Estas duas batalhas vão moldar o futuro da guerra na Ucrânia

3 dez 2023, 22:00
Soldado ucraniano abrigado numa trincheira durante um bombardeamento russo, nos arredores de Bakhmut (Getty Images)

Depois de quase dois anos do começo de uma das guerras mais sangrentas dos últimos anos, duas batalhas começam a ganhar forma e prometem definir o rumo da invasão russa em 2024

As acusações de que a invasão russa chegou a um sangrento impasse continuam a ganhar força. A contraofensiva ucraniana chegou ao fim com poucos resultados e a conquista russa de Bakhmut deixou um rasto de sangue tão grande que levou a uma tentativa de golpe de Estado por parte dos mercenários que conduziram a ofensiva. Mas, na neve que cai nas planícies ucranianas, duas batalhas continuam a ganhar forma e a moldar o desfecho do próximo ano de combates.

“Putin deu ordens explícitas para conquistar o Donbass até ao final do ano e Avdiivka é o primeiro passo para essa conquista. Mas em pouco mais de um mês, já perderam mais de 15 mil homens. Avdiivka arrisca-se a ser uma nova Bakhmut para a Rússia”, afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.

Poucos dias depois do ataque surpresa do Hamas em Israel, a Rússia lançou um poderoso ataque surpresa contra esta pequena cidade localizada nos arredores de Donetsk. Para surpresa do comando do exército ucraniano, este não era um ataque como tantos outros que acontecem diariamente ao longo da frente. Os militares russos tinham conseguido esquivar-se a todos os meios de vigilância mais modernos – de satélites a drones – e concentrar na região uma enorme quantidade de veículos blindados e munições de artilharia.

Mas os resultados não foram os esperados. Em poucos dias, milhares de soldados russos perderam a vida a tentar atravessar os densos campos de minas que cercam os arredores da cidade. As colunas de blindados que escapavam às minas e às armas antitanque tinham nos céus um difícil obstáculo: um exército de drones. Nas poucas ocasiões em que conseguiam ultrapassar todas estas barreiras, os militares russos esbarravam em posições fortificadas, muito difíceis de conquistar. O resultado, segundo Kiev, fez disparar o número de perdas russas de 600 por dia para mil mortos diários. 

Soldado ucraniano dispara arma antitanque do topo de uma trincheira em Avdiivka (AP Photo)

“A grande razão para estas perdas é o facto de as posições defensivas ucranianas nesta região estarem a ser preparadas desde 2014. São posições bem organizadas e as tropas que lá estão são treinadas e têm capacidade para combater”, explica Isidro de Morais Pereira, que acrescenta que este é precisamente o mesmo motivo pelo qual a Ucrânia “não conseguiu progredir a sul”, durante a tão aguardada contraofensiva.

Após o fracasso dos primeiros dias, tudo indicava que a Rússia se preparava para recuar e reorganizar as suas forças. Mas os líderes russos tinham outros planos: reforçaram a intensidade de ataques e destacaram ainda mais meios para a região. O redobrado esforço russo encontrou algum sucesso na região norte, avançando pouco mais de três quilómetros a norte da cidade. No entanto, os combates continuam a ser travados nos campos que acolhem a cidade em três frentes.

É aqui que a Rússia deposita todas as fichas para mudar o rumo da guerra nos próximos meses. O próprio porta-voz do Conselho de Segurança Nacional norte-americano, John Kirby, descreveu esta ofensiva russa como uma “recordação preocupante” de que Putin está disposto a capturar a Ucrânia a todo o custo e não descarta a possibilidade de “sucessos táticos” à custa das vidas “de milhares” no futuro.

Ao contrário de Bakhmut, Avdiivka é estrategicamente relevante para a Rússia. Situada nos arredores da cidade de Donetsk, este bastião ucraniano fica a uns escassos 24 quilómetros de distância do centro da capital do Donbass. A partir desta região, as tropas ucranianas podem atacar depósitos de munições e agrupamentos de soldados russos na cidade. Além disso, a conquista desta cidade abriria as portas do Donbass para a Rússia, uma vez que esta é uma das maiores cidades da província de Donetsk controlada pela Ucrânia.

“O centro desta guerra é Avdiivka. É um bairro periférico de Donetsk e o objetivo é colocar Donetsk longe do fogo de artilharia ucraniano. O volume de forças está na casa das dezenas de milhares de parte a parte. A Rússia está a tentar fechar o cerco, mas isso não é nada fácil. Os russos estão a conduzir uma guerra de desgaste”, esclarece o major-general Agostinho Costa.

Mesmo depois de dois anos de violentos combates, os próprios militares ucranianos referem que a intensidade desta ofensiva é quase sem precedentes. O líder da região militar de Avdiivka, Vitalii Barabash, admite mesmo que em quase uma década de combates nunca viu nada assim. O número de veículos, aeronaves, canhões e militares é inédito numa região que não conhece a paz desde 2014.

