Ogivas termonucleares, drones, navios de guerra e inteligência artificial. A guerra na Ucrânia está a desencadear uma corrida ao armamento um pouco por todo o mundo, com as várias potências a tentarem obter tecnologias e equipamentos que lhes garantam superioridade face aos rivais
Um mundo com mais defesa, mas cada vez com menos segurança. A ordem mundial está a mudar e a guerra da Ucrânia arrisca-se a desencadear uma corrida às armas, com as principais potências mundiais a procurar produzir mais e melhor armamento que o adversário, para nunca ficar para trás. Os especialistas chamam-lhe o “equilíbrio pelo terror” e deixam o alerta: o mundo está a ficar um lugar mais perigoso.
“A guerra na Ucrânia foi o fósforo que deu início a uma nova ordem mundial, onde todas as potências vão investir na tecnologia virada para o elemento bélico. Quando a guerra acabar, o mundo não vai estar em paz, vai estar em armistício”, afirma José Filipe Pinto, professor universitário especialista em Relações Internacionais.
Ninguém esperava um conflito desta magnitude. A intensidade da guerra levou a Ucrânia a esgotar rapidamente os depósitos de armamento e mesmo a Rússia, herdeira de um vasto arsenal da União Soviética, já começa a demonstrar sinais de que poderá ter falta de alguns tipos de munições e veículos.
No Ocidente, particularmente nos países da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que apoiaram diretamente a guerra na Ucrânia, o cenário não é muito melhor.
Jeb Nadaner, antigo subsecretário assistente de defesa para política industrial dos Estados Unidos da América (EUA) admitiu mesmo, numa entrevista ao Foreign Policy, que o Pentágono está a começar a ter problemas em relação a algumas das suas armas mais importantes, após ter enviado um terço das suas próprias reservas para a Ucrânia. A situação é especificamente crítica quando se fala de mísseis antitanque Javelin, munições para artilharia de 155 milímetros (mm) e de foguetes para o lançador de precisão HIMARS, que são bastante utilizados pelo exército ucraniano.
O pior é que o complexo industrial militar ocidental não é capaz de acompanhar o ritmo a que a Ucrânia está a gastar armamento, muito menos para repor as elevadas quantidades de armamento enviadas e isso está a deixar preocupado alguns dos mais altos cargos de defesa da NATO.
“O medo de que o conflito na Ucrânia alastre vai levar a um equilíbrio pelo terror, como o que caracterizou a guerra fria”, considera o especialista.
A Lockheed Martin, o fabricante de sistemas como o Javelin, prometeu aumentar a produção de mísseis antitanque, passando de 2.100 unidade por ano para quatro mil. Mas este aumento só estará pronto dentro de dois anos. A situação é ainda mais grave na produção de munições para artilharia. A produção total anual americana de munições de 155mm não chega para duas semanas de combate pelo exército ucraniano.
Para Washington, a própria ideia de que os EUA estão a ter limitações na sua capacidade defensiva pode levar potenciais adversários a ignorar o poder dissuasor do exército americano e a procurar agir militarmente com impunidade. Neste caso, o Pentágono olha com particular atenção para a China e as suas aspirações de dominar Taiwan.
Numa conferência de imprensa, Bill LaPlante, o responsável encarregue pela compra de armas para o exército americano, viu com agrado a aprovação do Congresso do Orçamento de Defesa americana, que prevê um contrato multimilionário “não visto desde a Guerra Fria” que vai permitir aos americanos expandir significativamente a sua capacidade de produzir armamento. Só para 2023 foram aprovados mais de oito mil milhões de dólares para expandir a capacidade de produção de “munições prioritárias”.
“Precisamos de estar prontos não apenas para lidar com os desafios atuais na Europa; precisamos de estar prontos para qualquer desafio, não importa onde ele surja, especialmente... na Ásia”, afirmou o Senador Republicano John Cornyn.
Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos da América tinham grandes depósitos de reservas de armas, terras raras e outros materiais necessários para acelerar a produção de armamento de forma rápida, caso um conflito com a União Soviética começasse. Mas o final desse impasse levou os norte-americanos e os restantes aliados a reduzir significativamente essas reservas.
“O modelo ocidental é um modelo fundamentalmente assente na economia privada, ao contrário do que havia há 30 anos, quando as empresas militares pertenciam à esfera pública. Vivemos oitenta anos de paz e nenhuma indústria sobrevive só a fazer material militar”, aponta o major-general Agostinho Costa.
