Assassinatos, sabotagens, traições e agentes duplos. Este é o perigoso mundo da espionagem da guerra na Ucrânia

9 dez 2023, 08:00
Major-general Kyrylo Budanov, líder dos serviços secretos militiares ucranianos, no seu escritório (Getty Images)

Mais parece um filme de cinema, mas é a realidade do oculto mundo da espionagem em tempo de guerra. As "ações clandestinas" são cada vez mais comuns, mais sangrentas e a Ucrânia alerta: a Rússia ativou novas células de espionagem adormecidas, porque têm "uma nova prioridade"

É uma guerra dentro da guerra. Enquanto generais e soldados combatem por cada metro quadrado do território ucraniano, uma outra guerra acontece nas sombras. Agentes duplos, envenenamentos, células adormecidas, traições, ambições e homicídios: este é um longo combate sem caras, que coloca frente a frente algumas das mais poderosas agências de espionagem do mundo, herdeiras do todo-poderoso KGB. 

"Estamos a ver o nascimento de um tipo de serviços secretos que relembram a Mossad na década de 70", afirma um antigo oficial da CIA ao jornal The Washington Post, em referência à longa lista de assassinatos atribuídos à agência israelita. "Há riscos para a Rússia (...) mas se as operações de inteligência da Ucrânia se tornarem ainda mais ousadas – visando russos em países terceiros, por exemplo – podemos imaginar como isso pode causar divergências com parceiros", alerta. 

Um a um, os serviços secretos ucranianos continuam a prender, ou até mesmo a assassinar, alguns dos mais importantes colaboradores russos. Esta quarta-feira foi exemplo disso quando agentes das secretas ucranianas em Moscovo eliminaram o antigo deputado pró-russo Illia Kyva, que foi encontrado morto com um “ferimento na cabeça”. Este antigo político ucraniano era conhecido pelas fortes ligações ao Kremlin, tendo solicitado asilo político a Putin e pedido um ataque nuclear contra a Ucrânia. Em anonimato, uma fonte da organização confirma à Reuters que "a liquidação do principal traidor, colaborador e propagandista Illia Kyva era uma missão especial do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU)".

Precisamente no mesmo dia, numa mensagem de Kiev para todos os que querem colaborar com as forças russas nos territórios ocupados, as secretas ucranianas conseguiram, com sucesso, explodir o carro onde seguia Oleh Popov, um criminoso de guerra que fazia parte do Conselho Popular da República Popular de Lugansk, órgão máximo da república separatista. Segundo o Kyiv Post, que cita fonte militar ucraniana, Popov foi alvo de um ataque orquestrado pelo SBU. "Era um alvo bastante legítimo. Antes de ser deputado, geriu vários batalhões voluntários russos, comandou formações armadas e matou ucranianos", insiste.

Quase dois anos depois de a Rússia ter lançado a invasão da Ucrânia, estas “ações clandestinas” de Kiev já mataram mais de 20 altos oficiais pró-russos escolhidos para governar as regiões ocupadas. O número aumenta para mais de 200 se se incluir chefes da polícia, líderes das milícias armadas de Donetsk e Lugansk e agentes do FSB, o sucessor do KGB. Os métodos são variados, mas os mais recorrentes são os explosivos debaixo do assento do carro, na caixa do correio, envenenamento e o tiro à queima-roupa. Apesar de ter investido bastante na presença de unidades de contraterrorismo no terreno, não houve um mês em que a Rússia não foi alvo de um destes ataques. 

Mas o raio de ação das secretas ucranianas está longe de estar limitado ao seu território. Em 2022, os espiões ucranianos conseguiram fintar o dispositivo de segurança do Kremlin e destruir o carro onde circulava Darya Dugina, filha de Alexander Dugin, filósofo russo defensor da teoria eurasiática. A bomba destinava-se ao seu pai, que, no último minuto, depois de acabar uma palestra, decidiu seguir noutro veículo. As autoridades russas apontam a autoria do ataque a uma agente ucraniana que entrou no país acompanhada pela filha de 12 anos. De acordo com a polícia russa, a mulher escondeu com habilidade a sua identidade e, enquanto esteve no país, utilizou matrículas falsas de três países diferentes, até ao momento em que escapou através da fronteira com a Estónia. Os materiais utilizados para fazer o explosivo foram contrabandeados no interior de uma caixa para o transporte de um gato. A SBU nunca admitiu o ataque, mas os Estados Unidos atribuem a sua autoria às secretas ucranianas.

