"Prestes a arruinar o Natal": como os houthis estão perto de "pôr em risco todas as cadeias globais de fornecimento"

21 dez 2023, 08:00
Iémen Houthis

Continua a crise no Mar Vermelho, onde várias empresas de transporte se recusam a operar. Os Estados Unidos lançaram uma coligação internacional para fazer face à situação, mas será que chega?

É o que alguns classificam de “sucesso estrondoso” para os rebeldes houthis do Iémen, que apoiados pelo Irão e pelo Hezbollah continuam a atacar navios no Mar Vermelho, no contexto da guerra de Israel contra o Hamas. A campanha de ataques com mísseis e drones já levou a uma subida dos preços do transporte marítimo de carga, acompanhada de um aumento dos prémios dos seguros das embarcações e do transporte de várias mercadorias, desde televisões a brinquedos, passando por mobiliário, para além do potencial impacto no custo do petróleo e do gás natural. “A crise no Mar Vermelho está prestes a arruinar os presentes de Natal”, escrevia há dias Elisabeth Braw, da European Leadership Network, na revista Foreign Policy. “Os ataques dos houthis estão a pôr em risco todas as cadeias globais de fornecimento.”

O risco de confrontos entre atores regionais e internacionais no Mar Vermelho já estava a aumentar antes de 7 de outubro, quando o Hamas lançou um ataque por terra e ar contra Israel, que provocou 695 mortos e que levou o Estado hebraico a responder com uma ofensiva armada na Faixa de Gaza, ainda em curso, que já vitimou quase 20 mil palestinianos, na sua maioria civis. Com o adensar do conflito, aquela que é uma das principais rotas de comércio marítimo global transformou-se na mais importante arena de jogadas geopolíticas do mundo.

"Como tenho referido, e não sou original nisto, qualquer perturbação geopolítica tem implicações no tráfego internacional de mercadorias, sobretudo de petróleo, crude e produtos refinados", explica António Comprido, secretário-geral da Associação Portuguesa de Produtos Petrolíferos (Apetro), à CNN Portugal. "Os navios têm de viajar longas distâncias entre continentes e aqui falamos de uma rota preferencial, pelo Canal do Suez e a saída do Mar Vermelho para o oceano Índico."

No imediato, adianta, estes ataques "podem desviar os navios para a rota do cabo, que é muito mais longa, com implicações nos custos e no tempo de reposição dos stocks", como, aliás, já está a acontecer. Comprido não antecipa, contudo, aumentos nos preços do petróleo e derivados para já e refere que as profecias dessa natureza, pela sua experiência, tendem a não se concretizar.

"Não há indícios de rutura de stocks, até porque os países têm reservas para 90 dias, e até hoje nunca tiveram de recorrer a elas. O que existe é um nervosismo dos mercados financeiros, mas países como a Venezuela, o Brasil, os EUA, alguns países da costa oeste africana, podem aumentar a produção para compensar as restrições no Médio Oriente. Isso pode levar a um aumento dos preços do crude e dos produtos refinados, mas para já não antevejo isso."

A geografia

Para judeus e católicos, o Mar Vermelho protagoniza um dos mais famosos milagres do livro do Êxodo, quando Moisés, alumiado por Deus, abre caminho por entre a água para salvar os hebreus da perseguição dos egípcios, que seguindo logo atrás acabam engolidos pelo mar. Para o resto do mundo, é a rota marítima que veio encurtar distâncias entre Ocidente e Oriente e entre Ásia e África, uma travessia que hoje representa 12% do comércio global e 30% do transporte de contentores, o que explica o nervosismo referido pelo secretário-geral da Apetro.

Com o Golfo Pérsico a leste e a costa africana a oeste, o Mar Vermelho é limitado a norte pelo canal do Suez – a ligar ao Egito – e pelo estreito de Tiran – a ligar à Arábia Saudita – e a sul pelo estreito de Bab al-Mandeb – a principal zona de intervenção dos houthis – e pelo Golfo de Áden.

