As imagens foram, muitas vezes, avassaladoras. As palavras foram, frequentemente, de espanto pela onda crescente de peregrinos que se foram juntando nas celebrações presididas pelo Papa Francisco. Falou-se numa prova de força da Igreja. Ao descer o monte das emoções, da alegria, do encontro e da vitalidade que subimos na JMJ, teremos que sacudir das nossas sandálias qualquer pó que traga consigo resquícios de triunfalismo.
Ainda antes da JMJ, o antropólogo Alfredo Teixeira dizia, numa interessante entrevista ao Público, que “estes acontecimentos podem ter um impacto razoável na biografia de algumas pessoas, mas é sempre muito incerto perceber que efeito terão na reconfiguração das próprias comunidades católicas.” Não creio que tenhamos que ser deterministas. É possível que a JMJ de Lisboa ajude a reconfigurar as comunidades da Igreja, nomeadamente em Portugal. Por agora, ainda nada mudou. A estrada que nos levará mais rapidamente para longe dessa mudança, é a estrada do triunfalismo. Essa atitude impediria a Igreja de olhar com verdade para os seus limites e fragilidades. É nesses limites que a luz recebida na JMJ precisa de incidir.
Que atitudes podemos cultivar para que não se perca a luz que fica destes dias?
1. Desligar a euforia
A multidão que se juntou em Lisboa é, certamente, uma poderosa parábola a favor da possibilidade da paz. do encontro e da compreensão do outro para lá das diferenças. Isso deve deixar em nós um sobressalto, mas o entusiasmo vivido não nos pode anestesiar, nem alienar. As feridas do mundo e da Igreja permanecem abertas.
2. Agradecer
Serenada a euforia é então possível iniciar o exercício de introspeção a que o Papa foi convidando os jovens ao longo dos dias da JMJ. No nosso interior podemos ir agradecendo o que vivemos e as luzes que fomos recebendo. Podemos também ir tomando consciência daquilo que nos é pedido através do bem recebido e de como o podemos levar às nossas diversas comunidades de pertença: família, amigos, lugares de estudo ou trabalho, comunidades cristãs.
3. Ser humilde
Só numa atitude de despojamento de certezas e dos aparentes triunfos, podemos ler bem aquilo que aconteceu. Esta humildade dificilmente será imediata. Precisamos de tempo e paciência para entender tudo. Foram muitos os que procuraram na “Colina do Encontro” e no “Parque da Graça” caminhos de resposta para as suas inquietações e vazios. A Igreja pode ser companhia para o caminho. Há muito bem feito. Em muitos lugares de medo e desorientação, há centros pastorais e juvenis que são casa segura e estrela que orienta. Mas a Igreja deve reconhecer que em diversas áreas da vida dos jovens tem sido incapaz de abrir caminhos que liguem as suas vidas e as suas preocupações ao Evangelho libertador de Jesus. A JMJ não mudou esta realidade e seria grave se nos levasse a ignorá-la.
4. Não virar a página
No último dia da JMJ, e na minha última intervenção como comentador da CNN para a JMJ, o jornalista Cláudio Carvalho perguntou-me se com a visita do Papa às vítimas de abusos na Igreja portuguesa e com o que Francisco disse a bordo do avião no regresso ao Vaticano, era possível virar a página do tema dos abusos na Igreja portuguesa. Respondi que não e expliquei porquê. Enquanto houver qualquer resquício de desconfiança relativamente às vítimas, enquanto não houver condições para uma escuta verdadeira o caminho estará longe de estar feito. Disse também que essa é uma responsabilidade de todos, de cada cristão. O Papa considera que a Igreja está no bom caminho. E não podemos deixar de reconhecer o que já foi feito para iniciar processos de reparação e desenvolver formas de prevenção e de promoção de uma cultura do cuidado. Mas, em boa verdade, há muito estrada para andar. Estamos ainda a começar.
5. Escutar
O Papa levou os jovens a reconhecer o amor de Deus no seu interior a reconhecerem a confiança que Deus te neles, convidando-os a escutar interiormente a presença de Deus. Disse-lhes que pertencem ao santo Povo fiel de Deus que caminha com a alegria do Evangelho. Os jovens são por isso capazes de discernir a presença do Espírito Santo, ajudando a comunidade a que pertencem a sintonizar com a vontade de Deus. Os jovens precisam de ser acompanhados neste caminho de descida ao seu mundo interior. Mas se Deus lhes fala, também nos fala à restante comunidade através deles. A escuta implica por isso levar a sério os jovens e as suas inquietações. Implica não ter medo das suas dúvidas, das suas críticas e das suas perguntas.
6. Quebrar as portas fechadas
A palavra todos fica como uma marca irrenunciável da JMJ 2023. Dita pela primeira vez na celebração das Vésperas no Mosteiro dos Jerónimos, ela foi várias vezes repetida, com enfase especial para o que se passou na cerimónia de acolhimento quando o Papa pediu a cada um que, na própria língua, repetisse com ele: «Todos, todos, todos».
Quando comentei esta intervenção, o jornalista André Carvalho Ramos fez-me notar que será necessário concretizar por onde passa esse todos. Creio que tem toda a razão. É necessário quebrar as barreiras que tornam as igrejas e as comunidades pouco acessíveis a quem é portador de deficiências, temos que quebrar a imunidade de algumas das nossas comunidades à pobreza e aos migrantes, temos que alargar o conceito da defesa da vida para que a violência doméstica nos escandalize tanto como a eutanásia, temos que escutar as mulheres antes de erguermos trincheiras contra as modas passageiras, temos que abrir as feridas, que a cultura do vale tudo inflige à vivência da afetividade e da sexualidade, à proposta de gratuidade e amor trazida por Jesus. O modo como temos respondido a estas feridas e a nossa incapacidade de acolher tem, em grande parte, contribuído mais para agravar do que para curar estas feridas.
O caminho pós-JMJ não é plano. Iremos cair várias vezes. O importante, como lembrava o papa aos jovens, é nunca desistir de levantar-se com prontidão, humildade e sem triunfalismos.