Mas nem sempre a melhor ação requer a intervenção direta de um espião. Houve vezes em que foi necessário convencer terceiros a fazer o trabalho sujo. Foi o que aconteceu no início do ano, quando os serviços secretos ucranianos conseguiram convencer uma ativista antiguerra russa a deslocar-se a um café, em São Petersburgo, que pertencia a Yevgeny Prigozhin e onde decorria um evento sobre a guerra. Presente estava um dos mais conhecidos bloggers militares russos, que com frequência apelava ao extermínio do povo ucraniano. Numa pequena mochila, a jovem levava uma estatueta com a imagem de Vladen Tatarsky, o famoso blogger que ia discursar nesse mesmo dia. A meio da cerimónia, a jovem subiu ao palco e entregou a Tatarsky uma estátua que, pouco minutos depois, explodiu. Tatarsky foi a única vítima mortal. Foi um ataque cirúrgico contra um dos principais propagandistas do Kremlin no Telegram, na propriedade do líder do grupo Wagner, numa das principais cidades russas, em plena luz do dia. No ar ficava a ideia de que qualquer um podia ser um alvo do SBU, em qualquer lugar.

Sabotagem, um “trabalho bem feito”

Quase todas estas operações cirúrgicas são coordenadas pela Diretoria Principal de Inteligência (GUR), liderada pelo tenente-general Kyrylo Budanov. O espião-chefe é um dos principais alvos do Kremlin e isso enche-o de orgulho. “É sinal de que faço bem o meu trabalho”, garantiu durante uma entrevista, sem conseguir deixar escapar um pequeno sorriso. Na escuridão do seu escritório, apenas iluminado por um ecrã com o mapa da cidade de Moscovo, coordena algumas das operações mais delicadas da guerra na Ucrânia, facto que, devido à natureza da sua profissão, não confirma nem desmente. O mistério é parte do ofício, mas não esconde o objetivo de atacar o interior do país inimigo “cada vez mais fundo”.

Em dezembro, orquestrou um ataque contra aquela que é a principal base aérea militar russa, onde estão os principais bombardeiros de longo alcance russos, que podem disparar armas nucleares. Dois ataques com drones, em dois dias diferentes, danificaram seriamente várias aeronaves, destruíram um tanque de combustível e mataram vários oficiais da Força Aérea russa. Budanov nunca admitiu a autoria destes ataques, disse apenas estar “feliz” por eles terem acontecido.

Este “trabalho”, como lhe chama o líder do GUR, foi levado a cabo por uma rede de agentes e simpatizantes criada ao longo dos anos no coração da Rússia. Durante o verão, responsáveis norte-americanos confirmaram a existência de uma rede clandestina criada pelos serviços secretos de Kiev que estava a lançar ataques a partir do interior da Rússia. Estes “operacionais” são escolhidos a dedo, altamente treinados e capazes de agir de forma autónoma para não deixar rasto. O resultado do trabalho destas células ao longo dos meses resultou em alguns ataques surpresa a refinarias e até ao próprio edifício do Kremlin.

No início de dezembro, a Ucrânia virou as suas atenções para os atos de sabotagem bem no interior do território russo. Na região da Buryatia, na Sibéria, duas explosões atingiram a linha de caminho de ferro que liga a Rússia à China, um dos países que mais tem ajudado o Kremlin a contornar sanções. A primeira explosão atingiu um comboio que transportava combustível quando este atravessava um túnel, acabando por obstruir a linha. Horas depois, um explosivo foi detonado num segundo comboio, quando este atravessava uma ponte com mais de 35 metros de altura, numa rota alternativa.

Mas talvez o mais célebre ato de sabotagem protagonizado pelo GUR seja a explosão de parte do tabuleiro da ponte de Kerch, uma das principais e mais emblemáticas obras do “reinado” de Vladimir Putin. Além de todo o simbolismo que a ponte tem, por ligar a Rússia à península ucraniana ocupada da Crimeia, esta estrutura é de importância estratégica para o desenvolvimento dos combates no terreno. A ponte é vital para o transporte e abastecimento logístico do exército russo na Crimeia. 

A missão em si poderia dar um filme. Vários agentes secretos ucranianos conseguiram contrabandear 21 toneladas de explosivos para o território russo, embrulhados numa película que permitiu fazer com que a carga passasse despercebida aos sensores russos. Além disso, a Ucrânia conseguiu ultrapassar os bloqueadores de GPS que a Rússia tinha na ponte para tentar impedir detonar o explosivo. Para conseguir explodir com a ponte, o chefe do Serviço de Segurança da Ucrânia, Vasyl Malyuk, admitiu que os serviços secretos tiveram a ajuda de vários russos que não faziam ideia de que estavam a ser cúmplices da explosão.

"Todos os russos com acesso a um smartphone são os nossos melhores amigos, camaradas e clientes", afirma Malyuk em declarações para o documentário "Operações Especiais para a Vitória", que estreou no dia 24 de novembro.

Inimigos dentro e fora

Do outro lado está uma das mais poderosas organizações de espionagem do mundo, o Departamento Central de Inteligência (GRU). Ao contrário das outras agências de informação russas, esta não reporta diretamente a Vladimir Putin, mas sim à chefia militar e ao ministro da Defesa. Embora muita da reputação da agência tenha sido posta em causa devido ao fracasso inicial da invasão russa, os serviços secretos ucranianos compreendem que têm pela frente um adversário que tem uma grande capacidade de criar redes de espionagem no interior do seu país.

