opinião
Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE (CEI-IUL)

A vitória de Milei e o populismo a galope

20 nov 2023, 13:13

Javier Milei venceu as eleições presidenciais argentinas. Esta vitória tem importantes significados que necessitam ser deduzidos. Em primeiríssimo lugar, trata-se de uma vitória que acompanha uma tendência global de recuo de um modelo saído do pós-II Guerra Mundial e sobretudo do pós-queda do muro de Berlim, de uma conjugação de princípios democráticos com valores liberais e sociais, assente no casamento entre Estado de Direito e Estado Social. Esse recuo ou queda, acontece porque o Estado de bem-estar social (i) não chega a todos os cidadãos, (ii) não é possível sustentar sem fluxos migratórios em face do crescendo do inverno demográfico, (iii) a interdependência da economia global e a dependência face às flutuações dos mercados financeiros têm levado a um decréscimo na segurança económica intergeracional.

Consequência: há um ressentimento entre os descamisados da globalização e entre os que foram perdendo a confiança de que os filhos viveriam sempre melhor do que os pais. A insegurança de que mais qualificações académicas não chegam para garantir estabilidade e de que não há empregos seguros, a criação de uma máquina burocrática pesada que distancia as instituições das pessoas, o ressentimento dos mais vulneráveis face a grupos minoritários ainda mais vulneráveis, mas que se configuram como uma ameaça, bem como o salto geracional entre os que conheceram as agruras dos regimes autoritários e aqueles que nasceram em democracia, tudo isto tem conduzido a um contexto alargado de disponibilidade para soluções autoritárias/populistas/messiânicas, particularmente de pendor nacionalista.

Foi assim na Hungria de Viktor Órban, onde valores liberais cederam perante uma ideia de democracia assente no maioritarismo cultural e identitário, em torno de um mito de nação cristã. Foi (e poderá voltar a ser) assim com a América de Donald Trump, com a nostalgia dos “golden days of yore” e as guerras culturais da “América profunda” contra o progressismo citadino. Foi assim com o Brasil de Jair Bolsonaro, reproduzindo o modelo trumpista de guerras culturais ao “petismo”. Foi assim com o “brexit” e a ameaça “deles” que vinham roubar a britanidade, os empregos e as mulheres.

No caso de Milei, a fórmula reproduz-se: um ator político percebido como um “outsider”, que fala claro e simples, com uma personalidade entre o histriónico e o messiânico, ao estilo Boris Johnson, que se levanta em nome “das pessoas” contra “eles”, as elites corruptas que levaram o país à perdição. No caso, contra a tradição peronista. Milei, como os demais populistas, tem um “canto de sereia” que vibra dentro de variados grupos. Não são apenas os mais pobres, os abandonados pela globalização ou os conservadores, é todo um vasto eleitorado que encontra sempre uma nota musical com que se identificar. Milei é contra o aborto. Nota conservadora tocada. É favorável a uma redução drástica de impostos. Nota que toca a classe média e alta. Defende a privatização de empresas públicas e do fim do controlo do Estado sobre a economia. Uma nota esplendorosa no coração dos neoliberais.
Há, portanto, um populismo a galope pelo mundo, que traz desafios à democracia liberal-social, ameaçando-a com a desfragmentação do princípio da diversidade em favor do maioritarismo ou monismo identitário. É um populismo que se levanta em nome do povo, mas fá-lo com políticas económicas que assentam no abandono dos mais frágeis em favor da autorregulação do mercado. É por tudo isto que tendo a discordar de Cas Mudde e da sua central definição do populismo como “ideologia de baixa densidade” para optar por uma ideia de que o populismo é, sobretudo, um modo de fazer política com vista a apelar aos sentimentos primários, podendo acoplar-se a diferentes ideologias.

Seja como for, a Argentina enfrenta enormes desafios. Nada de novo nas terras de Maradona, Messi e do Papa Francisco. Este último que poderia ser uma importante voz de contrapoder, considerando que Milei já o chamou de "comunista", "ditador" e "assassino". Veremos para onde galopa o populismo

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