Antes da guerra, cerca de 32 mil pessoas viviam nesta cidade. Restam poucos mais de 1.600. Muitos dos antigos edifícios soviéticos estão completamente dizimados e a última estrada que liga Avdiivka ao território ucraniano permanece em risco. Um cenário que traz à Ucrânia a memória do sufoco de Bakhmut. “A margem de manobra ucraniana começa a ser um pouco mais estreita e os russos têm um exército que ultrapassa um milhão de homens”, recorda Agostinho Costa.

Soldados ucranianos lutam para reconquistar o território ocupado pela Rússia (AP Photo)

Uma surpresa e uma vedeta

Ao mesmo tempo, a Ucrânia não desiste do seu objetivo de recuperar o seu território ocupado pela Rússia, em particular a Crimeia. Com o sucesso limitado da contraofensiva ucraniana, a chefia militar ucraniana virou atenções para o rio Dnipre, onde está a tentar abrir uma nova frente de batalha que permita colocar em perigo a frente sul da Rússia. E tem-no feito com algum sucesso na margem leste do Dniepre, em Krynky.

Aí, a Ucrânia conseguiu executar uma das mais difíceis manobras militares: o desembarque de soldados em território ocupado pelo inimigo. Os militares chamam-lhe cabeça de ponte e, ao longo das últimas semanas, foi precisamente isso que os fuzileiros ucranianos conseguiram de forma arrojada, aumentando a pressão sobre o flanco russo na região de Kherson. Esta manobra pode obrigar Moscovo a movimentar soldados de outras zonas da frente para tentar travar os avanços ucranianos.

“A Ucrânia tem uma cabeça de ponte na margem esquerda do Dniepre com oito quilómetros. Estão a apostar em abrir uma nova frente, obrigando o inimigo a mexer as reservas e a criar um problema à Rússia”, frisa Isidro de Morais Pereira.

A criação desta nova frente de combate só foi possível devido à contraofensiva ucraniana lançada no verão. Para travar o ataque das forças de Kiev, a Rússia colocou algumas das suas melhores e mais bem treinadas unidades no eixo de Zaporizhzhia, onde aconteceu a principal ofensiva ucraniana. Para a margem do Dniepre, onde a probabilidade de ataque era menor, destacou soldados mobilizados com pouco treino e pior equipamento. Mas esta decisão pode vir a custar caro a Moscovo.

A Ucrânia começou a operação vários meses antes do primeiro desembarque. A chefia militar ucraniana deslocou para a área bloqueadores de rádio que impedem o funcionamento dos drones russos num raio de quase 20 quilómetros. Ao mesmo tempo, milhares de fuzileiros treinados no Reino Unido preparavam-se para fazer uma série de desembarques de pequena escala para testar as defesas russas. O ataque apanhou as tropas mobilizadas russas desprevenidas e a Ucrânia conseguiu avançar mais do que esperavam.

“Inicialmente a coisa não correu nada bem para a Rússia, que viu isto com surpresa. Foi, de facto, uma manobra muito boa por parte da Ucrânia, que foi colocando sucessivamente forças no outro lado do Dniepre. Os russos tinham ali forças de terceira linha e olharam para o desembarque como um incidente”, aponta o major-general Agostinho Costa, que reforça ainda que os ucranianos contam já com um número significativo de tropas especiais naquele lado do rio.

O plano ucraniano passa por “agarrar-se” a este pedaço de terra conquistado para o poder utilizar como base para uma nova ofensiva já com o apoio aéreo dos F-16, na próxima primavera. Moscovo compreende que a situação está a agravar-se a cada dia que passa. Atualmente, a Ucrânia já transportou para o outro lado do Dniepre carros blindados que estão a ajudar os fuzileiros ucranianos.

Um grupo de fuzileiros navais ucranianos navega a partir da margem do rio Dnipro, na linha da frente, perto de Kherson, na Ucrânia (Alex Babenko/AP)

Este cenário é preocupante para a Rússia e a alta chefia reagiu dando o comando do grupo militar russo a “uma das suas vedetas”, o coronel-general Mikhail Teplinsky, comandante paraquedista. Este é um dos generais com melhor reputação no exército russo e em quem o general Valery Gerasimov deposita esperanças para mudar o rumo dos acontecimentos. “Deram-lhe o comando desta frente porque sabem que esta frente é uma vulnerabilidade enorme”, insiste o especialista em assuntos militares.

“Estas duas batalhas vão moldar estes próximos meses de guerra. É nestes dois lugares que a nossa atenção tem de estar. Em Avdiivka, a batalha vai durar, no mínimo, mais dois meses. Em Krynky temos de ver se este general é tão brilhante quanto isso. A verdade é que, até agora, a Rússia não tem encontrado solução”, observa o major-general.

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