"Um golpe de mágica e duas opções". A contraofensiva ucraniana falhou. E agora?

12 nov 2023, 22:00
Soldados ucranianos lutam para reconquistar o território ocupado pela Rússia (AP Images)

Kiev admite ter chegado a um impasse, numa altura em que todos os olhos estão postos em Israel e se aproxima uma campanha russa contra as infraestruturas críticas do país. A Ucrânia aparenta ter as mãos atadas, mas ainda tem duas opções

Durante cinco longos meses, dezenas de milhares de soldados ucranianos tentaram de tudo para quebrar a linha defensiva russa. O exército russo “sofreu pesadas perdas”, mas erros foram cometidos, fraquezas foram expostas e o principal general ucraniano, Valerii Zaluzhnyi, admite que a batalha chegou a um impasse que pode ser mortal para a Ucrânia. Uma guerra onde “o fator supressa deixou de funcionar” e que vai desencadear uma corrida tecnológica para desbloquear o impasse, embora existam “duas soluções” para fazer Vladimir Putin mudar de ideias.

“A Rússia não deve ser subestimada apesar das pesadas perdas. Sejamos honestos: a Rússia é um Estado feudal onde o recurso mais barato é a vida humana. E para nós… a coisa mais cara que temos é o nosso pessoal”, afirmou Zaluzhnyi, comandante supremo das forças armadas ucranianas, numa entrevista à revista The Economist.

A história dá dá razão ao general ucraniano. Ao longo dos séculos, nunca a Rússia perdeu uma guerra por falta de soldados ou assinou um tratado de paz devido a um elevado número de baixas. Os 150 mil soldados russos que a Ucrânia diz que morreram no seu território são mesmo uma gota quando comparados ao histórico de fatalidades a que Rússia está habituada. Mas uma conjugação especial de fatores colocou o conflito na Ucrânia num impasse com nenhum dos lados a ser capaz de produzir a força ou a vantagem necessárias para ultrapassar as defesas do inimigo, por mais soldados que sejam utilizados.

Para o responsável militar, este cenário acontece porque, tal como na primeira guerra mundial, foi atingido “um nível tecnológico” que não permite “um avanço profundo e bonito”. Zaluzhnyi refere-se à proliferação de drones, particularmente os de vigilância. Estes dispositivos acabaram com um dos elementos mais importantes de qualquer conflito armado: o elemento surpresa. 

“Pela primeira vez, temos um campo de batalha onde há uma grande quantidade de meios de vigilância. Ambas as partes não conseguem, pela primeira vez, ter o fator surpresa. Ucranianos e russos veem tudo o que o outro lado vai fazer. Assim que há um aglomerado de soldados, há logo um bombardeamento ”, explica o major-general Agostinho Costa.

Esta capacidade de vigilância torna o campo de batalha na Ucrânia particularmente mortífero. Qualquer tentativa de acumular soldados e carros de combate para tentar atacar um ponto da linha da frente é rapidamente detetado e atacado com artilharia. Quando a artilharia não funciona, surgem os drones kamikaze. “Agora nem as trincheiras são seguras”, reforça Agostinho Costa.

Soldados ucranianos tentam abrigar-se dos bombardeamentos russos no leste da Ucrânia (AP Images)

Um golpe de mágica

Inicialmente, o principal comandante ucraniano julgou que o fracasso em penetrar as linhas defensivas russas – criadas ao longo de toda a paragem de inverno – revelavam incapacidade por parte dos comandantes ucranianos. Por isso, Zaluzhnyi alterou alguns dos líderes no terreno, mas os resultados foram os mesmos. Agora, depois de quase um mês de uma ofensiva russa com perdas trágicas em Avdiivka, o general de 50 anos está convencido de que só os desenvolvimentos tecnológicos permitem recuperar a vantagem nos confrontos.

“Esta guerra não pode ser vencida com as armas da geração passada e métodos ultrapassados”, insiste.

