"Uma autêntica bomba-relógio" nas mãos de Putin. Ucrânia está a ser empurrada para "fazer a paz a qualquer preço"

11 nov 2023, 08:00
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, durante uma reunião com o Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, em 28 de setembro de 2023, em Kiev, na Ucrânia. Yan Dobronosov/Global Images Ukraine/Getty Images

O fracasso militar da contraofensiva ucraniana faz pairar dúvidas acerca da capacidade de Kiev em reconquistar o seu território. No Ocidente, a ideia de uma negociação de paz começa a ganhar força, mas há que alerte: essa cenário pode vir a colocar em causa "a nossa própria forma de vida"

Quase dois anos depois do início da guerra na Ucrânia, começam a surgir as primeiras fraturas no apoio a Kiev. O impasse militar, a guerra no Médio Oriente e a luta política em Washington estão a pressionar os principais aliados a empurrar a Ucrânia para uma negociação de paz. Este cenário arrisca-se a dar à Rússia “aquilo que ela quer” e tornar a região numa “bomba-relógio” que Vladimir Putin pode detonar a qualquer momento.

“A Rússia de Putin tem sido muito hábil a congelar conflitos. Esta tentativa de fazer a paz a qualquer preço tem dado invariavelmente maus resultados. A Rússia tem a ambição clara de reconstruir o império. Esse cenário torna a Ucrânia uma autêntica bomba-relógio”, alerta o major-general Isidro de Morais Pereira.

O cansaço de guerra é real entre os aliados ucranianos. Apesar das repetidas promessas de apoio “enquanto for necessário” de algumas das maiores figuras políticas ocidentais, a ausência de conquistas territoriais durante a tão aguardada contraofensiva está a gerar algum ceticismo quanto à intensificação do apoio a Kiev. E isso já começou a ter repercussões na esfera diplomática ucraniana. No dia 11 de outubro, vários diplomatas americanos e europeus começaram a sugerir possíveis cedências que permitam atingir um acordo de paz, durante um encontro do grupo Ramstein.

Zelensky foi rápido a rejeitar a sugestão de que a Ucrânia pode estar a ser pressionada a fazer qualquer cedência, mas não esconde o receio dos efeitos de um mundo habituado a conviver com guerra na Ucrânia. “A exaustão da guerra avança como uma onda. Vemos isso nos Estados Unidos e na Europa”, admitiu o líder ucraniano com frustração à revista Time. Agora, a situação pode mesmo agravar-se com o impasse militar que se vive no campo de batalha.

“A contraofensiva ucraniana correu francamente mal e isso deixa o Ocidente num impasse. É necessário fornecer mais material para permitir à Ucrânia recuperar o seu território. Se essa reconquista não acontecer, acabará por dar aquilo que a Rússia quer: um cansaço de guerra que leve Kiev para a mesa de negociações”, alerta a especialista em Relações Internacionais Diana Soller.

E em nenhum país esse cansaço é tão notório como nos Estados Unidos. Uma sondagem conduzida pela Reuters, após a segunda visita de Zelensky ao país, mostra que a percentagem de americanos que continua a querer que o governo forneça armas a Kiev baixou para 41%. Em junho, no início da contraofensiva, essa percentagem era de 65% - Washington enviou 75 mil milhões de dólares de ajuda direta para a Ucrânia, dos quais 46,6 mil milhões são de natureza militar.

F-16 em manobras de policiamento na fronteira da NATO com a Rússia (AP Images)

No início do próximo ano, a Ucrânia espera receber os aviões de combate norte-americanos F-16, que lhe permitam obter superioridade aérea. Mas estas armas chegam muitos meses depois dos pedidos ucranianos e podem não vir em número suficiente para mudar a situação no terreno. Se essa reconquista de território não chegar, é possível que o nível de apoio venha a diminuir ainda mais. A situação pode agravar-se ainda com o desvio de apoio militar para Israel, após o ataque terrorista do Hamas a 7 de outubro.

“Este processo já estava em curso ainda antes de deflagrar o conflito no Médio Oriente. Quando surge o ataque terrorista do Hamas, intensificou-se aquilo que já estava em curso. Percebeu-se claramente que começam a estar fartos deste apoio”, explica o politólogo José Filipe Pinto.

A piorar a situação ucraniana, a recente nomeação de um ultraconservador para presidente da Câmara dos Representantes pode trazer novas complicações para o esforço de guerra da Ucrânia, com o atraso de mais apoio. De tal forma que a União Europeia foi rápida a intervir pela voz do seu principal diplomata, Josep Borrell, que explicou que a Europa “não consegue tapar o buraco” criado pela falta de apoio enviado pelos Estados Unidos. Uma vez que a guerra terá sempre de acabar numa mesa de negociações, este cenário de falta de apoio pode obrigar a Ucrânia a ter de fazer concessões para a Rússia de Putin.

