20 dias de desespero: a história dos últimos jornalistas em Mariupol

22 mar 2022, 19:48

Presenciaram o início do cerco russo a Mariupol e viram o caos instalar-se na cidade. Durante mais de duas semanas, filmaram e fotografaram o resultados dos constantes ataques russos a posições civis

Durante 20 dias, foram os olhos e os ouvidos do mundo em Mariupol, numa altura em que a cidade costeira do Donbass já tinha sido completamente cercada pelos soldados russos. Talvez por esse motivo, Evgeniy Maloletka e Mstyslav Chernov, tinham os seus nomes numa lista do exército russo de alvos a abater.  

“Onde é que estão os jornalistas?”, gritou um soldado ucraniano que entrou noite dentro no interior do hospital onde os jornalistas se encondiam. “Se eles vos apanham, ele põe-vos em câmara a dizer que tudo aquilo que vocês filmaram foi falso. Todos os vossos esforços e tudo o que fizeram em Mariupol foi em vão”, gritou um soldado ucraniano”.

Desde dia 24 de fevereiro, no dia em que chegaram à cidade e em que a invasão russa começou, os dois jornalistas testemunharam e captaram com as suas câmaras o escalar da violência, os bombardeamentos indiscriminados, o fim da eletricidade, da água canalizada, os mortos e as valas comuns. Nesses longos dias de incerteza, encontraram refúgio num hospital, onde os médicos os obrigaram a vestir-se com uma bata branca de forma a estarem “camuflados”. Mas, em Mariupol, nem isso era a garantia de sobrevivência. Um médico que “se aventurou” a ir à rua em plena luz do dia foi prontamente alvejado por um sniper russo.

Vítima dos bombardeamentos russos é assistida num local improvisado em Mariupol (AP Photo/Mstyslav Chernov)

Cerca de um quarto dos 430 mil habitantes da cidade abandonaram a cidade nos primeiros dias, enquanto as saídas da cidade ainda não eram compostas por dezenas de controlos militares. Na véspera dos combates, poucos eram os que acreditavam que uma guerra estava para vir, Mstyslav Chernov era um deles, mas quando se aperceberam da gravidade do que tinha acabado de acontecer, já era tarde demais.

“Uma bomba de cada vez, os russos cortaram a eletricidade, a água, o abastecimento de alimentos e, finalmente, crucialmente, as torres da rede móvel, rádio e televisão. Os poucos jornalistas da cidade saíram antes que as últimas conexões terminassem e um bloqueio completo se instalasse”, contou Chernov num artigo publicado esta terça-feira.

O bloqueio não foi um acaso da guerra, mas sim algo planeado pelo lado russo. O objetivo? O caos. E em Mariupol, o plano correu na perfeição. Quando as pessoas não sabem o que se está a passar, elas entram em pânico, relata o jornalista. E em nenhuma outra cidade isso aconteceu tão claramente. Para além do pânico, a ausência de informação dava aos russos o poder da impunidade.

“É por isso que corremos tantos riscos para poder enviar ao mundo o que vimos, e foi isso que deixou a Rússia com raiva o suficiente para nos caçar. Eu nunca senti que quebrar o silêncio era tão importante”, escreveu o jornalista.

E o único sítio em Mariupol que o permitia o fazer era precisamente num dos hospitais, onde os médicos deixavam os jornalistas carregarem as suas câmaras e dispositivos depois de horas no terreno a fotografar e a registar a realidade que se vive na cidade sitiada. Para enviar a informação para o exterior, era necessário ir até às janelas de sétimo andar do edifício. Nessas mesmas janelas, os jornalistas observaram o desmoronar do que restava do civismo na cidade, com centenas de pessoas a pilhar uma das maiores lojas da cidade no meio de um bombardeamento russo, acabando por ser atingida com uma bomba. Menos de 20 minutos depois, os feridos começaram a entrar sem parar no hospital, alguns dos quais eram transportados por carrinhos de compras.  

A única forma que tinham de comunicar com o mundo exterior era através de um telemóvel por satélite, que só funcionava no exterior, obrigando os dois jornalistas a ficar expostos às balas e aos bombardeamentos enquanto tentavam contactar com o resto do mundo.

A ausência de contacto com o exterior deu lugar aos rumores. Todos os dias, as pessoas presas em Mariupol especulavam e diziam que o exército ucraniano estava prestes a chegar e a libertar a cidade do cerco russo, mas todas as noites essa esperança esmorecia.

A importância do seu trabalho veio ao de cima quando a maternidade de Mariupol foi bombardeada, matando várias pessoas, incluindo mulheres grávidas e os seus filhos. O resultado do seu trabalho abalou o mundo ocidental e provocou a ira do Kremlin. Através da embaixada russa em Londres e diversos meios de comunicação locais, Moscovo partilhou informações com o objetivo de descredibilizar as imagens de uma mulher grávida ferida após esse ataque, alegando que estas eram falsas. A mulher acabou por morrer juntamente com o filho poucos dias mais tarde.

Grávida ucraniana mortalmente ferida após bombardeamento russo em maternidade em Mariupol (AP Photo/Evgeniy Maloletka)

O intensificar da situação levou as autoridades ucranianas a darem ordem para que o exército obrigasse os dois jornalistas a sair da cidade o mais depressa possível, numa viatura civil, com mais três pessoas. Passaram dezenas de entrepostos militares russos, onde testemunharam que o aperto à cidade é cada vez maior.

Os dois jornalistas já se encontram em segurança, mas sempre que vêem as imagens de um edifício em Mariupol a ser bombardeado, sentem o instinto de querer correr para o local, mas, agora, já não há forma de o fazer. “Fomos os últimos jornalistas em Mariupol. Agora não há nenhum”, sublinhou.

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