"Provavelmente não haverá um avanço profundo e bonito": há um documento que contém confissões profundas do principal general ucraniano - que teme uma "armadilha"

2 nov 2023, 22:00
Valerii Zaluzhnyi, general ucraniano (Getty Images)

Mas Valerii Zaluzhnyi vê cinco maneiras de evitar esse armadilha. Ele que deixa um enorme aviso: "A Rússia não deve ser subestimada apesar das pesadas perdas". Mas: “Sejamos honestos: a Rússia é um estado feudal onde o recurso mais barato é a vida humana. E para nós… a coisa mais cara que temos é o nosso pessoal”

Os riscos para a Ucrânia “são enormes”. A natureza da guerra está a mudar e o principal general ucraniano, Valerii Zaluzhnyi, alerta que chegámos “a uma nova fase” que pode rapidamente transformar-se “numa armadilha” e favorecer a Rússia. Num documento intitulado "Guerra Posicional Moderna e Como a Ganhar", publicado pela revista Economist, o líder do exército ucraniano explica o impasse a que a guerra chegou e as cincos ações que são necessárias para recuperar o território ocupado pelo exército russo.

“Tal como na primeira guerra mundial, atingimos um nível tecnológico que nos coloca num impasse. Provavelmente não haverá um avanço profundo e bonito”, diz Zaluzhnyi na Economist.

Os militares costumam dizer que a primeira vítima de uma batalha é sempre o plano de ataque. Em guerra, todas as ações tomadas por um dos lados levam a uma adaptação do adversário, que responde ajustando-se às ameaças que surgem. Mas, em algumas situações, em alguns pontos da história, o impasse acontece, com nenhum dos lados a ser capaz de produzir a força ou a vantagem necessária para ultrapassar as defesas do inimigo. Atualmente, extensas fortificações e trincheiras, bem como os vastos campos de minas, demonstram ser um adversário demasiado implacável para a tecnologia que tanto um lado como outro têm à sua disposição.  

E este impasse, garante Zaluzhnyi, vai beneficiar a Rússia. O país liderado por Vladimir Putin tem uma base industrial dez vezes maior que a da Ucrânia e uma população três vezes superior. Mesmo com um elevado número de baixas – 150 mil russos mortos, segundo o general ucraniano –, a Ucrânia não deve contar com uma derrota russa por falta de militares.

“A Rússia não deve ser subestimada. Sofreu pesadas perdas e gastou muita munição. Mas terá superioridade em armas, equipamentos, mísseis e munições durante um tempo considerável. A sua indústria de defesa está a aumentar a sua produção, apesar de sanções sem precedentes”, escreve o militar.

Cinco condições contra a "armadilha"

Para evitar cair nesta “armadilha” e voltar ao combate em movimento que permita recapturar o território ocupado pela Rússia, Zaluzhnyi nomeou cinco áreas que a Ucrânia tem de ver profundamente melhoradas: a superioridade aérea, destruição de campos de minas em profundidade, aumentar a eficácia do fogo contra artilharia inimiga, desenvolver as capacidades de guerra eletrónica e a criação de reservas necessárias - bem como capacidade para as treinar.

“O mais importante é o poder aéreo. O controle dos céus é essencial para operações terrestres em grande escala”, refere o general de 50 anos, que sublinha que este aspeto não se adquire somente através da chegada dos F-16 ocidentais.

A Ucrânia precisa de reforçar as capacidades de defesa antiaérea, uma área onde a Rússia leva uma enorme vantagem, apesar de o exército ucraniano já ter destruído 550 destes sistemas, segundo Zaluzhnyi. Para anular as defesas antiaéreas russas, o general diz que é preciso continuar a aposta na produção de drones baratos que permitam fazer “ataques maciços” para “sobrecarregar” estes sistemas. Além disso, os militares ucranianos querem produzir “drones caçadores” equipados com redes para caçar outros drones, bem como equipamentos que emitam um falso sinal eletrónico para atrair as bombas russas.

Drones utilizados pelo exército ucraniano para largar munições em posições inimigas (AP Photo)

O segundo ponto que precisa de ser reformado para permitir o fim do impasse é o desenvolvimento de instrumentos para a guerra eletrónica, bem como a capacidade de incorporar este tipo de tecnologia nas suas aeronaves não tripuladas. Esta é a chave para a vitória da guerra dos drones, garante o general no seu artigo publicado na Economist.