Europa mais vulnerável
Na Europa, a situação é muito mais grave. Mais de 30 anos de desinvestimento em defesa, deixaram o continente vulnerável perante conflitos de alta intensidade. Na Alemanha, a principal economia europeia, as reservas de munições dariam para apenas dois dias de combate, muito abaixo dos 30 dias exigidos pela NATO. Na verdade, o não cumprimento das normas da NATO é um tema comum nos vários países europeus, onde uma parte significativa não chega sequer a gastar 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em Defesa, como a aliança exige.
Para a indústria militar, a escala é sagrada e a produção não se aumenta do dia para a noite. Quando um país sozinho coloca uma ordem de compra, o preço acaba por ser bastante mais elevado, uma vez que pequenos lotes não permitem que a indústria aumente significativamente a produção. Por esse motivo, Josep Borrell, alto representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, revelou que a União Europeia vai avançar com a compra conjunta de armamento para “tapar buracos” da defesa europeia no que toca a munições, num modelo semelhante ao da compra conjunta de vacinas, durante a pandemia. Serão mais de 70 mil milhões de euros até 2025.
"De nada vale um país isolado como Portugal investir sozinho na defesa, quando sabe que haverá outras potencias capazes de tornar obsoleto todo o nosso investimento ", explica o professor José Filipe Pinto.
Por isso, vemos o Governo alemão a criar uma a European Sky Shield Initiative, um programa de compra conjunta de defesas antiaéreas de curto, médio e longo alcance, para defender os céus da europa. Mas necessidades e vulnerabilidades europeias são tão grandes e tão urgentes que é possível que, após a guerra na Ucrânia, a Europa estenda as compras conjuntas a outras necessidades de defesa, como carros de combate, veículos blindados, artilharia ou munições.
Apesar de tudo, esforços no sentido do rearmamento europeu estão a ser feitos. A Alemanha vai co-financiar o recondicionamento e expansão de uma antiga fábrica soviética na Roménia, capaz de produzir munições de 155 mm utilizadas pelos países da NATO e de 152 mm utilizadas pela Ucrânia.
Várias companhias privadas estão a antecipar-se aos Governos e já estão a aumentar a produção. De acordo com o Wall Street Journal, o conglomerado norueguês Nammo, está a trabalhar para produzir um número de munições 10 vezes superior. A República Checa também está a aumentar esforços para duplicar a produção de munições para 100 mil por ano e a britânica BAE Systems assinou um contrato no valor de 2.1 mil milhões com o governo para o fornecimento de munições.
O gigante Rheinmetall também está a movimentar-se nesse sentido, comprando o fabricante espanhol Expal Systems, que deverá ajudar os alemães a aumentar a produção de munições. A empresa vai abrir também uma nova linha de produção de munições de 35 mm para o sistema antiaéreo doado à Ucrânia, o Gepard. Os especialistas acreditam mesmo que, para a Europa, o aumento de produção de munições é mesmo a maior prioridade para a defesa do continente.
“A melhor maneira de a Europa apoiar a Ucrânia é aumentar a produção de munições de artilharia agora – esse será o maior problema no ano que vem”, disse Rob Lee, membro do Foreign Policy Research Institute, um think tank dos EUA.
Moscovo luta pela sobrevivência
Mas para Moscovo, o rearmamento é quase uma questão de vida ou de morte. Vladimir Putin apostou o futuro do regime e do país quando deu a ordem de invadir a Ucrânia, no dia 24 de fevereiro. E tudo indica que a elite militar russa esperava uma guerra rápida e não acreditava que o exército ucraniano fosse capaz de fazer frente ao poderio russo. A compra de drones de fabrico iraniano e a reabertura de linhas de comboio com a Coreia do Norte para o transporte de munições aparentam ser um sintoma da falta de armamento.
“A guerra na Ucrânia é um conflito que se vai decidir pela capacidade das bases tecnológicas e industriais dos países envolvidos. Quem tiver a capacidade logística de produção ou de manutenção vai ganhar”, sublinha Agostinho Costa.
De acordo com os analistas independentes do blog Oryx, depois de dez meses de conflito, a Rússia já perdeu mais de 1.500 tanques, mais de dois mil veículos blindados e milhares de toneladas de munições. Estas perdas estão a causar fortes dores de cabeça no Kremlin, que deu ordem à Uralvagonzavod, o principal conglomerado industrial russo, para modernizar 800 unidades do T-62, uma relíquia soviética utilizada na década de 60. Mesmo com a empresa russa a operar 24 horas por dia, com três turnos, o processo só deve estar concluído dentro de dois anos.
