Mundo está a mudar e estes conflitos podem estar prestes a acontecer

11 dez 2023, 08:00
Explosão na cidade Síria de Kobani (Gokhan Sahin/Getty Images)

Nenhum continente está a salvo. De feridas históricas abertas, a necessidades geopolíticas, várias intervenções militares podem estar no horizonte

"O horrível sistema mundial neocolonial deixou de existir e a ordem mundial multipolar está a ser fortalecida", proclamou o presidente russo Vladimir Putin, durante o Fórum Económico de São Petersburgo, no verão. A sua invasão, defende, quebrou por completo a ordem mundial estabelecida pelo Ocidente, que diz querer restringir potências como a Rússia ou a China. Especialistas defendem que o líder russo pode não estar errado. Com os Estados Unidos da América focados na guerra no Médio Oriente entre Israel e o Hamas, e com os olhos postos em Taiwan, sem esquecer a ajuda à Ucrânia, vários outros conflitos começam a ganhar forma.

Sangue pelo Mar Vermelho

Perto do corno de África, um simples discurso pré-gravado fez soar todos os alarmes na região. No dia 13 de outubro, o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, afirmou ao seu parlamento que as fronteiras naturais começam no Mar Vermelho e que a prosperidade do país depende disso. “Uma população de 150 milhões não pode viver numa prisão geográfica”, declarou, anunciando ainda o estabelecimento de uma força naval quando não tem acesso ao mar.

As palavras vieram sem aviso e fizeram tremer os países vizinhos, como a Somália ou o Djibuti, mas ninguém prestou tanta atenção a este discurso como o governo da Eritreia. Durante quase quatro décadas, entre 1951 e 1993, a Etiópia teve acesso ao mar através do território da Eritreia, num período marcado por confrontos entre as duas partes.

Dias depois do discurso, a Etiópia levou a cabo uma parada militar na capital, com o governo e a chefia militar a alertar que o país deve estar pronto para a guerra. A situação deteriorou-se ainda mais quando imagens de satélite detetaram a presença de forças militares etíopes junto à fronteira com a Eritreia.

Abiy diz que as exigências da Etiópia ainda podem ser atingidas através de negociações pacíficas com os países vizinhos. No entanto, não esconde estar disposto a recorrer à última via para garantir que a Etiópia tem aquilo que quer. “Se não for alcançado por outros meios, a guerra é o caminho”, garantiu o responsável etíope.

Addis Ababa e Asmara têm uma longa história de conflito. Depois de dois anos de guerra na fronteira, entre 1998 e 2000, a Etiópia ficou proibida de utilizar os portos da Eritreia. Foi preciso esperar até 2018 para ver uma melhoria na situação, quando Abiy Ahmed chegou ao poder. No acordo de paz que o líder etíope assinou com o ditador Issaias Afwerki estaria a possibilidade de utilizar os portos vizinhos sem cobrança de taxas aduaneiras em troca dos territórios ocupados depois o início da guerra. O acordo valeu um prémio Nobel a Abiy Ahmed no ano seguinte.

Mas poucos meses depois regressaram as tensões. A fronteira voltou a ser fechada e a utilização dos portos acabou por tornar-se uma mera miragem que a Etiópia nunca viu concretizada. Agora os medos de uma nova campanha militar intensificam-se com o exército etíope a acumular meios na região de Zalembessa, a menos de 160 quilómetros da capital da Eritreia, e a menos de 80 quilómetros do importante porto de Assab. Mas a Eritreia conta com perto de nove divisões mecanizadas junto à fronteira. Uma força de aproximadamente 40 mil soldados, pronta para responder.

Ainda assim, o conflito não é certo. Os dois lados, que se juntaram em 2020 para lutar contra o movimento de libertação do Tigray, ainda não recuperaram daquele que foi um dos mais violentos conflitos dos últimos anos. De acordo com o mediador de paz da União Africana e antigo primeiro-ministro nigeriano, Olusegun Obasanjo, mais de 600 mil pessoas perderam a vida. Meses antes do conflito rebentar, Abiy Ahmed insistia que não queria a guerra no Tigray. Agora, a guerra regressa ao horizonte africano e o destino da região volta a estar nas mãos de um só homem: Abiy Ahmed.

