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Diretora da Versa

Israel-Palestina: a política faz-se na rua e no streetwear. E há líderes que deviam vestir ADISH

19 out 2023, 17:58

O tema é demasiado sério para não ser levado a sério. E precisei de coragem, admito, para falar de moda, quando o conflito volta a escalar no Médio Oriente, e tudo o que se desvie de uma análise política pode parecer só falta de noção. Mas, por estes dias, lembrei-me da ADISH. A marca que, em cada peça de roupa, deixa uma mensagem de coexistência possível entre árabes e judeus. A moda tem sempre voz, e neste caso, declarações (a)políticas.

Vi-a pela primeira vez no Dover Street Market, em Londres, e ADISH não me dizia nada. Ali, entre a exigente curadoria de marcas, percebi que tinha, afinal, muito para me dizer. E ao mundo. Em hebraico ADISH significa apático, e os jovens fundadores Amit Luzon e Eyal Eliyahu (cresceram entre a tensão Israelo-árabe), são designers apáticos face ao contexto político, separatista e instigador da violência. Para dar voz à sua geração no Médio Oriente, uma visão diferente do confronto, usando a moda como meio para tentar mudar o estado das coisas e influenciar círculos influentes.

Começa aqui o statement da marca, que apesar de apática (puro sarcasmo), nunca baixou o tom para dizer que as suas coleções resultam de um trabalho colaborativo entre Israel e a Palestina. E sim, talvez tudo pareça só uma utopia num mundo distópico. Mas a ADISH é uma prova do improvável. E a moda, talvez como nenhuma outra indústria o conseguiu, ultrapassou a fronteira histórica da discórdia. O ato de vestir é político, já era este o pensamento do historiador francês Fernand Braudel.

Em 2018, quando os políticos não sabiam como agir, a ADISH age à sua maneira. Uma nova marca de streetwear com coleções criadas entre Israel e a Palestina, contemporâneas, mas com técnicas tradicionais, e sócios israelitas e palestinianos, divididos entre Telavive e a Cisjordânia. Ainda que a consciência social cresça no mercado, são raros os negócios com um propósito político e cultural tão claro, a determinação de não ser mais um nome na indústria, nem usar palavras vazias ao falar de paz. Há líderes que deviam vestir ADISH.

Amit Luzon e Eyal Eliyahu, israelitas e apaixonados pelas técnicas têxteis artesanais locais, encontraram no campo de refugiados de Dheisheh, na Cisjordânia, senhoras que os ajudaram a trabalhar o Tatreez – bordado tradicional da Palestina em ponto cruz, património quase esquecido, num lugar que deu lugar a outras prioridades.

Do campo de refugiados e com a ADISH, o Tatreez chegou numa versão contemporânea ao mundo, nas coleções de moda que se vendem de Nova Iorque ao Japão. A marca colaborou até recentemente com a Levi’s, nos casacos Levi's Chore e nos jeans upcycled 501 Original, foram aplicados os bordados e tecidos beduínos feitos à mão por artesãs na Palestina e em Israel.

Esta é a linguagem da ADISH, design made in em Israel com artes palestinianas. Mas a região é profícua em tantas outras linguagens menos felizes. Falta apoio empresarial em Israel, sofre acusações de apropriação do património palestiniano mesmo com informação na etiqueta, a ligação entre os dois povos é vista como um artificio de uma estratégia de marketing artificial.

À distância, resta-nos ler e imaginar como se constrói um marca e gere um negócio entre o perigo, muros e uns quantos checkpoints. Onde a circulação é limitada e a logística assegurada por táxis que levam e trazem tecidos, amostras e protótipos entre os dois territórios (os custos de produção triplicam). Onde o histórico inimigo precisa da confiança das artesãs, que agora têm um rendimento mensal. Onde a marca é obrigada a ter duplo registo, que lhe duplica os impostos.

A moda não resolve o conflito. Sabemos. Mas une. E foi sempre uma das indústrias que melhor soube ler os tempos, a ter força para inspirar outros movimentos, e o seu significado cultural, não é negociável. Entre tudo o que nos fica da ADISH, também a ideia de que alegados inimigos, podem, e com todos os constrangimentos, criar valor juntos. E com valores. A ADISH é real. Desafia políticas. Derruba (pre)conceitos. Despe-se de mensagens gastas. É a melhor versão da moda ativista e colaborativa na longa procura pela (re)conciliação entre árabes e judeus. Um uniforme da paz. Ou, como reconhece, que ajude, pelo menos, a desconstruir certas imagens: “Os israelitas não são apenas soldados, e os palestinianos não são apenas bombistas suicidas”.

 

Nota: O site e redes sociais da marca estão offline.

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