Mas pouco se sabe acerca da real capacidade de produção russa. Durante vários meses, especialistas de diversas instituições ocidentais apontam para o facto de a Rússia estar prestes a esgotar o seu arsenal de mísseis balísticos. No entanto, a Ucrânia continua a ser vítima de novas vagas de bombardeamento que colocam em causa a sua capacidade de gerar eletricidade.
Qualquer que seja o resultado desta guerra, a Rússia terá de reequipar o seu exército e voltar a encher os seus depósitos, bem como alguns dos sistemas mais desenvolvidos. E as mais altas chefias russas parecem estar cientes disso. Porém, não se sabe até que ponto as sanções ocidentais são capazes de prejudicar a capacidade russa de produzir equipamentos militares mais sofisticados, dependentes de tecnologias produzidas no ocidente alargado. Isso não impede, no entanto, o Kremlin de fazer anúncios com pompa e circunstância.
“Estamos a começar a impulsionar a produção dos mais poderosos meios de destruição, inclusive aqueles baseados em novos princípios da física”, afirmou o número dois do Conselho de Segurança russo, Dmitry Medvedev, sem especificar de que tipo de armamento se referia.
O que sabemos é que a Rússia está à frente dos Estados Unidos da América em algumas tecnologias militares, em particular no que toca ao desenvolvimento de armas supersónicas. Estes mísseis voam a uma velocidade dez vezes superior à velocidade do som e conseguem alterar a sua própria trajetória durante o voo, o que faz deles uma arma quase impossível de intercetar.
“Esta guerra vai gerar também uma corrida a novos tipos de armamentos. A guerra hoje é completamente diferente. Neste momento estamos a assistir a uma proliferação de drones, que vieram alterar completamente a forma como a guerra está a ser conduzida. Existe uma digitalização do campo de batalha, há a utilização de inteligência artificial, e, fundamentalmente, a utilização de munições inteligentes”, explica o especialista em assuntos militares Agostinho Costa.
China de olhos postos em Taiwan
Embora as atenções estejam presas no leste europeu, é na Ásia que a maior potencial militar tem os olhos postos. No mais recente relatório do Pentágono que avalia o poder militar da China, os norte-americanos classificam o gigante asiático como sendo “o único concorrente com a intenção e, cada vez mais, a capacidade de remodelar a ordem internacional” através de meios militares.
“O mundo está a ficar um lugar mais perigoso. A China, segundo Xi Jinping, pretende uma nova ordem mundial onde não haja hegemonias. Mas na verdade, o que a China quer é uma nova hegemonia, mas controlada por Pequim”, considera José Filipe Pinto.
Foi a pensar na China que os EUA se apressaram em estrear publicamente o seu novo bombardeiro furtivo, uma aeronave quase impossível de detetar, pensada para utilizar “armas do futuro que ainda não foram inventadas”, de acordo com o próprio secretário de Defesa norte-americano, Lloyd Austin.
Mas em nenhuma área a corrida ao armamento entre a China e os EUA é tão intensa como no campo naval. Em 2020, a China tornou-se a maior marinha do mundo, com 360 embarcações, superando os EUA e a sua frota de 297 navios. Embora os especialistas coloquem em causa a qualidade e o know-how da marinha chinesa, os números são impressionantes e continuam a aumentar. A China triplicou a sua marinha em apenas duas décadas. Em resposta, o Pentágono aumento significativamente o orçamento da Marinha e pretende aumentar o número de navios para 355, num futuro próximo.
“Além do desenvolvimento das capacidades convencionais do Exército de Libertação Popular, a Républica Popular da China continuou a acelerar a modernização, diversificação e expansão de suas forças nucleares”, escreve o Pentágono no seu relatório.
Na verdade, o nuclear é a área que mais preocupa Washington. O esforço de modernização do arsenal nuclear chinês está a aumentar em escala e complexidade e viu o número de ogivas nucleares a ultrapassar as 400. Os analistas do Pentágono acreditam que o objetivo de modernização da China é chegar às 1.500 ogivas até ao final de 2035.
A China não está sozinha neste campo. Tanto a Rússia como os EUA, os dois maiores arsenais nucleares do mundo, estão a gastar milhares de milhões na modernização do seu arsenal nuclear. E as somas gastas são incríveis. Washington espera gastar até 2030 cerca de 634 mil milhões de dólares na modernização das suas ogivas e da sua capacidade nuclear, tornando as suas armas mais poderosas e eficientes.
“Podemos estar à beira de um conflito nuclear, o próprio Kissinger disse-o. Esta corrida já está a estender-se ao armamento nuclear, com os Estados Unidos e a Rússia a desenvolverem mísseis e submarinos nucleares cada vez mais capazes. O mundo não está a ficar mais seguro”, frisa Agostinho Costa.