opinião
Embaixador e Comentador da CNN Portugal

Jacques Delors

27 dez 2023, 21:22

Contrariamente ao que o senso comum possa pensar, a França não é um país que se distinga por ter um constante e elaborado pensamento europeu. Sendo um Estado central e que foi essencial para o lançamento do projeto económico-social coletivo que a paz no pós-guerra permitiu instituir, Paris alimentou sempre uma leitura singular, e nem sempre solidária, desse mesmo projeto. 

Com o fim da Guerra Fria e o sonho da criação de uma Europa-potência que pudesse ombrear com o parceiro democrático do outro lado do Atlântico, criando simultaneamente um "modus vivendi" com o grande e inevitável vizinho a Leste, o eixo franco-alemão teve a genialidade estratégica de estimular o salto institucional que redundou no Tratado de Maastricht e na posterior criação da moeda única, cumulando o mercado interno e a liberdade de pessoas em Schengen. 

A clarividência dos dirigentes europeus da época determinou que Jacques Delors viesse a ser a figura escolhida para dinamizar e pôr em prática essa ideia. Soube fazê-lo com um inexcedível brilho, elevando a Comissão Europeia a um excecional patamar de importância.

Há quem diga que o destaque conseguido por Jacques Delors à frente da Comissão pode ter "assustado" os Estados que têm assento no Conselho de Ministros e que essa terá sido a razão pela qual, a partir de então, a escolha dos seus sucessores no cargo tivesse recaído em figuras bem mais fracas e bastante menos incómodas para muitos poderes nacionais. A exceção pode precisamente ser a atual presidente da Comissão, que se destacou pelo seu meritório papel durante a pandemia e que, a partir daí, lançou uma sombra sobre a ação do Conselho na gestão da crise ucraniana. Vale a pena refletir: Delors era francês, Van der Leyen é alemã. Na Europa não há coincidências.

Portugal deve a Jacques Delors uma grande atenção à especificidade dos seus problemas, um cuidado com as suas debilidades, que nunca será demais ressaltar. Cavaco Silva e Vitor Martins, primeiro-ministro e secretário de Estado dos Assuntos Europeus, que com ele muito lidaram, são testemunhas privilegiadas dessa forte amizade que Jacques Delors dedicava ao nosso país. E Delors sabia bem a afetividade que essa sua ação gerara entre nós.

Uma vez, em Paris, há mais de uma década, à margem de uma bela conferência que Jacques Delors proferiu na delegação da Fundação Calouste Gulbenkian, tive a oportunidade de lhe reiterar, como embaixador português, o facto de o seu nome ter ficado gravado, de forma muito positiva, na imagem que cultivávamos do projeto europeu. Delors retorquiu com qualquer coisa como isto: "Portugal mereceu tudo aquilo que teve. É um país que soube forjar uma genuína dedicação à Europa. Inicialmente, os fundos europeus foram muito importantes, mas vocês souberam ir mais longe e foram capazes de construir uma maneira própria de estar na Europa. Mas, por favor, nunca digam, como às vezes ouço dizer, que Portugal é um pequeno país na Europa. Vocês, como europeus, são um grande país". Confesso que fiquei contente ao ouvir isto, mesmo que a frase só seja verdadeira a espaços.

Alguma imprensa vai, por estas horas, "ter a imaginação" de repetir a frase batida de que, com a morte de Delors, a Europa está de luto. É uma imensa banalidade, de facto. Mas também é uma imensa verdade. O que é triste ter de admitir é que, nos dias de hoje, muitos europeus não façam a menor ideia daquilo que devem a Jacques Delors.

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