O caso recente do envenenamento de Marianna Budanova, mulher do líder da espionagem ucraniano, demonstra bem a dimensão e a capacidade de alcance das redes de espionagem no país. Pouco se sabe sobre quando ou como foi envenenada, mas as autoridades acreditam que a mulher de Kyrylo Budanov estaria a ser exposta a baixas quantidades do agente tóxico durante “um período prolongado”. Budanova está hospitalizada, mas estável. Os exames provam que tinha amostras de metais pesados no sangue.

A dimensão da infiltração russa na Ucrânia não pode ser ignorada. De acordo com a procuradoria ucraniana, no início de novembro de 2023, cerca de sete mil pessoas estão a ser investigadas por alta traição no país. Entre os crimes de que são acusados consta a espionagem, atos deliberados para diminuir a soberania do país ou o apoio às ações subversivas de um estado estrangeiro.

De acordo com Malyuk, os agentes secretos russos trabalham incansavelmente para obter informação de instalações militares, sobre bases, quartéis ou depósitos de munições. Um exemplo disso foi um cúmplice do Serviço Federal de Segurança (FSB) detido, em outubro de 2023, que tentava entrar na escola do “Exército de Drones” – uma academia especializada em dar formação a pilotos de aeronaves militares não tripuladas – para recolher informação para o Kremlin. De acordo com a SBU, este homem recebeu a sua “missão” no final do verão diretamente de um agente do FSB.

O objetivo desta ação era arranjar informação que permitisse às forças russas atacar os pontos de interesse onde estes militares eram treinados ou onde armazenavam e produziam os drones. O homem recrutado era um empresário de 49 anos, recrutado remotamente por um agente do FSB. O FSB chegou até ele devido às publicações contra a Ucrânia que este partilhava em canais russos no Telegram.

Já em setembro, os espiões ucranianos detetaram uma célula russa que operava em Kiev com o objetivo de identificar alvos e corrigir posições de bombardeamentos. Os dois suspeitos preparavam um ataque contra infraestruturas energéticas da capital, no dia 21 de setembro. Estes dois agentes russos foram descobertos pela unidade de ciberdefesa ucraniana, que detetou mensagens suspeitas. Vasyl Malyuk admite que a maior parte dos membros desta rede de informadores trabalha a troco de dinheiro, embora existam casos de pessoas que atuam sob ameaça ou vítimas de tortura. Noutros casos, as ambições políticas e as convicções ideológicas levam muitos a trair o seu próprio país.

Além do inimigo externo, infelizmente temos um inimigo interno, e este inimigo não é menos perigoso”, admite o secretário do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia, Oleksiy Danilov.

Herdeiros do KGB

A Rússia beneficia também do facto de um elevado número de antigos agentes secretos da União Soviética manterem posições de poder no país. É esse o caso do antigo líder da Segurança Interna da SBU, o general Andriy Naumov. Horas antes de começar a invasão russa, Naumov fugiu em direção à Sérvia. Quando tentava atravessar a fronteira vindo da Macedónia do Norte, foi detido por suspeitas de lavagem de dinheiro, uma vez que trazia consigo mais de 600 mil euros e 124 mil dólares em dinheiro vivo e duas esmeraldas. No entanto, os investigadores ucranianos suspeitam de que o antigo espião ucraniano tenha passado informação confidencial acerca das defesas militares ucranianas na região de Chernobyl, que permitiram à Rússia uma rápida conquista da região.

Mas houve casos de quem tentasse jogar com os dois lados. Um caso notório é o do banqueiro Denys Kireyev, homem que participou nas negociações de paz, no início do conflito. Foi através dele que a Ucrânia descobriu que a Rússia planeava utilizar o aeroporto de Hostomel, nos arredores de Kiev, como base para as operações militares nos arredores de Kiev. Kyrylo Budanov admite que, se não fosse o facto de Kireyev ter obtido a informação sobre os planos russos, Kiev provavelmente teria caído nas mãos do Kremlin. Mas estas ações levantaram a suspeita de que Kireyev estava a trabalhar diretamente com os russos. Poucos dias depois apareceu morto à porta de casa com um tiro na cabeça.

Depois de 20 meses de guerra, dezenas de milhares de mortos e uma contraofensiva que não atingiu os seus objetivos, divisões começam a aparecer na sociedade ucraniana. Segundo Oleksiy Danilov, nos últimos dois meses, Moscovo ativou uma rede adormecida de espiões para agitar a sociedade ucraniana. Uma das táticas tem passado pelo contacto de mulheres de soldados ucranianos ou prisioneiros de guerra a apelar para que estas organizem demonstrações antiguerra. Para a liderança ucraniana, o objetivo do Kremlin é claro: semear o descontentamento na população, desconfiança entre a liderança política e militar para que, no fim, aconteça o golpe de Estado.

“A desestabilização interna tornou-se a sua prioridade. Essas medidas seguem o objetivo de criar um cenário público negativo, semear o desânimo e a depressão, aumentar o número daqueles que estão dispostos a comprometer-se e reduzir aqueles que estão confiantes na vitória – conduzindo, em última análise, a um golpe de Estado”, acredita Danilov.

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