No drugs

Com a crise dos opioides nos Estados Unidos da América a atingir níveis preocupantes, várias figuras políticas do Partido Republicano apelam a uma intervenção militar no México para travar os cartéis que traficam fentanil. A ideia não é nova, foi avançada pela primeira-vez pelo antigo presidente norte-americano Donald Trump. Com as sondagens a darem Trump isolado nas preferências dos eleitores para ser o candidato da direita e à frente de Joe Biden, a possibilidade do regresso desta estratégia ao debate político americano é cada vez mais provável.

Os Estados Unidos têm um problema com o consumo de opioides, mas nenhum é tão problemático como o fentanil. Fácil e barata de produzir, esta droga é 50 vezes mais forte do que a heroína e cem vezes mais potente que a morfina, mas também bastante letal. Apenas uma pequena dose pode ser suficiente para matar. Em 2012, mais de 2.600 pessoas morreram de overdose desta substância. Dez anos depois, em 2022, morreram 73.654, de acordo com o Centro para o Controlo de Doenças norte-americano.

Encontrar uma solução para este problema tem sido difícil e, entre os principais candidatos à presidência do partido republicano, a ideia de “bombardear os cartéis” tem vindo a ganhar cada vez mais força. A ideia é popular entre o eleitorado de Donald Trump que, em 2019, propôs equiparar o cartel de Sinaloa a uma organização terrorista, após o homicídio de uma família de nove pessoas. Na rede social Twitter, atual X, disse que era a altura para “conduzir uma guerra contra os cartéis” em conjunto com o México para “limpá-los da face da terra”. Tudo o que ficava a faltar era uma chamada telefónica do recém-eleito presidente Andrés Manuel López Obrador. Mas nada acabou por acontecer.

No início deste ano, o tema voltou a estar em cima da mesa, depois de um grupo de congressistas republicanos liderado por Dan Crenshaw ter proposto uma lei que permite aos Estados Unidos utilizar as forças armadas contra os traficantes de fentanil. Esta lei foi apoiada pelo antigo procurador-geral William Barr, que escreveu um artigo no Wall Street Journal a defender que os Estados Unidos não podem “tolerar mais os cartéis narco-terroristas” que matam mais americanos por ano do que “o ano mais sangrento da Segunda Guerra Mundial”.

Mas do outro lado da fronteira, nem todos partilham o mesmo apetite por esta solução. O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, foi taxativo ao dizer que não vai “permitir que nenhum governo estrangeiro intervenha” no interior do território mexicano, muito menos “as forças armadas” de um governo. “Além de ser irresponsável, é uma ofensa ao povo do México”, acrescentou López Obrador, durante uma conferência de imprensa, garantindo ainda que o México “não aceita ordens de ninguém”.

No entanto, com a incerteza a pairar sobre as eleições norte-americanas, podem trazer de volta um Donald Trump determinado em entregar à sua base de eleitores a promessa de combater o tráfico de narcóticos e arrastar dos dois países para uma nova guerra.

E tudo o petróleo levou

“Essequibo é nosso”, proclamou o presidente venezuelano. Em declarações na Assembleia Geral do Conselho Federal do Governo da Venezuela, Nicolás Maduro anunciou a criação de uma divisão militar destinada à região que pertence à Guiana e ordenou à petrolífera estatal que comece a “conceder licenças operacionais para a exploração de petróleo, gás natural e minas” naquele território.

Poucos dias depois de o “sim” ter vencido no referendo para a criação de um novo Estado, continua a pairar no ar a possibilidade de uma intervenção militar por parte das forças armadas venezuelanas para conquistar este território fronteiriço de 160 mil quilómetros quadrados em torno do rio Essequibo. O território tem pouco mais de 800 mil habitantes e é principalmente composto por selva tropical.

Mas é na área marítima desta região que todos os olhos estão postos. Isto porque, em 2015, a petrolífera norte-americana ExxonMobil anunciou a descoberta de vastas bolsas de petróleo e gás natural na região e, desde então, as reservas que têm vindo a ser descobertas não param de aumentar. Ao todo, os depósitos encontrados dão para extrair mais de 11 mil milhões de barris de petróleo, o que coloca a Guiana como um dos países com as maiores reservas do mundo.

