Ucrânia deve perder Avdiivka mas pode estar a abrir caminho para a Crimeia: porque são importantes as "cabeças-de-ponte" na margem esquerda do Dnipro

17 nov 2023, 14:52
Avdiivka (AP Photo)

É quase certa a perda de Avdiivka para os russos, mas os ucranianos podem estar a lançar as bases para uma ofensiva na Crimeia, mesmo que o trabalho no terreno só tenha frutos daqui a meses

O secretário-geral da NATO admitiu esta semana que a situação no campo de batalha, na Ucrânia, está "mais difícil" do que se esperava para Kiev. E as análises militares ao que está acontecer no terreno confirmam que, apesar de alguma vantagem alcançada pelas forças da Ucrânia na margem esquerda do rio Dnipro, na região de Kherson - e que pode ter reflexos a médio ou longo prazo -, Kiev poderá estar prestes a perder Avdiivka, na região de Donetsk, para as forças de Moscovo.

"Não houve, nos últimos dias, movimentações que possam alterar o curso da guerra ou ter impactos profundos no plano operacional", explica o major-general Agostinho Costa: "Não estamos ainda a falar de grandes ofensivas. A expectativa é de que nas próximas semanas, mais no final do mês ou no início do mês que vem, comece a campanha de mísseis e essa sim terá consequências no plano operacional", aponta o especialista em assuntos de segurança. Por agora, e com algum equilíbrio de meios técnicos no terreno, mantendo-se o apoio logístico ocidental à Ucrânia, a situação mais preocupante para Kiev será a iminente queda de Avdiivka, a cidade ucraniana a poucos quilómetros de Donetsk - também chamada "nova Bakhmut", devido à violência dos confrontos e aos meios chamados ao terreno. 

"É uma praça forte, uma povoação periférica de Donetsk. Caindo Avdiivka, retira a pressão da artilharia ucraniana sobre a cidade de Donetsk - os russos queixam-se muito dos bombardeamentos de Donetsk", explica Agostinho Costa. Por outro lado, a conquista de Avdiivka "enquadra-se naquela que é a manobra russa de ir empurrando a frente ucraniana, no sentido de tomar todo o oblast de Donestsk, no âmbito dos objetivos operacionais" de Moscovo, acrescenta o especialista. "A Ucrânia já terá retirado as forças de elite e deixou as forças de defesa territorial, à semelhança do que fez em Bakhmut, quando a cidade estava periclitante. É muito provável que Avdiivka também caia em breve", refere o major-general.

"As coisas não estão a correr bem para os ucranianos", diz ainda Agostinho Costa. Apesar do terreno minado, os russos estão a conseguir avançar e a Rússia está a procurar "alargar a bolsa" que conseguiu criar na região. "Há também movimentos russos na região de Bakhmut, para tentarem recuperar alguns terrenos. Há uma grande pressão russa ao longo de toda a linha da frente, mas é verdadeiramente em Avdiivka onde se vê que há uma intenção de tomar terreno", frisa o general. 

O major-general Isidro de Morais Pereira diz que é visível o "contínuo esforço russo para conquistar o reentrante de Avdiivka, a curtíssima distância de Donetsk", mas lembra que nos "fortíssimos combates" a Rússia também tem perdido muitos combatentes, apesar não abdicar da postura ofensiva. 

"Neste momento, a Rússia tem na Ucrânia cerca de 450 mil a 470 mil homens a combater. Provavelmente, a Rússia nunca teve tantos homens a combater na Ucrânia como tem agora. Mas falamos de quantidade - teremos sempre a velha questão da quantidade e da qualidade. E a Rússia já teve alguns reveses", diz Isidro de Morais Pereira. Para o especialista, a questão de uma nova mobilização forçada na Rússia não se coloca por agora, sobretudo porque Moscovo enfrenta problemas com a preparação dos militares no terreno, mais do que com o número de soldados. "Não é um problema de equipamento coletivo, é sobretudo uma questão de treino individual, de coesão e de espírito de corpo das unidades."

Agostinho Costa também acredita que, apesar de os ucranianos terem conseguido esta semana uma "série de operações bem-sucedidas" na margem leste do rio Dnipro, conforme foi anunciado pelas forças navais de Kiev esta sexta-feira, os avanços não justificam uma mobilização forçada do lado inimigo. "Não estamos a falar de uma grande ofensiva, é uma coisa pontual e tem relevância no plano dos combates da linha da frente. É sobretudo irritante para os russos porque os obriga a manter uma vigilância permanente sobre as margens do rio - e estamos a falar em largos quilómetros", explica. "No contexto geral da guerra, não tem um relevo significativo", resume Agostinho Costa. Mas Isidro de Morais Pereira acredita que pode não ser bem assim.

Uma nova frente ofensiva ucraniana a abrir horizonte para a Crimeia?

