Um dono de um café e uma estrela da alta finança. Os homens à frente das secretas israelitas e as megaoperações que lideraram

15 out 2023, 08:00
Espionagem

Um era dono do “Cafe Baghdad”, um dos mais icónicos bares de Telavive nos anos 90, outro tornou-se numa estrela em ascenção no mundo da alta finança em Israel. Estas são as histórias e os bastidores das megaoperações que envolveram os dois homens à frente dos mais importantes serviços secretos israelitas e que, atualmente, estão no centro das atenções depois de o Hamas ter concretizado o ataque mais mortífero ao território em meio século

O autocarro seguia a rota n.º 300 em direção ao Sul de Israel quando foi sequestrado. Eram 7:30 e, com 41 pessoas a bordo, guerrilheiros da Frente Popular de Libertação da Palestina utilizaram facas e uma mala que, alegadamente, continha explosivos para desviarem a rota até à fronteira do Egito. Os raptores exigiam a libertação de 500 árabes detidos em Israel e, depois de um impasse de 24 horas, só foram intercetados com a entrada de uma equipa de comandos da Sayeret Matkal, uma força especial de elite do Exército israelita.

Corria o ano de 1984 e o incidente viria a ficar para a história como uma das mais polémicas operações de resgate em  Israel. Dois dos quatro responsáveis pelo sequestro foram mortos no local e os outros viriam a ser executados por ordem do chefe das secretas Avraham Shalom que, após as circunstâncias terem sido tornadas públicas pela imprensa israelita, foi forçado a demitir-se. 

Dois dos soldados que pertenciam àquela divisão de elite, Ronen Bar e David Barnea, lideram hoje os mais importantes serviços secretos israelitas - a Mossad e o Shin Bet. Têm estado no centro das atenções desde o ataque do Hamas a território israelita, no dia 7 de outubro.  

Um chegou a ser dono do “Cafe Baghdad”, um dos mais icónicos bares de Telavive nos anos 90, e outro tornou-se numa estrela em ascenção no mundo da alta finança em Israel. Agora têm entre mãos uma das maiores crise de segurança interna em Israel.

Forças de segurança israelitas com um dos responsáveis pelo sequestro do Autocarro 300

 

Quem são os homens à frente da Mossad e do Shin Bet?

David Barnea, de 58 anos, foi nomeado diretor da Mossad, em junho de 2021 e, no mesmo ano, em outubro, Ronen Bar foi escolhido para liderar o Shin Bet. E ainda que estes homens tenham muito em comum, as duas organizações que controlam têm objetivos e modos de atuar perfeitamente distintos.

À esquerda David Barnea, líder da Mossad. À direita, Ronen Bar chefe do Shin Bed/ Getty

Os operacionais da Mossad dedicam-se principalmente a recolher informações sobre governos, indivíduos e organizações estrangeiras que representem uma ameaça para a segurança de Israel, já o Shin Bet é a agência responsável pela proteção da segurança nacional do país contra ameaças internas, como o terrorismo e a espionagem. 

“Há diferenças em termos de personalidade entre um oficial de informações que opera no estrangeiro e um oficial de informações que tem responsabilidades internas ou domésticas”, explica à CNN Portugal Victor Madeira, especialista em segurança nacional e membro associado do Centro para o Estudo de Subversão e Terrorismo, no Reino Unido.

Introvertidos, analíticos e quase académicos

Victor Madeira explica que os oficiais de informações que se dedicam à proteção interna, como os do Shin Bet, “tendem a ser mais introvertidos, porque o foco desse tipo de trabalho é muito mais investigativo e analítico”. São pessoas que falam a língua e os diferentes dialetos de quem estão a investigar e passam muitas horas nos escritórios a investigar não só a cultura do alvo, mas também a estabelecer uma rede de ligações e movimentos que possa colocá-los em vantagem. “A qualidade é tal que eles dedicam uma carreira inteira só a aprofundar o conhecimento do adversário”, acrescenta.

O objetivo é encontrar “uma agulha no palheiro”, como caracteriza José Filipe Pinto, professor catedrático e especialista em Relações Internacionais. E “há uma necessidade premente destes serviços conseguirem um grau de especialização muito elevado, porque Israel está rodeado de países que continuam a contestar a sua existência e por muitos grupos terroristas, cujo objetivo principal é destruição deste Estado”.

Não foi uma “agulha no palheiro” a expressão usada pelos jornais israelitas para descrever um dos maiores sucessos da Shin Bet na última década, mas foi parecida. “Uma informação de ouro” lia-se na manchete do jornal ynet em setembro de 2014 que contava como um agente, de nome R., tinha conseguido localizar os dois membros do Hamas responsáveis pelo assassinato de três adolescentes israelitas, raptados durante uma caminhada a sul de Jerusalém.

Naftali Fraenkel, de 16 anos, Eyal Yifrach, de 16 anos, e Gilad Shaar, de 19 anos, foram  mortos por militantes islâmicos, que os raptaram quando iam da escola para casa, a 12 de junho de 2014. Os  corpos foram encontrados debaixo de uma pilha de pedras perto da cidade de Hebron, na Cisjordânia / Luis Sinco/Los Angeles Times via Getty Images

Depois de meses de interrogatórios, R. liderou a equipa que conseguiu quebrar o “círculo fechado” de familiares que conheciam a posição dos dois suspeitos e identificá-los numa câmara subterrânea dentro de um edifício de dois andares perto do hospital Al-Ahli. Utilizando esta informação, militares israelitas cercaram a zona e, perante a falta de resposta destes militantes do Hamas, utilizaram uma retroescavadora para penetrar o refúgio e matar estes dois suspeitos.

