É um "artista da comunicação" com "pontos controversos", mas um sonhador "sem medo". Papa Francisco, como o vimos, na Jornada Mundial da Juventude

7 ago 2023, 07:00
Papa Francisco no Parque Tejo para a Missa do Envio (Lusa)

A Jornada Mundial da Juventude terminou este domingo, em Lisboa, após cinco dias de encontros com o Papa Francisco. Padres, especialistas e figuras políticas analisam as intervenções do chefe da Igreja Católica e os momentos que marcaram o evento.

No final da homilia do Papa Francisco, na Missa do Envio, o padre José Borga reparou num momento “caricato”, mas “muito significativo”: “Enquanto o mundo assistia em direto à decisão sobre qual país seria o próximo anfitrião da Jornada Mundial da Juventude, o Papa teve ali um tropeço e referiu Roma, pelo meio e antes de dizer que Seoul era a cidade escolhida. Os peregrinos italianos que estavam no Parque Tejo começaram a saltar de alegria, sem reparar que o Papa estava a sublinhar o convite para o Jubileu dos Jovens na capital de Itália”.

“Foi um engano sem qualquer intenção”, mas conta o padre, este episódio, mostra como “na prática”, há hoje uma grande dificuldade na relação entre os jovens e a Igreja Católica em “comunicar”, “ouvir”, “escutar”, mas “mais do que escutar”, “compreender”, é preciso uma linguagem que se entenda.

"A Igreja tem alguns pecados graves em termos de comunicação", resume, na mesma linha, o padre Manuel Vilas Boas. A Igreja “andou durante cerca de 500 anos a falar o velho latim, de facto o latim é a língua oficial da igreja, mas tem de ser compreensiva. Não se pode continuar na igreja a falar latim”. Ou seja, “a comunicação passa ou temos os templos vazios porque ninguém está interessado em linguagens que não se entendem”.

Para ambos os padres, a Jornada, que este domingo terminou em Lisboa, permitiu perceber como o Papa Francisco tem, nos seus discursos, tentado dar a volta a essas distâncias comunicacionais. Em quase todos as suas interações, excetuando ligeiramente o primeiro ato público do chefe da Igreja Católica em Portugal virado para uma elite política e cultural no CCB, o Papa fitou quem o ouvia nos olhos e pouco frequentemente ia lendo o conjunto de palavras que tinha preparado para a ocasião.

Este hábito suscitou mesmo uma comunicação do Vaticano no sábado: “É escolha de pastor, perante o povo que tem diante de si”, disse o porta-voz Matteo Bruni, salientando que os improvisos do Papa variam consoante as pessoas que tem à frente. “O Papa é um grande comunicador. Eu diria até com alguma liberdade, ele é um enorme artista de comunicação”, continua Manuel Vilas Boas. “Faz-nos aprender que a conversa com os fiéis tem de ser através de pequenas sínteses e o Papa faz muita questão de dizer aos párocos, tenham cuidado com o tempo, não chateiem as pessoas, porque as pessoas não têm paciência nenhuma e não têm pena de maus comunicadores”.

E dessas competências comunicacionais de Francisco, provém a proximidade que mantém com aqueles que o seguem, e que foi evidente nos últimos dias. Desde beijos, bênçãos, sorrisos a palavras de alento, com especial atenção aos mais jovens, mesmo os (muito) mais pequenos.

Lara, uma das crianças abençoadas pelo Papa, foi exemplo disso mesmo.

Na chegada ao Santuário de Fátima, no sábado, para a cerimónia do terço, o chefe da Igreja Católica fez questão de se dirigir até à Capelinha das Aparições, onde distribuía afetos por quem o saudava durante o percurso. Foi recebendo várias crianças no topo do papamóvel, com o apoio dos seguranças que o acompanhavam.

“Bastou um grito e ele mandou parar o motorista e fez o que tinha a fazer”, conta um dos familiares da pequena Lara, de Ponte da Barca, a quem o Papa Francisco beijou carinhosamente na testa. “A menina até parece outra. Está mais viva, mais feliz”.