Um consórcio da ExxonMobil, CNOOC (China) e U.S. Hess (também dos EUA) iniciou a produção de petróleo na Guiana em 2019. Atualmente, o país produz cerca de 400 mil barris por dia e esse número deve subir para mais de um milhão até 2027. Esta realidade está a transformar por completo o país. Mesmo muito afetado pela pandemia de covid-19, a Guiana triplicou o seu PIB. Em 2023, o FMI projeta um crescimento de 38% na economia do país.

Uma análise estratégica do Centro de Estudos Estratégicos do Army War College previa um aumento da instabilidade na região de Essequibo, que descreve como uma situação de disputa entre “David e Golias”, com os mais de 30 milhões de habitantes da Venezuela frente aos pouco mais de 800 mil da Guiana. O documento aponta que o governo norte-americano e o seu exército devem ter “um papel importante” na disputa de qualquer conflito, de forma a evitar que este se transforme numa “guerra sem sentido”.

E parece ser isso que os Estados Unidos estão dispostos a fazer, com o U.S. Southern Command, o comando militar americano para a região da América Latina e Caraíbas, a anunciar nas redes sociais um exercício da força aérea norte-americana na Guiana, de forma a “reforçar a parceria de segurança“ entre os dois países.

Os efeitos na região são difíceis de prever, mas os analistas destacam que Essequibo pode tornar-se um território devastado pela violência e aproveitado por grupos criminosos. “Uma guerra na região poderia convidar organizações criminosas organizadas transnacionais para a região e contribuir para o tráfico de drogas e outras formas de crime, incluindo, entre outros, o tráfico de seres humanos, mercenários, corrupção e contrabando ilícito de bens e serviços”, pode ler-se na análise estratégica.

Sede de conflito

Nem tudo está bem na antiga esfera de influência soviética. No final de setembro de 2022, combates na fronteira entre o Quirguistão e o Tajiquistão fizeram 146 mortos e 139 feridos. Estes confrontos não são uma novidade, um ano antes militares das duas antigas republicas soviéticas envolveram-se em confrontos que resultaram em 55 mortos e mais de 240 feridos. Os dois países têm bases militares russas, mas encontram-se numa corrida às armas que pode resultar num conflito por causa de água.

As questões fronteiriças da Ásia Central resultam, em grande parte, da era soviética, quando Moscovo tentou dividir a região entre grupos cujas povoações se situavam frequentemente no meio de povoações de outras etnias. Quando a União Soviética caiu, em 1991, as duas recém-formadas nações não conseguiram atingir um consenso para a formação de fronteiras. Um terço das atuais fronteiras continuam a ser disputadas. A piorar a situação, existem dois enclaves tajiques com mais de 48 mil cidadãos.

Várias disputas entre as duas antigas repúblicas soviéticas tiveram lugar no passado, mas a violência parece ser cada vez maior. Os dois países têm acelerado a compra de material de guerra e, no conflito do ano passado, os combates aconteceram com o apoio de carros de combate, blindados, artilharia e drones. No início de 2023, o governo do Quirguistão revelou ter aumentado de forma significativa a sua frota de drones turcos, bem como o aumento das suas defesas antiaéreas. Ao mesmo tempo, o Irão continua a prestar apoio ao Tajiquistão, país com quem partilha muito da cultura persa. Este apoio levou à construção da primeira fábrica de drones iranianos fora do país, de acordo com um relatório do think tank norte-americano Middle East Institute.

Mas os mais recentes conflitos têm estão diretamente relacionados com o controlo de um recurso cada vez mais escasso na região: a água. Em abril de 2021, a instalação de câmaras de vigilância numa estação de captação de água localizada em território disputado pelo Tajiquistão e pelo Quirguistão por cidadãos tajiques desencadeou uma vaga de violência que tirou a vida a 55 pessoas e desalojou mias de dez mil. Um estudo da Water, Peace and Security sublinha que os problemas em torno deste recurso e das suas infraestruturas pode espoletar mais conflitos na região.