Não foi por acaso que, em 2017, a China decidiu instalar uma base de apoio militar na costa do Djibouti, um dos países do Corno de África banhados pelo Mar Vermelho, a menos de 20 quilómetros da base naval que os norte-americanos instalaram ali 16 anos antes, a principal do Comando dos EUA para África. Também não é por acaso que Pequim continua atualmente a explorar passagens adicionais na região, de vital interesse para os chineses no contexto da sua Nova Rota da Seda.

Também sem surpresa, e face aos ataques dos houthis, os EUA anunciaram esta semana uma coligação internacional para proteger as embarcações de ataques, uma força de proteção naval que vai operar no sul da região. Reino Unido, Bahrain, Canadá, França, Itália, Holanda, Noruega, Seicheles e Espanha são alguns dos países que vão integrar o esforço conjunto para preservar as trocas comerciais. As ausências mais notórias da proclamada Operação Guardião da Prosperidade: Egito e Arábia Saudita, dois importantes atores no xadrez do Mar Vermelho, que temem um alastramento do conflito regional caso a coligação avance, como alguns estão a prever, com uma operação militar contra os houthis.

Não é claro, para já, quando é que esta força naval vai dar início às operações, em que é que essas operações vão consistir, nem qual será o seu efeito imediato na travessia estratégica – que, antes deste conflito, assistia à passagem diária de dezenas de navios mercantes, oriundos ou com destino ao canal do Suez, na sua maioria ligando Ásia e Europa, e transportando entre três e nove mil milhões de dólares em carga.

"A entrada em ação de uma força naval dissuasora pode acalmar o nervosismo, mas temos de ver quais serão os efeitos práticos", indica o responsável da Apetro. "É um anúncio positivo, mas vai depender da quantidade de ataques, da sua brevidade... No imediato dará segurança aos navios mercantes e vai pôr água fria nesse nervosismo."

Após anunciar a suspensão temporária do transporte de mercadorias pelo Mar Vermelho, optando pela rota mais longa via Cabo da Boa Esperança, o conglomerado dinamarquês Maersk divulgou um comunicado menos otimista e desesperançado num milagre: "Temos fé numa solução que permita retomar o uso do Canal do Suez e o trânsito através do Mar Vermelho e do Golfo de Áden, a ser introduzida num futuro próximo. Mas, neste momento, continua muito difícil determinar com exatidão quando é que isso vai acontecer."

Os conflitos

Ficou claro que o transporte mundial de mercadorias estava em risco quando, há um mês, os houthis atacaram o Galaxy Leader, navio da empresa de transporte de mercadorias Ray Shipping, codetida pelo israelita Rami Ungar. Esse não foi o primeiro ataque dos rebeldes iemenitas, que inicialmente prometeram atacar apenas navios oriundos de ou com destino a Israel. Contudo, serviu para agarrar a atenção do resto do mundo: apesar do seu armamento relativamente limitado, a milícia não só conseguiu tomar um petroleiro em pleno Mar Vermelho como filmou todo o processo, num vídeo posteriormente publicado na internet. Desde então, os ataques têm acelerado com tal rapidez e aleatoriedade, sem olhar a bandeiras ou à origem das embarcações, que várias multinacionais do setor energético e do setor dos transportes – como a BP, a Evergreen Line e a OOCL – já suspenderam totalmente as trocas via Mar Vermelho.

Um mês antes do ataque ao Galaxy Leader, já havia alertas sobre os riscos de o conflito no Médio Oriente se alastrar ao ponto de se transformar numa ameaça à estabilidade global tão grande quanto a guerra na Ucrânia. Os impactos previstos diziam diretamente respeito à galopante inflação que a invasão russa provocou no Ocidente, mas também a projetos como o IMEC, corredor económico Índia-Médio Oriente-Europa, uma colaboração estratégica que envolve EUA, UE, Emirados Árabes Unidos, Árabia Saudita e Índia, para otimizar a logística, promover mais trocas e reforçar as relações na região, tendo como objetivo último tornar-se um dos principais motores do crescimento económico mundial. Como outras missões e projetos, também o IMEC depende da total estabilidade nas travessias do Mar Vermelho.