No mesmo dia, em Lisboa, Francisco foi recebido por centenas de milhares de peregrinos que aguardavam a passagem da viatura que o levaria até ao Centro Cultural de Belém. Voltou a interromper a procissão para abençoar uma bebé de um mês e meio, Maria do Carmo, também ela levada até si por uma multidão em alvoroço. O momento foi captado em fotografia e em vídeo, dividindo opiniões entre os espectadores.

Referência a Saramago

“O que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca, e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto”, foi uma das passagens lidas pelo Papa durante o seu primeiro discurso da Jornada Mundial da Juventude, no Centro Cultural de Belém (CCB), ao lado de Marcelo Rebelo de Sousa. Uma mensagem de ambição, sonhos, perseverança, assinada por José Saramago. Este que não foi apenas um dos maiores autores portugueses, repetidamente distinguido pelas suas prosas com reconhecimento internacional, mas também aquele cuja obra “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi vetada pelo governo de Cavaco Silva em 1992, para o Prémio Literário Europeu.

António Sousa Lara, subsecretário de Estado da Cultura naquela legislatura, considerou que o livro não merecia ser selecionado, justificando que “não representa Portugal”. “Não me pediram um julgamento sobre a obra inteira de Saramago, mas sobre este livro. Ora, há questões pessoais que me modelam, às quais não me oponho por questões de consciência pessoal”, declarou ao jornal Público, numa entrevista.

Mas a que se deve esta polémica, e como é que a referência utilizada pelo Papa Francisco pode ser objeto de análise, dentro daquela que é uma visão ligeiramente mais progressista do que a dos seus antecessores?

É que o romance de José Saramago faz uma crítica à religião, recontando a história de Jesus Cristo através de uma perspetiva mais moderna sobre a doutrina da Igreja Católica.

“É o romance que gerou mais polémica e é a causa de ter mudado a minha residência de Lisboa para Lanzarote, em Espanha”, escreveu o autor em “A Estátua e a Pedra”. “É um livro que não projetei, porque jamais me havia passado pela cabeça escrever uma vida de Jesus, havendo tantas e sendo tão diferentes a interpretações que dessa vida se fizeram, destrutivas por vezes, ou, pelo contrário, obedecendo às imposições restritivas do dogma e da tradição. Enfim, sobre o filho de José e Maria disse-se tudo, logo não seria necessário um livro mais, e ainda menos o que viria a escrever um ateu como eu. Simplesmente, o homem põe e a circunstância dispõe e aqui está o que me impeliu a uma tarefa cuja complexidade ainda hoje me assusta”.

De volta ao discurso do Papa Francisco no CCB, eis que ali estava aquele que muitos dizem ser o “representante de Deus na terra”, a citar as palavras de um autor “controverso” aos olhos dos fiéis mais tradicionais.  

Não escapou, contudo, aos elogios, nomeadamente de figuras políticas como o líder da Juventude Socialista, Miguel Costa Matos: “Perante católicos que vetaram Saramago, o Papa cita-o. Perante uma Igreja que se arrasta na resposta aos abusos sexuais, o Papa ouve as vítimas”.

No Twitter, o deputado à Assembleia da República saudou ainda Francisco pelo seu apelo “à luta climática e à integração”, face a “uma extrema-direita xenófoba e negacionista que instrumentaliza a fé”.

Inspirador para uns, polémico para outros. Já o próprio Papa não manifesta qualquer intimidação.

Sei que sou uma pedra no sapato para várias pessoas. Portanto, de alguma maneira, têm de afugentar a dor da pedra, certo?”, diz numa entrevista a uma revista católica, antes de viajar para Lisboa. “Quando sonhas abres as portas e as janelas. Quem não sonha não tem futuro. Tem um futuro de fotocópia, repetitivo, aborrecido”.

A mesma ideia foi transmitida, vezes e vezes sem conta, na missa de encerramento da JMJ, este domingo: “Não temam, não tenham medo”. “Todos vós quereis o mundo e quereis mudar pela justiça e pela paz”, continuou. “Muitas vezes ficam com receio e pensam que não vão ser capazes”.

