Lucro ou reputação, qual a prioridade? Um mês após o início da invasão, ainda há empresas que se mantêm na Rússia

24 mar 2022, 09:08
Nestlé (Reuters)

Apesar de uma enorme pressão por parte dos consumidores ocidentais, algumas empresas mantêm as suas operações na Rússia. A decisão pode render a curto prazo, mas os especialistas alertam que as empresas podem vir a ser castigadas no futuro

Apesar de uma crescente onda de contestação por parte dos consumidores desde que começou a invasão russa da Ucrânia, várias empresas ocidentais mantêm operações comerciais na Rússia. A Nestlé anunciou esta quarta-feira a suspensão de venda de vários produtos, no entanto, vai continuar a vender produtos essenciais. A Renault tinha anunciado a posição controversa de retomar a produção, mas, após o apelo de Zelensky no parlamento francês, voltou atrás, também esta quarta-feira. No entanto, empresas como a Decathlon, Auchan, Leroy Merlin e Danone continuam a operar na Rússia. Mas afinal, porque é que algumas empresas ocidentais se recusam a abandonar a Rússia?

É mais fácil destruir a imagem de uma marca do que construi-la. Para Hélia Gonçalves Pereira, reitora da Universidade Europeia, as marcas que operam na Rússia têm sérias questões reputacionais em cima da mesa, uma vez que devem operar em total alinhamento com o consumidor. “O consumidor é simultaneamente o cidadão, e o cidadão penaliza muito a invasão da Ucrânia pela Rússia”, explicou.

Para a especialista, a guerra na Ucrânia está a marcar profundamente a imagem que o consumidor tem das marcas, fazendo com que este espere que os gigantes comerciais tomem medidas que espelhem os seus valores.

“As marcas, que em muitos casos devem atuar com alguma humanização, devem tomar uma decisão como se fossem uma pessoa. Ou seja, as pessoas não se querem relacionar com a Rússia e, por isso, as marcas não se devem relacionar com a Rússia, ficando mais alinhadas com as expectativas dos seus clientes”, refere.

Agradar o consumidor ou o acionista? 

“Algumas destas empresas não conseguem encontrar uma justificação para dar aos acionistas para explicar porque é que destruíram milhares de milhões”, afirma à CNN Portugal o professor catedrático do ISEG João Duque. No entanto, o economista sublinha que os acionistas também podem questionar por que motivo os gestores não abandonaram as operações na Rússia, “destruindo o futuro da empresa” e da sua reputação.

Nem todos os casos são explicados pela busca do lucro. No caso da Nestlé, em 2021, apenas 2% da sua receita de 87,09 mil milhões de francos suíços (94,2 mil milhões de euros) é feita na Rússia. O gigante da alimentação tem mais de sete mil empregados na Rússia, seis fábricas e manteve-se operacional neste país durante quase um mês de invasão da Ucrânia. Porém, acabou por ceder ao anunciar a restrição de venda de vários produtos em território russo, relembrando, através de um comunicado, que já tinham "interrompido as importações e exportações não-essenciais de e para a Rússia, parado toda a publicidade, e suspendido todo o investimento de capital no país”.

Já o Auchan mantém-se sem tomar qualquer posição pública sobre o conflito. A cadeia de supermercados entrou no mercado russo no ano de 2002. Desde então, expandiram o seu negócio com mais de 311 lojas e empregam mais de 41 mil funcionários. Em 2021, o grupo fez 3,1 mil milhões de euros em receita na Rússia, de um total de 30 mil milhões. É o terceiro maior mercado para o grupo, seguido de Espanha e França.

Diferente era o caso da Renault, que, desde 2016, é detentora de 67% da AvtoVAZ, a maior fabricante russa de automóveis. Só aqui, a empresa francesa tem mais de 40 mil trabalhadores e, no ano passado, vendeu mais de 350 mil veículos, contribuindo para o regresso aos lucros. A Renault suspendeu a produção na Rússia na altura da invasão, alegando problemas logísticos, retomou-a na segunda-feira, com fontes ligadas ao processo a garantirem que tinha o apoio do governo francês, mas, esta quarta-feira, depois de um discurso de Zelensky no parlamento francês, a empresa que tem como acionista o Estado francês anunciou nova suspensão.

“Em todas as circunstâncias, a empresa despede os quadros superiores, a empresa fecha, mas os ativos estão lá e podem ser geridos por entidades locais. Esse é um fator que as empresas vão ter em conta. Elas pensam: ‘tenho aqui milhões investidos, venho-me embora e perco tudo’. Algumas delas pensam que é melhor minimizar os estragos”, explica João Duque.

Mesmo abandonando as operações na Rússia, não é certo que elas deixem de funcionar. É esse o exemplo do McDonald’s, que anunciou a saída da Rússia, mas que continua a operar no país, uma vez que os “franchisados têm acesso a fornecedores locais”, pelo que conseguem manter tudo aberto, independentemente do risco de ficarem impossibilitados de utilizar a imagem da empresa.  

Questionado sobre o porquê de algumas destas empresas se recusarem a abdicar das operações na Rússia apesar deste país não representar uma parte significativa das suas receitas, João Duque refere que muitos dos gestores destas empresas acreditam que os consumidores ocidentais estão demasiado “fidelizados às marcas”, que não serão afetadas. 

As marcas que decidem não deixar de ter presença na Rússia podem ter uma “menor sensibilização” para o impacto que essa decisão poderá ter nos seus clientes. Helena Gonçalves Pereira acredita ainda que estas companhias podem achar que o cliente tem “uma memória relativamente curta” e que, no curto-prazo, poderão ter problemas, mas que, no médio e no longo prazo, poderão sair ilesos desta situação.

“Na Europa, esta guerra só é comparável com a Segunda Guerra Mundial, e vai deixar marcas quer nas futuras gerações de ucranianos, quer nas pessoas que estão a assistir, ainda que à distância. Portanto, acho que as marcas que não tomarem uma decisão com alguma firmeza em relação a esta situação sofrerão a prazo as consequências disto”, alerta.

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