“O IMEC foi concebido na recente cimeira do G20 em Nova Deli e tem uma importância estratégica para a Índia, mas também para contrariar a iniciativa chinesa Nova Rota da Seda”, ressaltava o economista RP Gupta em outubro. “Se o conflito Israel-Palestina se converter numa guerra de larga escala, não será só o IMEC mas também a estabilidade global que serão afetados, de forma semelhante [ao impacto] da guerra Rússia-Ucrânia.”

Os números

Pelo menos 13 embarcações já foram alvos de ataques dos houthis desde meados de outubro, um número que a empresa de segurança de transporte marítimo Ambrey Intelligence diz que pode ser superior, com impacto imediato no transporte mundial de petróleo, gás natural e carvão até mercadorias de todo o tipo.

Os que rastreiam as passagens por esta rota marítima, como a Clarkson Research Services Lda, indicam que, desde o início da segunda metade de dezembro, houve uma queda de 30% no número de embarcações que atravessam o Suez e de 70% em termos do tamanho dos navios que perfazem esta travessia, em comparação com os primeiros quinze dias deste mês.

Com a suspensão das trocas pelo Mar Vermelho por grandes multinacionais, aumentam as distâncias percorridas pelos navios. Uma viagem da Ásia para o norte da Europa tornou-se 5.200 quilómetros mais longa para as empresas que, ao invés de pausar atividade, optam agora por velejar à volta de África para evitar o Canal do Suez, indica a Clarkson Research, citada pela agência Bloomberg. E mais quilómetros equivalem a mais combustível queimado, o que equivale a mais despesa: segundo a Xeneta, uma das principais empresas de frete aéreo e marítimo do mundo, contornar o Cabo da Boa Esperança custa cerca de um milhão de dólares em combustível extra.

A estas despesas acresce um aumento dos prémios de seguros dos navios que atravessam a região, com a Bloomberg a indicar que, desde o início dos ataques dos houthis, o preço da chamada cobertura de risco de guerra foi multiplicado por dez. Em Londres, as seguradoras envolvidas no comércio marítimo global pelo Mar Vermelho já expandiram a área geográfica onde esta cobertura é obrigatoriamente aplicada.

Entre as empresas que já suspenderam as trocas pelo Mar Vermelho contam-se as europeias Maersk e CMA CGM e as asiáticas Yang Ming e HMM Co. Quase todas as frotas que atravessavam o Suez pausaram atividades ou passaram a optar por rotas mais longas, havendo algumas que já invocaram force majeure para evitarem penalizações, dizendo-se impedidas de cumprir as suas obrigações contratuais.

No setor energético, duas gigantes do petróleo e do gás, a BP e a Equinor ASA, estão há uma semana a desviar todos os seus navios da área até novas indicações. A Euronav NV, uma das maiores transportadoras marítimas de petróleo, diz que não voltará a usar o Mar Vermelho até ter garantias de que as embarcações vão estar protegidas de ataques – a Frontline Plc, uma das rivais, está a considerar dar um passo semelhante.

Face às ameaças mais recentes dos houthis de atacarem qualquer navio, as empresas que continuam a operar no Mar Vermelho estão a tentar reforçar a segurança nas trocas. Veja-se o exemplo das embarcações que navegam com a bandeira da Libéria hasteada, uma das mais usadas por petroleiros em todo o mundo, que nos últimos dias tiveram de adotar medidas de segurança de nível três ao transitarem pelo Mar Vermelho – o nível máximo nas diretivas de segurança marítima, que dita que os navios devem assumir sempre que um ataque está iminente, explica a consultora Dryad Global à Bloomberg.