Destacou que os jovens são “presente e futuro”, capazes de cultivar “grandes sonhos”, e pediu-lhes que se animassem. “Ele é luz que não se apaga, que brilha ainda de noite, que ilumina o nosso olhar, o nosso coração, a nossa mente, a nossa vontade de fazer qualquer coisa na vida”.

Em análise aos discursos que marcam a imagem de Papa Francisco, o padre Tiago Fernandes considera que, “para muitas pessoas, podem parecer quase como se fossem uma meta que gostariam de ver aplicada na Igreja”, mas que esta, “em si mesma, não é uma realidade estática, é muito complexa, porque abarca todos os países do mundo e, portanto, tem ritmos diferentes de aplicação”.

Por outro lado, refere a importância de “ter a mensagem clara”, e observa que “parte relevante daquilo que é dito pelo Papa tem sido aplicado, tanto em Portugal como noutros países”.

O mesmo não acontece, aparentemente, com “os pontos mais controversos”, tais como “a inclusão dos divorciados recasados” e “pessoas que não se sentem confortáveis no seio da Igreja”.

“Seguramente há um longo caminho a percorrer”, conclui o padre, destacando os “passos firmes” que têm sido dados nos últimos anos, em Portugal, no que diz respeito aos abusos sexuais. “Tem sido transparente a atuação da Igreja. Árdua, sofrida, mas sem medo de olhar para a frente e assumir as suas responsabilidades”.

"Um ataque vil àquilo que é ser católico"

Terminada a Jornada Mundial da Juventude, faz-se um balanço sobre os cinco dias que trouxeram centenas de milhares de pessoas a Lisboa e levaram 1,5 milhões a assistirem à vigília com o Papa Francisco, no Parque Tejo.

Helena Ferro Gouveia, comentadora da CNN Portugal, fala numa “sensação de vazio” que fica, “embora saiamos de coração cheio e muito para refletir e interiorizar”. “Conseguiu unir a tradição católica com a modernidade”, continua, servindo-se do exemplo do padre DJ que acordou aqueles que dormiam no Parque Tejo, às 7:00, antes da missa de envio.

Defende, sobretudo, os portugueses que mostraram não ser “menos pessoas ou menos inteligentes” por terem fé. Só que estes dias, “também foram dias onde alguns permitiram um ataque vil àquilo que é ser católico”, critica.

Recorde-se que na madrugada deste domingo, a estátua de Santo António em Torres Novas, que carrega o menino Jesus ao colo, foi vandalizada. Ambas as figuras bíblicas foram decapitadas.

De acordo com o relatório diário da operação Jornada Mundial da Juventude 2023, do Sistema de Segurança Interna, junto à estátua que está situada a 20 quilómetros de Fátima foram deixados dois cartazes com mensagens de ódio: “Deus está morto” e “Seus pedófilos”. Estimam-se 13 mil euros em danos.

O que dizem os políticos?

“Portugal superou a sua tarefa”, disse a ministra adjunta dos Assuntos Parlamentares aos jornalistas, este domingo. Ana Catarina Mendes acredita que é altura de o governo português agradecer a todos os serviços que se mobilizaram e está convicta de que Portugal terá retorno financeiro depois da Jornada Mundial da Juventude.

António Costa concorda, mas não prevê efeitos imediatos. O primeiro-ministro diz que Portugal irá "colher os frutos", ainda que "ao longo dos próximos anos".

Em última análise, afirma que “todo o país tem muito orgulho na forma como tudo correu", descrevendo esta semana como “um momento de grande alegria” e “muita energia”.

Contrariando as críticas iniciais dirigidas ao evento em Lisboa, o líder do PSD, Luís Montenegro, aponta o balanço “muito positivo” e considera que Portugal correspondeu ao desafio, apesar das incidências registadas.

No passeio marítimo de Algés, Marcelo Rebelo de Sousa agradeceu aos portugueses, católicos e não católicos, o envolvimento e a compreensão que demonstraram nos últimos dias.

O Presidente da República destacou ainda a “mensagem de esperança” deixada pelo Papa Francisco.

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