Análise: Putin não deverá ficar por aqui

CNN , Daniel Treisman
25 fev 2022, 15:37
Vladimir Putin durante uma reunião do Conselho de Estado russo. Foto:  Alexei Nikolsky/TASS via Getty Images

Daniel Treisman é professor de Ciências Políticas na UCLA, membro do Centro de Pesquisa Avançada em Ciências Comportamentais de Stanford, e coautor de "Spin Dictators: The Changing Face of Tyranny in the 21st Century” (tradução livre - “Ditadores Rotativos: A Face Mutável da Tirania no Século XXI”)

O tempo das conversações parece ter chegado ao fim. Na segunda-feira, Vladimir Putin passou da diplomacia à ação direta.

Num dia repleto de adrenalina, o Presidente da Rússia colocou a segurança da Europa e o seu próprio futuro político na balança, com a maior jogada que já tinha arriscado nos seus 22 anos no poder.

Em duas penadas, reconheceu a independência das “repúblicas populares” separatistas de Donetsk e Lugansk, situadas no leste da Ucrânia, e enviou tropas russas de “manutenção da paz” para essas regiões, onde ele alegava sem provas que estava a ocorrer um genocídio.

O canal televisivo estatal também mostrou Putin a "consultar" o Conselho de Segurança com os seus altos representantes, que instaram para que ele reconhecesse as repúblicas. Esta sessão teve a espontaneidade cuidadosamente elaborada de um julgamento mediático da década de 1930.

O elemento mais sinistro desta encenação do Kremlin foi um discurso de 58 minutos de Putin ao povo russo. Uma mistura de aula de História tendenciosa e manifesto anti-NATO com a denúncia da "Russofobia agressiva e neonazismo" de Kiev.

Ao início de terça-feira, as tropas russas tinham entrado na região de Donbas, de acordo com Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para a Política Externa. Ninguém sabia onde eles tencionavam parar.

Muitos querem acreditar que Donbas acabará por ser o fim da linha. Talvez o objetivo de Putin sempre tenha sido reconhecer as regiões separatistas e – quase de certeza – anexá-las como a Crimeia, com tropas russas a parar na linha de contacto que separa as repúblicas autoproclamadas do resto da Ucrânia.

Nesse caso, as cerca de 190 mil tropas russas nas fronteiras da Ucrânia, os planos intercetados para atacar Kiev e a arrepiante lista de dissidentes e jornalistas a serem assassinados ou detidos (cuja existência o Kremlin nega), acabariam por ser uma distração deliberada para fazer com que o rumo da Rússia parecesse menos radical. Ao ameaçar fazer algo muito pior, o Kremlin poderia explorar o alívio do Ocidente, quando isso não acontecesse.

Se Putin parasse depois de anexar as duas repúblicas, isto poderia ser encarado como uma vitória significativa para ele. Ele teria alargado as fronteiras da Rússia pela segunda vez, tendo como base o triunfo na Crimeia. Isto iria garantir-lhe um lugar na História.

Ao não avançar mais, ele também traria uma tensão adicional à aliança ocidental, forjada quando todos esperavam uma invasão maciça. Irá a Alemanha cancelar de uma vez por todas o projeto do gasoduto Nord Stream 2, face a uma redefinição sem derramamento de sangue das fronteiras internacionais? Embora, na terça-feira, a Alemanha tenha interrompido o processo de aprovação do gasoduto, o seu destino a longo prazo continua incerto. O mais provável é que a Europa se divida quanto à extensão das sanções e as tensões podem ressurgir na NATO.

Putin já pode também gabar-se de ter consolidado o controlo sobre a Bielorrúsia, onde o Presidente Lukashenko concordou agora em deixar ficar as tropas russas indefinidamente. Com um habilidoso truque, ele colocou forças num Estado europeu, enquanto o mundo está de olhos postos noutro.

Do mesmo modo, ao obrigar o Ocidente a concentrar-se na sua jogada geopolítica, Putin limitou as atenções que estavam viradas para os crescentes abusos dos direitos humanos a nível interno. O líder da oposição, Alexei Navalny, sobreviveu ao envenenamento com um agente químico proibido e está a definhar na cadeia.

Embora os Estados Unidos tenham imposto sanções a muitos daqueles que eram considerados responsáveis, as sanções da União Europeia até agora foram mais limitadas.

Ainda assim, Putin não parece disposto a ficar por aqui. Mesmo que o objetivo a curto prazo seja dominar estas duas regiões, isso nada faz para solucionar a sua desavença com o Ocidente, que está a assumir proporções ainda maiores.

O discurso inflamado do Presidente russo, na segunda-feira, continha uma visão arrebatadora do passado da Rússia, contado a partir de uma estranha perspetiva do século XIX.

Alguns acusam Putin de querer reconstruir a União Soviética. Contudo, o violento ataque a Lenine e aos seus parceiros, no discurso de segunda-feira, acabou com essa ilusão. Para Putin, os Bolcheviques criaram a república artificial da Ucrânia. Aquilo que ele sonha reconstruir não é a URSS, mas sim o Império Russo anterior a 1917.

Voltando ao presente, Putin acusou Kiev de tentar desenvolver armas nucleares e de integrar o seu comando militar no da NATO.

Estes receios dificilmente serão mitigados com a secessão das duas repúblicas. Nem isto satisfará as persistentes exigências de Putin aos líderes ocidentais, nos últimos meses, para que houvesse um compromisso por escrito para acabar com a expansão da NATO e para que os destacamentos militares retrocedessem até às fronteiras de 1997.

Mesmo que não haja uma invasão em grande escala de imediato, Putin não deverá abdicar dos seus esforços para comprometer a soberania ucraniana e fazer recuar a NATO. E os blindados russos poderão não parar na linha de contacto.

Em vez disso, poderão tentar tomar as regiões administrativas de Donetsk e Lugansk. Ou talvez sigam caminho até Kiev, com o objetivo de destruir bases militares, purgar a elite ucraniana e impor um Governo fantoche.

Para o Ocidente, o desafio não podia ser mais claro. Se Putin for bem-sucedido no ataque à Ucrânia, não é provável que se fique por aí. A sua desconfiança em relação ao Ocidente e a visão expansionista do destino da Rússia estão agora profundamente enraizadas. A nossa política deve aumentar os custos da erosão da ordem internacional.

Num evento, em 2015, tive oportunidade de perguntar a Putin como foi o planeamento para a ocupação da Crimeia. "Até fiquei surpreendido por ter corrido tão bem!" disse-me ele, com um sorriso. O Ocidente deve certificar-se de que ele não tenha uma tarefa tão fácil, desta vez.

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