Os receios

Quando os houthis executaram os primeiros ataques a navios no Mar Vermelho, Israel – cuja economia depende do comércio marítimo – disse que iria pagar compensações pelos navios danificados, sem detalhar se iria cobrir também os custos adicionais de transporte de carga para as empresas forçadas a desviarem-se da sua rota por excelência. O facto de os ataques serem agora indiscriminados levanta ainda mais dúvidas quanto a isto.

“Os houthis alargaram o perfil dos seus alvos sobre o que constitui ‘navios filiados’ [a Israel] com base nas bandeiras, proprietários, operadores e gestores [das embarcações]”, indicava a britânica Ambrey em comunicado na segunda-feira – neste momento, “[os rebeldes] e os seus apoiantes iranianos estão a atacar erradamente navios sem qualquer associação a Israel”.

Neste contexto, a 12 de dezembro, segundo contas da plataforma Freightos, as taxas de frete marítimo para Israel a partir de vários portos da China já tinham aumentado para 2.300 dólares (cerca de 2.098 euros) pelo transporte de um contentor de 12 metros de comprimento, contra 1.975 dólares (1.800 euros) no final de novembro. 

“Para os navios que se dirigem para Israel a partir da Ásia, a rota em torno de África é significativamente mais longa do que pelo Canal do Suez”, a rondar mais sete mil milhas náuticas e entre 10 e 14 dias extra para chegar ao destino, sublinha o CEO da empresa à Reuters. “Desde o início da guerra, as taxas marítimas da China para os portos israelitas aumentaram entre 46% e 58%”, adianta Zvi Schreiber.

Aparte as perdas e riscos, há transportadoras que têm beneficiado da situação no Mar Vermelho, com as suas ações em bolsa a subir desde que a guerra Israel-Hamas se alastrou à região marítima. É o que demonstram dados do Solactive Global Shipping Index, que monitoriza o valor de 47 empresas do setor marítimo e que refere um aumento de 11% nos preços das ações das companhias a 13 de dezembro, um recorde inédito desde que este índice começou a ser compilado em 2015.

A favor do movimento houthi está ainda o impacto das alterações climáticas no Canal do Panamá – que, afetado por uma seca severa, se afigura agora como uma das alternativas para trocas entre a Ásia e a América do Norte. Citado pelo New York Times esta quarta-feira, Lars Jensen, CEO da consultora Vespucci Maritime, ressaltava que, se os problemas no Suez e no Mar Vermelho persistirem durante muito mais tempo, o lastro da congestão no tráfego marítimo pode chegar ainda mais longe. “Se olharmos para tudo isto da perspetiva dos houthis, até agora parece ser um sucesso estrondoso.”

Um sucesso fora do Iémen, um sucesso também dentro do país, ainda que, previsivelmente, apenas no curto prazo. Face à ofensiva houthi no Mar Vermelho, a população iemenita está assustada com a possibilidade de voltar a estar na mira de bombardeamentos, após uma acalmia na operação da Arábia Saudita contra os rebeldes que controlam o norte do Iémen há oito anos. Desde 2015, os cerca de 25 mil ataques aéreos sauditas vitimaram mais de 19 mil civis num país destruído por décadas de conflitos, pobreza generalizada e ausência de infraestruturas essenciais. Mesmo sob o frágil cessar-fogo que vigora desde abril de 2022, a ONU disse no início deste ano que o Iémen enfrenta a pior crise humanitária do mundo – e as ações dos houthis ameaçam enegrecer ainda mais o cenário.

“Ao disparar mísseis contra Israel ou contra alvos israelitas no Mar Vermelho, o grupo houthi conquista apoio popular no Iémen e isso é um ganho considerável, ajuda-os a consolidar a sua autoridade no seguimento do golpe de 2015 contra o governo iemenita”, indica um analista político à Al-Jazeera a partir de Saana, pedindo anonimato. Contudo, são ganhos para os rebeldes que podem traduzir-se em grandes perdas para os civis iemenitas, face aos riscos de “novos problemas económicos e humanitários”, assume o especialista. “A arrogância dos houthis vai aumentar e isso pode obstruir um acordo para acabar com a guerra civil."

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