O nome completo de R.- Ronen Bar - só viria a ser descoberto em outubro de 2021 quando o, na altura primeiro-ministro, Naftali Bennett anunciou-o à imprensa israelita como o novo líder da Shin Bet

Chamas e fumo saem da casa explodida de Amer Abu Eisheh, um dos dois palestinianos suspeitos da morte de três israelitas raptados, na cidade de Hebron, na Cisjordânia, a 1 de julho de 2014/ Getty Images

 

Casado e com três filhos, segundo um perfil feito pelo Times of Israel, Bar é um ávido nadador e fã de basquetebol. No final dos anos 80 colocou uma breve pausa no serviço militar para, juntamente com dois amigos, fundar o bar "Cafe Bagdad", na rua Ben Yehuda, em Telavive que funcionava 24 horas por dia. Foi lá também que conheceu a sua mulher, 

Ronen Bar entrou no Shin Bet em 1993. Em 2011, foi nomeado chefe da Divisão de Operações da organização antes de, cinco anos mais tarde, vir a ser promovido a chefe do departamento de desenvolvimento de recursos. Passou ainda pela vice-presidência, antes de chefiar toda a organização.

Ex-presidente de Israel Isaac Herzog ao lado do atual líder dos espiões da Shin Bet, Ronen Bar (à direita) e do antigo diretor desse serviço, Nadav Argaman / D.R

 

Victor Madeira, especialista em contra-ingerência, afirma que há uma cultura dentro das secretas israelitas de promoção do herói da organização. “São geralmente oficiais que tiveram um grande sucesso operacional”, conta, dando o exemplo de Yossi Cohen, o anterior chefe da Mossad, que ordenou e dirigiu pessoalmente o plano para infilitrar e roubar os arquivos nucleares secretos do Irão, no centro de Teerão, em janeiro de 2018.

Camaleões com tendência a ser "o centro da festa"

Portanto, David Barnea, o atual líder da Mossad, tem uma herança grande para carregar. Uma herança de uma agência conhecida “por ir onde os outros não vão e por tomar riscos que os outros evitam”, explica Victor Madeira, sublinhando que o perfil dos espiões da Mossad é muito diferente daqueles que fazem parte do Shin Bet. “São pessoas que adoram estar à volta de pessoas”. “Geralmente, diz-se que são pessoas que têm tendência a ser o centro da festa e às quais todas as outras pessoas gravitam”. 

Uma segunda característica, continua Victor Madeira, é a de se tornarem “muito bons camaleões”. Isto porque, explica, uma grande parte do trabalho de um oficial da Mossad é recrutar espiões. “Um oficial da Mossad, ela ou ele próprio não é o espião. O espião é a pessoa que o oficial da Mossad recruta, que é, geralmente, um cidadão de um país estrangeiro que concorda em fornecer informações”. Por isso, concretiza, “o oficial tem de se adaptar ao agente que está a ser recrutado”, de forma a conseguir a sua confiança e a colocá-lo à vontade em situações de risco.

Foi precisamente neste tipo de atividade que David Barnea se especializou, um ano e meio antes de a Mossad o enviar como oficial de recrutamento para a Europa, onde fez carreira a recrutar agentes secretos, segundo o livro ‘Espiões contra o Armagedão’, escrito pelos jornalistas Dan Raviv e Yossi Melman (Levant Books, 2012). Barnea dedicou mais de uma década a estas “operações de informação humana”, subindo até ao cargo de chefe da estação europeia da Mossad, a mais movimentada da agência.

O chefe da Mossad, David Barnea (no centro), assiste à cerimónia da guarda de honra do novo chefe militar de Israel, no Ministério da Defesa israelita, Telavive, a 16 de janeiro de 2023 (Getty)

 

Antes de entrar na Mossad, em 1996, Barnea estudou economia e finanças na Escola de Gestão do Instituto de Tecnologia de Nova Iorque e, mais tarde, quando voltou a Israel trabalhou como economista no departamento comercial de um banco central de investimento, tendo sido considerado uma estrela em ascensão por ter promovido negócios importantes, fusões e aquisições, relata o jornal Jerusalem Post. A experiência como investidor bancário viria a ajudá-lo a abrir empresas fantasma na Europa e no Sudeste Asiático, para permitir a infiltração de espiões no Irão. 

Barnea viria a alcançar grande destaque dentro da organização precisamente pela sua forma de pensar fora da caixa e ser um adepto de armas operadas por inteligência artificial. Em novembro de 2020, supervisionou o assassinato de Mohsen Fakhrizadeh, o físico tido como chefe do programa nuclear iraniano. 

Uma metralhadora computorizada equipada com inteligência artificial foi utilizada para matar Fakhrizadeh com um único tiro. A arma foi acionada via satélite e controlada remotamente por um atirador em Israel, que premiu o gatilho a mais de mil quilómetros de distância.

Operações deste tipo ajudaram a cimentar a posição da Mossad como um dos serviços secretos mais sofisticados do mundo, afirma José Filipe Pinto, mas “há muito trabalho executado através das palavras e da influência”. “No caso de Israel, obviamente a principal ameaça é externa, mas depois é preciso o uso desses serviços para influenciar a opinião pública e estabelecer lobbies que, nesta nova fase de conflito, vão transmitir contra-informação e desinformação com o intuito de sobrepor-se à posição palestiniana”, acrescenta o especialista em diplomacia e relações internacionais.
 

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