem sido a escolha de atuais e anteriores membros de Assembleias de Freguesia ou Municipais para serviços de consultoria aos presidentes da mesma cor política, algo que os especialistas em corrupção ouvidos pela CNN Portugal apontam estar em causa possíveis conflitos de interesse.

Na junta de Marvila, o presidente socialista António Videira assinou um contrato com o antigo líder da freguesia de Santos-o-Velho e atual membro do PS da Assembleia de Freguesia da Estrela, Luís Monteiro. Em resposta à CNN Portugal, António Videira justifica a contratação, salientando “não existir qualquer incompatibilidade dado que o contrato tem como um dos objectivos centrais o acompanhamento das Jornadas Mundiais da Juventude na freguesia de Marvila”. O presidente da Junta garante também que o facto de Luís Monteiro ser membro da Assembleia de Freguesia da Estrela não constitui qualquer impedimento ao trabalho em Marvila, já que ambas têm “populações distintas e estratos sociais completamente opostos”.

Mas para André Corrêa d’Almeida estas situações são prejudiciais a nível ético e levantam questões sobre qual deve ser o vínculo entre eleito e constituinte, nomeadamente porque se torna “impercetível” se quem é contratado para uma Junta e é ao mesmo tempo eleito como membro de assembleia de freguesia ou municipal “guarda algumas ideias para o desempenho do trabalho para o qual foi contratado e outras para o trabalho pelo qual foi eleito”. “Eu acho que, do ponto de vista ético, a pessoa devia estar totalmente dedicada ao povo, aos eleitores que o elegeram”, remata.

Ajustes diretos

Outro ponto que os politólogos e especialistas em corrupção alertam é o facto de os ajustes diretos, uma ferramenta mais rápida do que a realização de um concurso público, estarem a ser utilizados para contratos de consultoria ou assessoria. Para Paula do Espírito Santo, isto “levanta algumas dúvidas, no mínimo, sobre a idoneidade da decisão que está a ser tomada, porque estamos a falar de situações que não carecem de urgência”, sublinha, reiterando que para este tipo de contratos, se for aberto um concurso público, “mesmo que o processo seja mais demorado, provavelmente será possível encontrar alternativas sem que estas sejam de proximidade política ou partidária”.

Na mesma linha, André Corrêa d’Almeida, garante que a utilização de ajustes diretos para contratar serviços de assessoria a nível político pelas Juntas de Freguesia “resulta de uma pressão temporal de não haver um planeamento que deveria existir”. “É uma má desculpa”, atira.

André Corrêa d’Almeida alerta ainda para o facto de muitos dos contratos feitos com pessoas da proximidade política das Juntas de Freguesia acontecerem por os mecanismos de contratação pública do Estado não estarem preparados para identificar relações “partidárias, políticas ou de familiaridade”.

A plataforma Base, diz, referindo-se ao banco de dados sobre a contratação ao nível das autarquias e do poder central, “é uma ferramenta eficaz, mas que nunca passou da primeira versão, porque nunca mais houve investimento para desenvolver essa ferramenta”. “Seria muito mais eficaz, e não se percebe como ainda não se avançou para essa opção, se ele próprio utilizando a tecnologia que hoje existe, revelasse a relação das pessoas com a autarquia ou serviço em causa, seja, por exemplo, com partidos ou com outras empresas de que essa pessoa seja detentora, para que, no momento em que o contrato é formulado fosse possível identificar se existe um risco de incumprimento”. “Este cruzamento de informação é uma falha do sistema ao nível da transparência”, conclui.

Relacionados

Partidos

Mais Partidos

Patrocinados