“Precisamos também de mais acesso à informação eletrónica dos nossos aliados, incluindo dados de ativos que recolhem informação de sinais, e de linhas de produção aumentadas para os nossos sistemas antidrone dentro da Ucrânia e no estrangeiro.”

A capacidade de detetar e destruir a artilharia russa é igualmente importante. Para os militares que avançam no terreno, é uma questão de vida ou de morte. No início da guerra, com a chegada de vários equipamentos ocidentais, a Ucrânia foi capaz de destruir vastas quantidades de posições de artilharia russas. Mas o inimigo dos ucranianos adaptou-se. Agora, a eficácia de alguns dos sistemas mais precisos caiu abruptamente devido às capacidades de guerra eletrónica russa.

Não só são mais difíceis de atingir como a capacidade de fogo contrabateria russa melhorou significativamente, de acordo com Zaluzhnyi. Em parte devido a uma munição inteligente conhecida como Lancet. O general sublinha que, apesar da “atitude desdenhosa” de alguns analistas militares ocidentais, a eficácia destas armas não deve ser menosprezada. Para já “existe paridade de poder de fogo”, mas isso pode não durar.

“Precisamos de construir os nossos campos GPS locais (…) para tornar os nossos projéteis guiados mais precisos face à guerra eletrónica russa. Precisamos de usar mais drones kamikaze para atacar a artilharia russa. E precisamos que os nossos parceiros nos enviem melhores equipamentos de reconhecimento para localizar armas russas.”

Canhão de 155 mm ucraniano dispara sobre posições russas nos arredores de Bakhmut, no Donbass (Getty Images)

Ainda assim, nenhuma destas tecnologias resolve um dos principais obstáculos ao rápido avanço ucraniano: os densos campos de minas que tornam a Ucrânia o país mais minado do mundo. Mais uma vez, Zaluzhznyi vaticina que a tecnologia é a solução. As capacidades enviadas pelo Ocidente foram insuficientes para ultrapassar a escala destas barreiras. Alguns destes campos têm uma extensão de quase 20 quilómetros e, sempre que os ucranianos avançam, a Rússia rapidamente armadilha o local com minas lançadas à distância.

Para penetrar nestes territórios, o comandante ucraniano sugere um misto de tecnologias, como radares com sensores de deteção de minas que enviam pulsos de luz invisível, e sistemas de projeção de fumo que ocultem as operações das equipas de desminagem. Valerii Zaluzhnyi sugere também a utilização de motores a jato de aviões reformados, canhões de água, bombas de fragmentação para “limpar” o terreno ou sistemas mais originais como robôs escavadores “com tochas de plasma” para perfurar túneis.

O recurso mais caro de todos

Mas todas estas mudanças serão irrelevantes sem o quinto e último critério: criar e treinar reservas. O “general de ferro” admite que esta capacidade é mais limitada do que se julgava, uma vez que a Rússia consegue atingir os centros de treino e causar elevadas baixas. Além disso, a Ucrânia não se encontra numa posição em que se pode dar ao luxo de retirar soldados experientes da frente de combate para treinar os recrutas.

Zaluzhnyi queixa-se ainda de “brechas” na legislação ucraniana que permitem que milhares de cidadãos “fujam às suas responsabilidades” de cumprir o serviço militar. Nesse sentido, a Ucrânia prepara-se para expandir a lista de cidadãos que podem ser chamados para o treino ou para a mobilização, bem como a criação de um “estágio de combate”, onde os recrutas são incorporados em unidades existentes.

Soldados ucranianos lutam para reconquistar o território ocupado pela Rússia (AP Images)

“Sejamos honestos: a Rússia é um estado feudal onde o recurso mais barato é a vida humana. E para nós… a coisa mais cara que temos é o nosso pessoal”, diz Zaluzhnyi.

O general compreende que uma guerra de atrito que se arrasta no tempo “acarreta enormes riscos” para a Ucrânia. Mesmo com “a sua vontade de entregar a alma e o corpo pela liberdade”, os ucranianos vão precisar de novas soluções que lhes permitam fugir da armadilha que têm pela frente - porque “mais cedo ou mais tarde podemos descobrir que simplesmente não temos pessoas suficientes para lutar”.

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