Por esse motivo, para a Ucrânia, o fator mais importante para reverter este impasse passa por ganhar o controlo dos céus. Sem este fator, as forças armadas ucranianas não conseguem quebrar o impasse. Sistemas de defesa antiaéreos com vários alcances, bem como milhares de drones baratos que permitam fazer “ataques maciços” para “sobrecarregar” as defesas russas são fundamentais para a nova fase da guerra na Ucrânia. O general Zaluzhnyi sugere ainda o desenvolvimento tecnológico de “drones caçadores” equipados com redes para caçar outros drones, bem como equipamentos que emitam um falso sinal eletrónico para atrair as bombas russas.

“Vai haver uma corrida tecnológica com os dois lados a procurarem um golpe de mágica que quebre este impasse. Vai haver um aceleramento da entrega de armamento. Esta guerra vai definir-se através da base tecnológica militar, mas a Rússia fez o trabalho de casa e leva aqui alguma vantagem”, sugere o major-general Agostinho Costa.

Moscovo foi rápida a adaptar-se às realidades da guerra de alta intensidade. Sob a liderança do antigo presidente e atual número dois do Conselho Nacional de Segurança russo, Dmitri Medvedev, a Rússia acelerou a produção industrial militar. As principais fábricas de armamento trabalham 24 horas por dia, com três turnos de trabalhadores. Neste aspeto, Zaluzhnyi insiste que a Rússia “não deve ser subestimada” e que a produção continua a aumentar “apesar das sanções sem precedentes”.

Ainda assim, o número de munições consumidas e de material destruído é inferior à capacidade de produção. Por esse motivo, o Kremlin começou a comprar munições de 155 mm à Coreia do Norte. De acordo com os serviços secretos sul-coreanos, dez carregamentos com aproximadamente um milhão de munições saiu da Coreia do Norte em direção à Rússia, desde o final de agosto.

Nos Estados Unidos a produção tem vindo a ser aumentada significativamente, embora a um ritmo mais lento do que o desejado por parte da Ucrânia. Espera-se que o tecido empresarial militar americano consiga produzir 57 mil munições de 155 mm por mês, já no início de 2024. Na Europa, o cenário é mais preocupante, com a União Europeia a não ser capaz de entregar o milhão de munições que prometeu a Kiev até ao final do ano.

Soldado ucraniano dispara um morteiro em Kupiansk, na região de Kharkiv (AP Photo/Kostiantyn Liberov)

A campanha de inverno

O Ocidente pode compensar a falta de munições de artilharia pesada com o envio de mísseis de longo alcance que têm sido reiteradamente pedidos pelos oficiais de Kiev, em particular os mísseis americanos ATACMs e os alemães Taurus. Estes explosivos permitiriam à Ucrânia atingir alvos de alto valor que a Rússia mantém longe da frente de batalha, como depósitos de munições, navios, aviões de combate ou a ponte de Kerch.

“Estamos perante um impasse temporário. A pausa do ano passado beneficiou a Rússia. Mas a partir do próximo a força aérea ucraniana vai ter muito mais capacidade do que tem agora, quando começar a receber os caças F-16 e JAS 39 Gripen”, garante o major-general Isidro de Morais Pereira.

A curto prazo, durante os meses de inverno em que as condições atmosféricas não facilitam os avanços no terreno, os especialistas acreditam que vamos voltar a ver o bombardeamento estratégico de infraestruturas civis críticas. Centrais elétricas, depósitos de combustível e a rede ferroviária deverão voltar a ser alvos dos mísseis balísticos de Moscovo. A própria porta-voz do Comando Operacional do sul do país, Natalia Humeniuk, admite que a Rússia pode “recorrer a este tipo de ataques” nos próximos meses.

Na sexta-feira, dia 3 de novembro, foi precisamente isso que a Rússia fez. Um enorme ataque com 40 drones atingiu dezenas de habitações particulares, edifícios comerciais e infraestruturas críticas, contra várias regiões ucranianas. As autoridades garantem estar a preparar-se para esta possibilidade, mas alertam que a Ucrânia está mais vulnerável que no ano anterior, por ter menos capacidade excedente e poucas reservas de equipamentos.