“A visão romanceada da contraofensiva chocou com a realidade, a situação no terreno chegou a um impasse e começam a surgir as fraturas a nível interno na Ucrânia. Do ponto de vista formal, os aliados vão empurrar a Ucrânia para uma solução de compromisso e isso pode tornar Zelensky parte do problema”, afirma o também professor José Filipe Pinto, , que recorda ainda que, dentro de um ano, os EUA vão a eleições e a vitória dos democratas “não é segura”.

Recentemente, o ex-presidente norte-americano Donald Trump surgiu à frente de Joe Biden nas sondagens em alguns dos mais importantes Estados, na corrida presidencial para 2024. O candidato republicano afirmou que seria capaz de terminar a guerra na Ucrânia “em menos de 24 horas” após a sua reeleição, deixando no ar a ideia de corte do envio de apoio para Kiev. Para Isidro de Morais Pereira, a reeleição de Donald Trump significaria que a Europa ficaria “abandonada”.

Donald Trump e Vladimir Putin na cimeira do G20 em Osaka, Japão (EPA)

Mas um acordo não resultaria na paz, apenas num armistício. Numa primeira instância, as armas seriam silenciadas, mas o preço a pagar seria a legitimação da conquista territorial por via militar da Rússia. Para José Filipe Pinto, esta solução resultaria numa “solução indefinida” semelhante ao que acontece na Coreia.

“Ambos os lados terão de fazer cedências. O plano de paz de Zelensky é, na verdade, um ultimato. O que a Rússia pretende também não é minimamente aceitável. O mundo está cheio de problemas que não têm soluções definitivas”, observa José Filipe Pinto.

Para a Europa, este é possivelmente o pior desfecho. A cedência territorial à Rússia a troco de paz legitimaria a política externa da Rússia de Vladimir Putin, que não esconde as suas pretensões expansionistas. Desde 2008, com a invasão da Geórgia, o Kremlin tem reacendido vários conflitos na antiga esfera de influência soviética, com a criação de repúblicas semi-independentes que utiliza para voltar a intervir na região. Foi esse o destino da Ucrânia, em 2014, com a criação das repúblicas independentistas de Lugasnk e Donetsk, utilizadas em 2022 para justificar a invasão da Ucrânia.

A existência de minorias étnicas russas – um dos principais argumentos utilizados pela Rússia para intervir militarmente no Donbass – coloca vários países europeus na mira de uma possível expansão russa no futuro.

“A cedência de território conquistado seria uma grande derrota para o Ocidente. A Rússia sentir-se-ia legitimada para fazer incursões em território soberano de outros Estados, incluindo na Ucrânia, transformando o futuro em incerteza. Seria provável que a Rússia voltasse a atacar”, alerta Diana Soller.

Apesar de registar perdas materiais muito pesadas no campo de batalha, a Rússia tem aumentado significativamente a produção industrial militar, o que lhe permitirá recompor as suas forças armadas a uma velocidade que deve preocupar o Ocidente. Para o especialista em assuntos militares Isidro de Morais Pereira, neste cenário a Rússia não perderia a oportunidade para “lamber as feridas”, reconstruir as suas capacidades militares e aguardar pelo momento certo para lançar uma nova intervenção.

"A história não se repete, mas muitas vezes rima",recorda o major-general, que compara mesmo as consequências dessas negociações de paz ao acordo do então primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain com o líder nazi, Adolf Hitler, em Munique, quando aceitou que os alemães anexassem a região dos Sudetas, na então Checoslováquia, a troco da paz. Menos de um ano depois, explodia o mais violento conflito da história da humanidade. “Neste cenário só haveria um vencedor: a Rússia. O Kremlin iria ganhar tempo, lamber as feridas e recuperar a sua capacidade militar e voltar a intervir”, antecipa Isidro de Morais Pereira.

Além disso, a Europa teria de se preparar para uma guerra de infiltração de agentes do Kremlin nas suas instituições. Os especialistas apontam para que todos os olhos estejam postos no GRU, a herdeira do KGB que opera no estrangeiro. Estas células permitem à Rússia não só obter informações privilegiadas acerca das intenções e dos planos ocidentais, como também permitem subverter e estimular o caos e a discórdia entre as instituições europeias. A conjunção destes desafios arrisca-se a pôr em causa a própria existência da União Europeia e da ordem liberal como a conhecemos.

“Nós temos um problema gravíssimo que não sabemos resolver. Em última análise, está em causa a nossa própria forma de vida. Esta ordem mundial em que há tolerância, direito à diferença, tudo isto pode estar em causa. A pior coisa que podemos fazer é dar por garantido a liberdade e a democracia”, frisa Isidro de Morais Pereira.

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