A um acidente de distância

Um a um, os tratados que mantêm o cessar-fogo ao longo da fronteira que divide a Coreia do Norte e a Coreia do Sul estão a desaparecer, tornando a paz numa das regiões mais militarizadas do mundo cada vez mais precária. No mês passado, a Coreia do Sul suspendeu o acordo para restrição de voos militares junto à zona desmilitarizada, depois de um lançamento de um satélite por parte do seu vizinho do Norte.

Em resposta, Kim Jong-un ordenou ao seu exército para voltar a colocar armamento pesado junto à fronteira com a Coreia do Sul, rasgando também um acordo assinado em 2018, criado para aliviar as tensões entre os dois países. A tensão voltou a subir de tom pouco depois, quando o líder norte-coreano ameaçou diretamente os Estados Unidos, alertando que qualquer interferência nos seus “ativos espaciais” seria vista como “uma declaração de guerra”.

Tecnicamente, as duas Coreias continuam em guerra, desde 1950, uma vez que um acordo de paz formal nunca chegou a ser assinado. O armistício assinado entre os dois países, após três violentos anos de guerra, levou à criação de uma fronteira desmilitarizada, ao logo de 150 quilómetros e com quatro quilómetros de largura. Apesar de a fronteira ser uma área desmilitarizada, o mesmo não pode ser dito das áreas em seu redor, que tornam esta região uma das mais militarizadas do mundo.

Mesmo com vários esforços diplomáticos ao longo das décadas, as relações entre Seul e Pyongyang têm sido marcadas por sucessivas tensões. O Norte vê com maus olhos os recorrentes exercícios militares que o sul faz com o aliado norte-americano. Já o sul vê com crescente preocupação os desenvolvimentos nucleares e os sucessivos testes de mísseis balísticos e intercontinentais do regime de Kim Jong-un.

A notícia da aproximação da Rússia à Coreia do Norte também está a levantar preocupações entre a liderança na Coreia do Sul. Com severos problemas logísticos na linha da frente, Vladimir Putin recorreu ao seu vizinho da Coreia do Norte para o fornecimento de mais de um milhão de munições de 152 mm para artilharia. Muito do acordo entre os dois países é secreto, mas Seul teme que a Rússia tenha acordado fornecer tecnologia à Pyongyang que possa vir a ser utilizada contra si.

A chefia militar sul-coreana está mesmo a tirar ilações dos vários conflitos que estão a rebentar um pouco por todo o mundo. No final do mês de outubro, o Chefe do Estado-Maior da Coreia do Sul afirmou que a informação que existe no terreno sugere que os vizinhos do Norte possam estar a preparar um ataque com “um padrão semelhante ao utilizado na invasão do Hamas”. Só que o poder de fogo da Coreia do Norte é incomparável. Ao passo que o Hamas disparou uns incríveis cinco mil rockets contra Israel, o exército sul-coreano estima que a artilharia de Kim Jong-un seja capaz de fazer 16 mil disparos por hora.

Este cenário é particularmente preocupante, uma vez que a capital sul-coreana fica a apenas 40 quilómetros da fronteira. A distância não é suficiente para colocar a salvo os perto de dez milhões de habitantes que moram em Seul. Victor Cha, especialista em Ásia e Coreia do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, admite que se a Coreia do Norte quisesse podia transformar a cidade “num mar de fogo”. Um estudo do think tank Rand estima que existam mais de seis mil peças de artilharia junto à fronteira, com o potencial de dizimar mais de dez mil pessoas por hora.

O atual presidente sul-coreano não quer correr riscos e, para isso, decidiu iniciar o desenvolvimento de um sistema de defesa antiaérea semelhante ao israelita Iron Dome. Yoon Suk-yeol tem optado por uma postura mais dura do que os seus antecessores, apostando mais nas capacidades defensivas sul-coreanas como meio de dissuasão. Mas do outro lado está Kim Jong-un, líder norte-coreano, que já demonstrou várias vezes não ter receio de escalar a situação para novos patamares. No entanto, a cada novo escalar do conflito aumentam os riscos de ocorrer um incidente acidental ao longo da fronteira, de acordo com um relatório do Carnegie Endowment for Internacional Peace.

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