Esperança em dias de cólera

13 mar 2022, 18:55

Não há como dizer de outra forma, a guerra na Ucrânia passou de vez a ser em toda a Ucrânia. O ataque lançado contra a base militar de Yavoriv, a muito poucos 25 km da fronteira polaca, a que acresceu o bombardeamento do aeroporto de Ivano-Frankivsk (na parte ocidental do País), significa, doravante, uma coisa muito simples: não haverá zonas poupadas.

Não se vê razão particular para a escolha destes alvos que não seja a de levar para o terreno aquilo que a Rússia reivindicou de forma muito clara ter o direito de fazer. Os destinatários da mensagem não são sequer os elementos do aparelho político-militar da Ucrânia. São, isso sim, os dois presentes-ausentes: NATO, a União Europeia e os Estados Unidos (membros da NATO, mas caso à parte).

Em relação ao ataque de hoje, ficou mais perto da fronteira polaca que a distância que vai do Porto a Vila do Conde (deixo a cada um a tarefa de repetir o exercício a partir do seu ponto de partida).

O “aviso” tinha antes sido feito aos Estados Unidos pelo vice-MNE russo, Sergei Ryabkov: a Rússia deixava claro que consideraria como alvos legítimos os comboios de transporte de armas e outro apoio militar para Ucrânia. Olha-se para o mapa, olha-se para a Polónia, olha-se para a base militar atingida, onde chegava parte do material militar que tem como destino a Ucrânia (além de ser frequentada por instrutores da NATO) e só não vê quem não quer ver.

O Presidente da Polónia, Andrzej Duda, falou então de uma linha vermelha, estabelecida pela NATO, se a Rússia usar armas químicas. Não sei a que se refere aquele responsável polaco, ou a que corresponde a “mudança das regras do jogo” que também mencionou. Mas, depois do episódio dos Mig 29 que daqui para ali mas afinal não foram, mais esta tomada de posição revela, como dizer?, menos serenidade.

Sei, também, que a última vez que se ouviu falar de forma consistente em linhas vermelhas e uso de armas químicas (em simultâneo) foi em 2013, quando o então Presidente Obama se expressou nestes termos, ou em termos similares, a propósito do uso de armas químicas na Síria. Se forem usadas armas química, disse, passa-se uma linha vermelha, e haverá uma resposta. Foram, é claro, usadas armas químicas (e não só pelo regime de Damasco).

E nós, nada: de França, com voz grave, só saiu um “non”, e o Governo do Reino Unido remeteu com a necessária urgência para o Parlamento para dali se extrair um “no”.

E o Presidente dos Estados Unidos? Disse, já depois do ataque com armas químicas, uma coisa que é difícil esquecer. Que, perante um ataque como aquele que acabara de ocorrer na Síria, tinha competência total para lançar uma ação militar punitiva, e nem queria saber do Conselho de Segurança para tomar e mandar executar a decisão. Porém, da forma mais democrática possível, entendia ser melhor enviar ao Congresso a apreciação do assunto, e este que aprovasse, sabendo-se que defendia que a força fosse a única resposta possível. Suponho que, ainda hoje, a questão ande a vaguear por aqueles corredores como o fantasma da Ópera, e que nem os arquivistas mais idosos e antigos saibam, exatamente, onde pára. E a “red line”? Também deve ter andado por lá, coitada – só sei que, até hoje, nunca mais tinha sido vista.

Custa bastante reconhecê-lo, mas quem reagiu perante mais ataques com armas químicas na Síria, em 2017 e sobretudo em 2018 (porque, aí, com a participação da França e do Reino Unido) foi o então Presidente americano Donald Trump. Portugal disse na altura uma coisa muito importante. Não que estes ataques fossem lícitos, porque só o seriam com a intervenção do Conselho de Segurança, mas que “compreendia” que este fosse o único meio para sancionar o recurso a armas de destruição massiva.

Mas, voltando aos factos de hoje, e como em quase tudo, podemos ver o copo meio cheio ou meio vazio.

Comecemos pelo olhar do copo meio vazio. Por um lado, à pergunta sobre a Rússia tem o direito de atacar nos termos em que o invoca poder fazê-lo, a resposta é sim. Ora, antes que se assistam em alguns que possam estar a ler erupções bruscas de testosterona, o que aqui se discute não tem a ver com quem é o agressor ou com quem violou, grosseiramente, o direito internacional a 24 de fevereiro. Reporta-se, antes, a um conflito armado em curso e à definição de quais os alvos legítimos que podem ser selecionados pelas partes. Pobres daqueles que pereceram neste ataque, e foram dezenas, infelizmente. No entanto, por muito que seja doloroso assumi-lo, uma base militar será à partida, sempre, um alvo legítimo. E se os russos conseguirem descobrir onde, e de que modo, chega a mãos ucranianas o apoio militar externo, terão, em princípio, o direito de lançar um ataque para o impedir. Ora, sendo a hipótese de difícil juízo se o ataque ocorrer antes da entrada desse apoio em território ucraniano, dentro da Ucrânia, a legitimidade deverá considerar-se evidente.