“Não temos visto os russos a utilizar os poderosos mísseis Kalibr, nos últimos meses. Vamos ver até que ponto não virá daqui a tentativa de neutralizar as infraestruturas críticas do país”, calcula Agostinho Costa.

Explosão num apartamento residencial (Evgeniy Maloletka/AP)

As duas soluções

Durante todo o verão, as forças ucranianas conseguiram a iniciativa dos combates e colocaram a Rússia em defesa. Agora a situação altera-se em alguns pontos da linha da frente, com a Rússia a lançar alguns ataques em diferentes regiões. Um desses casos é em Avdiivka: no dia 10 de outubro, Moscovo lançou um ataque surpresa que resultou em perdas volumosas para o seu exército e poucas conquistas.

“A Rússia está novamente preparar-se para levar a cabo uma ofensiva de inverno. É isso que está a acontecer em Avdiivka, que não tem tido sucesso. Têm perdido imensos homens e veículos. O cenário faz lembrar o que aconteceu em Vuhledar”, recorda Isidro de Morais Pereira.

Mas a perda de vidas humanas não tem o mesmo preço em todo o lado e a Rússia já demonstrou estar disposta a perdas significativas para atingir os seus objetivos de conquistar as regiões do Donbass, de Zaporizhzhia e Kherson.

Para Isidro de Morais Pereira, o atual impasse leva a que a Ucrânia só tenha duas soluções pela frente para fazer com que Putin “mude de ideias” e acabe com a guerra. A primeira hipótese passa pela Ucrânia conseguir com sucesso chegar ao mar de Azov e ameaçar seriamente a segurança da península da Crimeia. “Um desaire visível no campo de batalha levará Putin a considerar outras opções”, considera.

O outro cenário passa por um potencial colapso económico russo. Segundo os dados do Ministério das Finanças russo, as despesas em Defesa vão atingir os 30% do Orçamento do Estado russo para 2024, com 10,8 biliões de rublos (107 mil milhões de euros). Um número três vezes superior aos gastos em Educação, Saúde e Ambiente juntos. Além disso, a desvalorização do rublo significa que as importações estão mais caras, o que aumenta a inflação e obriga o banco central russo a manter as taxas altas. Atualmente estão a 15%, o que torna o investimento proibitivo.

“Apertar o garrote das sanções é fundamental. A possibilidade de um colapso económico pode obrigar Putin a reconsiderar a sua situação”, admite Isidro de Morais Pereira.

Dmitry Medvedev visita fábrica da UralVagonZavod, Nizhny Tagil (Getty Images)

Médio Oriente no caminho

Também a atrapalhar as contas da Ucrânia está a explosão de violência no Médio Oriente. O ataque do Hamas contra várias povoações no sul de Israel, a 7 de outubro, desviou as atenções de Washington para a região, que agora tenta um difícil equilíbrio para que os dois conflitos não se alastrem a outros países. O apoio do público americano ao armamento da Ucrânia tem vindo a cair, com “apenas” 41% da população a apoiar o envio de mais armamento por parte do Congresso. Antes da contraofensiva esse número rondava os 65%, de acordo com um estudo da Reuters. Agora, todos os olhos estão postos em Telavive.

“O conflito do Médio Oriente tem desviado atenções, mas tudo isto é passageiro. O apoio à Ucrânia vai continuar, mas não da maneira que estaríamos à espera”, admite o major-general.

Em entrevista à revista Time, Volodymyr Zelensky assumiu que “é lógico” que a situação no Médio Oriente é má para a Ucrânia. “É claro que perdemos com os acontecimentos no Médio Oriente. Pessoas estão a morrer e a ajuda do mundo é necessária para salvar vidas, para salvar a humanidade”, afirmou o presidente ucraniano, que acrescentou que, apesar da exaustão de guerra que se instala nos países aliados, a fé na vitória mantém-se inabalável.

"Ninguém acredita na nossa vitória como eu. Ninguém."

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