"Um dos truques dele é tentar fazer com que uma pessoa se sinta mal-preparada": como Putin negoceia (não esquecer: há negociações em curso para um cessar-fogo)

27 fev 2022, 22:52
Vladimir Putin discursa à nação sobre tensão com a Ucrânia (Alexei Nikolsky via AP)

Rússia e Ucrânia vão encetar negociações para um cessar-fogo. E é precisamente por isso - mas não só - que é preciso entender como o líder russo se comporta na mesa de negociações. "Não se pode contar com nada que ele prometa. Ele vai fazer sempre o contrário daquilo que pensas"

“A tarefa de um governo não é apenas colocar mel numa taça: por vezes é dar um medicamento mais amargo.” Esta frase foi proferida por Vladimir Putin quando anunciou que ia voltar a concorrer à presidência da Rússia em 2012 e serviu para explicar como o governo, do qual ele fora primeiro-ministro nos quatro anos anteriores, necessitava de tomar medidas controversas para lidar com a crise financeira. Agora, este homem, considerada várias vezes como o mais poderoso do mundo pela revista Forbes, volta a estar no centro das atenções depois da invasão russa à Ucrânia.

Uma citação que mostra bem o carácter do presidente russo, antigo agente do KGB e que está no poder do país desde 1999, quando foi eleito pela primeira vez primeiro-ministro. Seguiram-se anos e anos de liderança, quer como chefe do Governo, quer como chefe de Estado, cargo que ocupa há dez anos e no qual poderá ficar até pelo menos 2036, depois de o Parlamento ter aprovado uma revisão constitucional nesse sentido. E como é negociar com Vladimir Putin?

“Persuasivo, sofisticado ou opaco” são alguns dos adjetivos utilizados por Masha Lipman para descrever Vladimir Putin.  A analista política, que nasceu em Moscovo, é uma das pessoas que melhor conhecem as ações de poder do presidente russo e, em 2020, deu uma longa entrevista à revista New Yorker em que caracterizava a figura do líder.

À ABC News, a antiga presidente da Letónia Vaira Vike-Freiberga deixa a mesma impressão, depois de uma reunião que teve com o então homólogo russo ainda em 2001: "Um dos seus truques é tentar fazer com que uma pessoa se sinta mal-preparada".

A politóloga Masha Lipman admite que a postura de Vladimir Putin foi mudando ao longo dos anos, até porque, como diz, “qualquer pessoa que tenha estado no poder durante 20 anos muda”. “A Rússia passou por ataques terroristas, a guerra na Chechénia, calamidades naturais, catástrofes tecnológicas, protestos em massa, e ele lidou com tudo isso. Claro que é um homem diferente.”

Mas diferente como? A especialista, que escreveu vários textos sobre o presidente russo, vê um Vladimir Putin mais sofisticado mas também mais “opaco”, nomeadamente na comunicação com o seu núcleo duro. Segundo Masha Lipman, Vladimir Putin gosta de demonstrar como é sempre ele que tem a última decisão, bem como a autonomia que tem para o fazer. “Ele raramente consulta alguém, e, mesmo quando o faz, é de uma forma totalmente opaca. Raramente é explícito.”

Mas se isso acontece com os conselheiros, o mesmo se pode dizer dos líderes políticos que recebe. Falando novamente na reunião que teve com Vladimir Putin em 2001, Vaira Vike-Freiberga disse que "não se pode contar com nada que ele prometa". "Ele vai fazer sempre o contrário daquilo que pensas".

A antiga chefe de Estado letã conta até uma história curiosa de quando ambos se encontraram no sentido de fortalecerem relações entre os países - e numa altura em que a Letónia ainda vivia com a ocupação soviética na memória. "A ideia era ter um encontro amigável para melhorar o clima de relações. Disseram-me que não haveria papéis, não haveria uma agenda oficial, teríamos apenas um encontro informal para vermos os pontos que poderiam ser explorados", descreve. Em vez disso, Vladimir Putin chegou a uma sala com uma pilha de documentos de 10 centímetros de altura e uma agenda específica de assuntos relacionados sobre a situação de cidadãos russos a viver na Letónia. "Ele queria atirar-me para fora de pé. Felizmente, sei improvisar, então correu bem. Mas não foi muito educado", acrescentou a antiga presidente da Letónia.

Vladimir Putin e Vaira Vike-Freiberga (Sergei Grits/AP)

De resto, esta falta de clareza no discurso do presidente russo é uma característica comum que os analistas lhe identificam. Um desses casos é o de Lívia Franco, especialista em assuntos internacionais que, à CNN Portugal, fala da comunicação russa como algo feito com “pouca clareza”. A professora até falava no contexto atual, de guerra, mas Masha Lipman entende que isto é algo que se aplica em todos os assuntos: “Mesmo quando consulta alguém do seu ciclo pessoal, as pessoas saem de lá sem terem uma ideia clara de qual é o objetivo”, acabando por “tentar adivinhar”.

Sobre o lado da sofisticação, a politóloga russa vê engenhosas formas de fugir a situações que seriam problemas, como é o caso de possíveis acusações de despotismo. Masha Lipman nota até que, apesar da popularidade junto do povo, Vladimir Putin nunca teve a tentação de dizer "sou presidente vitalício", algo que foi feito por antecessores seus, nomeadamente durante a União das Repúblicas Soviéticas.

Bill Clinton e Vladimir Putin (Ituo Inouye/AP)

Foi por isso que, em 2008,Putin  deu um aparente passo atrás, quando saiu do cargo de presidente assumindo o de primeiro-ministro. "Ele queria manter a aparência de estar conotado com um processo democrático", nota Masha Lipman.

Um lado que também é bem descrito por Roderic Lyne, antigo embaixador do Reino Unido na Rússia, que comparou em 2018 Vladimir Putin e Donald Trump. Em declarações à ABC News, o diplomata falava de um presidente russo que usava um "florete", enquanto o presidente norte-americano preferia o "cassetete".

Já John Beyrle, que foi embaixador dos Estados Unidos na Rússia entre 2008 e 2012, período no qual terá estado 10 a 12 vezes com Vladimir Putin, fala num homem que pode ser por vezes "irritante", mas que joga sempre de forma cautelosa para tentar tirar o melhor de cada situação, mantendo sempre uma postura calma: "Ele não gesticula, não grita. Mas há sempre uma intensidade no discurso", algo a que o diplomata atribui como uma característica que terá sido desenvolvida nos tempos do KGB.

Resumindo Vladimir Putin, o negociador, numa palavra: "Imprevisível".

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