Nem tudo será tão sombrio. Os ataques no ocidente na Ucrânia representam um aviso que seria arrogante ignorar, como também seria lamentável que nos afastasse do caminho já traçado. Estas ações evidenciam, porém, de modo seguro, que a Rússia está a sentir na pele o apoio militar recebido pela Ucrânia – o que abona a favor da estratégia seguida pelos muitos que foram até essa linha fina para ajudarem a parte fraca e atacada.

Em segundo lugar, como o sal e a pimenta nas receitas de cozinha, esta é uma escalada da Rússia q.b., relativamente contida. Menos mal, principalmente olhando às declarações do Presidente ucraniano, que certifica aquela que poderá ser uma mudança na posição russa relativamente à negociação de um fim das hostilidades.

Em relação a todas as análises que tenho lido, muitas belas brilhantes, talvez continue a preferir a de quem tem mostrado um flair agudo para sentir de onde vem o vento. Esta avaliação foi, já hoje, confirmada tanto pela parte ucraniana como pela parte russa. Se a primeira, representada por um dos negociadores principais, Mykhailo Podolyak, afirma que a Rússia está, pela primeira vez, a agir de forma construtiva, é positivo. Se o mesmo considera possíveis resultados dentro de dias, é positivo e uma excelente notícia, e tanto pior para quem gostaria que o jogo continuasse.

A guerra está aí. Mas, como disse Aristóteles na sua “Ética a Nicómaco” (X, VII, 6), e como aliás bem antes tinha dito Sun Tzu, o objetivo da guerra é a paz. A afirmação está corroída pelo uso, pelas vulgatas de citações e frases feitas, mas, ainda assim, faz sentido no atual contexto.

Mudando um pouco de assunto, quase todos os meios de comunicação deram especial destaque à chegada à Ucrânia de um dos mais conhecidos snipers do Mundo (vários dizem ser o melhor), um franco-canadiano que usa como alcunha Wali, que vai juntar-se ao grupo canadiano que já se encontra no território a combater. Sobre isto, uma ou duas coisas. A primeira é a de que, a ter sentido a necessidade de ir para a Ucrânia, é bom que tenha escolhido lado certo, pelas suas excecionais competências. É que, conta o jornal Marca, um bom sniper consegue matar, por dia, 5 a 6 pessoas. Um muito bom, entre 7 e 10 pessoas. O “nosso” Wali, num dia bom, consegue matar 40.

Excecional, de facto.

No entanto, deve ser defeito próprio, mas estas notícias, pela encenação eufórica e algo cinematográfica, deixam um travo estranho. Deve ser mania, admito, até porque, ao longo da história militar, todos têm as suas referências, os seus heróis, desde o Soldado Milhões (de seu nome Aníbal Augusto Milhais) ao Barão Vermelho ou a John McCain. Na categoria dos snipers, Vassili Zaitsev é das figuras mais míticas e fora de norma da Segunda Guerra Mundial, e mais ficou desde o “Enemy at the Gates”, de Jean-Jacques Annand. Também, mais recentemente, haverá que referir Chris Kyle, figura polémica, mas de quase todos conhecida desde o “American Sniper”, realizado por Clint Eastwood. De alguma forma, com um herói franco-atirador para cada lado, fica ex post facto restabelecido o equilíbrio entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética, como no naquele “Rocky”, pr’aí o XXXII, em que num combate “final” se afrontavam em Moscovo dois dos mais gloriosos canastrões da história do cinema, Sylvester Stallone e Dolph Lundgren. Todos se lembrarão de quem ganhou, mas quem ainda tiver dúvidas fica sem elas sabendo-se que o realizador foi Sylvester Stallone.

Há paralelismos, há coincidências ou quase coincidências, que devem ser inocentes, simples acasos. Mas a chegada de Wali à Ucrânia pode ser comparada à de uma grande contratação no futebol, à chegada de um astro ao aeroporto para participar naquela que vem sendo a edição de 2022 da Primeira Liga da Morte na Ucrânia. O paralelismo é ainda mais interessante se compararmos Vassili Zaitsev, o herói russo da batalha de Estalinegrado, como este herói que agora desembarca na Ucrânia para outras batalhas. O simbolismo é evidente. Realmente, quando Estalinegrado era martelada pelas forças alemãs, Zaitsev surgiu como a esperança última, como representação viva de um povo triturado e sofrido. Wali, é claro que numa outra dimensão e salvas as devidas proporções, representará um pouco disso para os ucranianos. Se têm a seu lado alguém capaz de atingir um alvo a vários quilómetros, como poderão perder? Não podem. Mas há mais. Zaitsev até depois de vivo foi importante. Realmente, tendo morrido em Kiev, em 1991, os seus despojos foram disputados durante quinze anos por Ucrânia e Rússia. Cada um precisa de heróis, mesmo que apenas através da captura da sua memória.

Para terminar, não é um remake do “make love, not war”, mas anda lá perto. Um amigo fez-me saber que, na Lituânia, há sentido de humor, e do bom – e é sempre bom saber que inteligência e humor não fenecem durante os conflitos. Em Vilnius, a morada da embaixada russa mudou de nome, pois que agora foi nomeada “Rua dos Heróis Ucranianos”. Imagine-se a abertura da correspondência na embaixada, todos os dias, a ler aquela morada. E pense-se, melhor ainda, no senhor embaixador a escrever (vejo-o com uma bela caneta de tinta permanente) na sua correspondência o remetente e o respetivo endereço…

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