Alonguemo-nos sobre os avanços ucranianos na região de Kherson, nas margens do rio Dnipro: segundo o major-general Agostinho Costa, a informação disponível indica que as forças de Kiev conseguiram estabelecer duas "cabeças-de-ponte" na margem esquerda do Dnipro, ou seja, desmontando a terminologia militar, conseguiram conquistar posições na margem oposta do rio, em território controlado pelo inimigo junto da ponte Antonovsky. "Isto enquadra-se num conjunto de ações que a Ucrânia tem vindo a fazer para passar para a margem esquerda do Dnipro na zona de leste", explica o especialista em assuntos de segurança, acrescentando que os ucranianos têm testado formas "criativas" de fazer a travessia das águas e procurado "abrir uma frente" no local, ganhando dimensão naquela região para depois conduzir uma ofensiva que deve acontecer na próxima primavera. "Os russos têm procurado expulsar os ucranianos e não têm conseguido", admite, até por uma questão de "predominância dos ucranianos sobre a paisagem", uma vez que a margem direita do Dnipro é mais alta do que a margem esquerda, defendida pelos russos.

"O volume de forças que a Ucrânia colocou na margem esquerda ainda é significativo - estamos a falar de um batalhão, talvez um pouco mais, na casa dos 400 a 500 combatentes, mas pode chegar aos 600", estima Agostinho Costa. "Os russos até já substituíram o comandante desta zona e colocaram lá um general de primeira água para tentar resolver a questão. O que é certo é que não têm conseguido." A pressão ucraniana em Kherson também terá como objetivo obrigar as forças de Moscovo a dispersarem-se e redistribuírem-se, diz o major-general - concentram-se ali e enfraquecem-se noutros lados. 

Por outro lado, e apesar de os ucranianos também para ali terem deslocado militares, "não estamos a falar de 10 mil a 15 mil combatentes, é um volume de forças muito ligeiro", o que também dificulta a eficácia da artilharia russa: "Os ucranianos também têm de dispersar forças e não se fazem descargas de artilharia contra cinco ou dez combatentes", explica Agostinho Costa. 

O major-general Isidro de Morais Pereira lembra que o plano de combate de Kiev incluía a abertura de uma direção ofensiva vinda de Kherson, atravessando o rio Dnipro, que se dirigia diretamente à Crimeia. Mas os russos implodiram a barragem de Nova Kakhovka e criaram um "espelho de água gigantesco que tornou praticamente impossíveis as operações de transposição de um curso de água daquelas dimensões", explica. "Com a regularização do curso de água e com a aquisição de capacidades anfíbias - porque muitos soldados ucranianos foram treinados pelos Royal Marines em Inglaterra e foram adquiridas, com a ajuda americana, alemã e inglesa, muitas lanchas rápidas" -, os soldados ucranianos tomaram posse de algumas ilhas no delta do Dnipro, nomeadamente junto à referida ponte Antonovsky. 

"Mas só será possível abrir uma nova frente ofensiva quando a porção de terreno conquistado for suficientemente vasta para que uma unidade, no mínimo, de escalão brigada, possa ser colocada na margem esquerda", diz Isidro Morais Pereira. "Os batalhões não têm meios logísticos suficientes, não têm apoio sanitário, médico, suficiente. Nem têm todos os elementos de combate para poderem conduzir operações de forma independente." E conquistar essa porção de terreno será possível num futuro próximo? "Não nas próximas semanas." Mas pode permitir abrir, a médio ou longo prazo, "um horizonte para a Crimeia" que seria de importância capital, explica, porque iria obrigar o adversário russo a dispersar ainda mais as suas forças.

A Rússia está a tentar conquistar posições a leste, em postura ofensiva, a partir das quais possa lançar uma nova ofensiva de inverno. E está a tentar concentrar forças a sul para segurar as posições. "Mas se a Ucrânia colocar a Rússia perante um dilema operacional, abrindo outra frente ofensiva com grande ímpeto em Kherson, isso obrigará o comandante operacional russo a deslocar forças para ali porque as fronteiras da Crimeia focam muito perto", declara Isidro de Morais Pereira. "E depois de entrar uma unidade de escalão brigada, entram duas ou três", refere, acrescentando que, a partir de janeiro do próximo ano, as brigadas estarão provavelmente "protegidas pela aviação" - vão entrar finalmente em operações os F-16 que Kiev tanto pediu - e podem criar-se as condições para uma ameaça direta à Crimeia. 

"Uma ameaça direta à Crimeia vai colocar a Rússia perante um dilema operacional tremendo porque a Crimeia é a joia da coroa", sublinha. Em termos militares, a região anexada pelos russos a Kiev é uma zona de comunicações a partir da qual chega todo o apoio logístico. "É para ali que confluem as munições, os combustíveis, as tropas que ficam em reserva a aguardar", esclarece Isidro de Morais Pereira. "Em termos geopolíticos e estratégicos também é extremamente importante: já sabemos, desde há muito, que a Rússia pretende tornar o Mar Negro um lago seu."

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados