Já foi vítima de 'ghosting'? Então só tem razões para estar "muito contente"

26 ago 2023, 10:00
Telemóvel (Freepik)

Há quem se refira ao ghosting como a versão moderna do "pai de família que saiu de casa para comprar cigarros e nunca mais voltou". Então como é que isso é pode ser bom? Os especialistas explicam

Já ouviu falar em 'ghosting'? O termo foi cunhado pelos mais novos, mas o comportamento extravasa as fronteiras das gerações. É a versão moderna do "pai de família que saiu de casa para comprar cigarros e nunca mais voltou", compara o psicólogo João Veloso, referindo-se à velha piada do pai que abandona a família, sem dar satisfações.

'Dar ghost' significa isso mesmo: desaparecer sem deixar rasto, tal qual um fantasma. Apesar de não ser novo, este comportamento verifica-se "cada vez mais" nas relações interpessoais, sejam elas amorosas, de amizade ou até profissionais, indica à CNN Portugal o terapeuta de casal Fernando Mesquita.

"Em termos profissionais, pode acontecer, por exemplo, nas entrevistas de emprego, quando as pessoas que são entrevistadas criam algum tipo de expectativas e depois não chegam a ter resposta sobre se foram selecionadas ou não para o cargo a que se candidataram", explica o terapeuta.

O mesmo acontece em potenciais relações amorosas, prossegue Fernando Mesquita: "O que acontece muitas vezes é que alguém entra em contacto com outra pessoa através das redes sociais, começa a mandar mensagens e manifesta muito interesse em relação ao outro, que acaba por criar expectativas e acredita que existe um interesse genuíno da outra parte em conhecer e aprofundar a relação. Depois, de um momento para o outro, a pessoa desaparece."

O psicólogo distingue os dois elementos como "o agressor" e a "vítima", frisando que este comportamento "é sem dúvida um tipo de agressão", mesmo que não seja intencional. Isto porque a vítima "fica completamente perdida e a sofrer bastante porque não encontra respostas para o que aconteceu", sustenta.

Sendo certo que este comportamento não é novo, os dois psicólogos não têm dúvidas que as redes sociais o tornam "muito mais frequente", uma vez que basta um clique para termos acesso a "um número quase infinito" de pessoas novas para conhecermos, observa Fernando Mesquita.

O agressor provavelmente também já foi vítima

Mas, mais do que as tecnologias, a culpa é mesmo do agressor - que, muitas vezes, já foi também ele uma vítima, argumenta João Veloso, investigador do Observatório do Trauma da Universidade de Coimbra.

"Estamos a falar de pessoas que têm dificuldades em construir relações. Ou então que viveram situações muito traumáticas, que ativaram outro tipo de respostas", sugere, referindo-se a situações de abusos, por exemplo, que desencadeiam "problemas de vinculação", isto é, reações que advêm dos modelos de vinculação da nossa infância e que acabam por moldar as nossas atitudes e comportamentos na vida adulta.

No caso, o modelo de vinculação do agressor será mais "evitativo", isto é, pode ter dificuldades em estabelecer ligações ou assumir compromissos, explica o psicólogo. É uma espécie de mecanismo de defesa, diz, exemplificando de seguida:

"Quando estamos a crescer, definimos modelos para reagir a determinadas circunstâncias. Se eu tenho uns pais em casa que estão sempre preocupados com o trabalho e não me prestam atenção, eu vou pensar que não sou importante ou que não sou suficiente. E depois isso vai ser transferido pra todas as outras relações que se baseiem nos afetos e na intimidade."

Isto não significa que exista uma relação de causa-efeito ou um mesmo um determinismo nestes padrões de vinculação, ressalva o psicólogo, que se recusa, por isso, a traçar um perfil de um potencial agressor. Ou seja, nem todas as pessoas que viveram situações traumáticas vão agir da mesma forma perante determinadas situações.

Ainda assim, o psicólogo Fernando Mesquita identifica alguns sinais a que devemos estar atentos para não cair nas armadilhas do ghosting: "Se a outra pessoa procura saber tudo sobre a sua vida, mas diz pouco ou nada sobre a vida dela, se opta apenas por um só canal de comunicação [por exemplo, uma rede social]. Muitas vezes também acontece marcarem um encontro e à última da hora dizem que surge um imprevisto e não aparecem."

Mas, acima de tudo, devemos "confiar na nossa intuição", aconselha o psicólogo. "Muitas vezes ela diz-nos que determinada pessoa não é de confiança e procuramos contrariá-la. Mas se começarmos a sentir algum desconforto, é melhor ficarmos atentos", sugere.

Deram-me ghost. E agora?

Se já se passaram horas, dias ou semanas e ainda não recebeu a notificação da resposta de que estava à espera, o psicólogo José Veloso tem uma boa notícia para lhe dar:

"As pessoas que sofrem de ghosting têm de estar muito contentes. É que as pessoas que dão ghost têm problemas em criar relações, portanto ainda bem que se vão embora", diz. Na última instância, acrescenta, "o ghosting é uma manifestação patológica e de perversão". Logo, quando o agressor desaparece, "a vítima está a ser protegida", relativiza o investigador.

Prosseguindo esta narrativa, os psicólogos aconselham a vítima a focar-se no cuidado e bem-estar pessoal, ocupando-se de atividades que lhe deem prazer, seja um desporto ou outra forma de lazer, e rodeando-se de amigos e familiares.

Tendo em conta que muitas vezes quem desaparece da relação já foi vítima de ghosting outrora, os dois especialistas recomendam que, caso necessite, procure ajuda terapêutica de forma a evitar entrar no ciclo.

Mas "as pessoas que terminam as relações desaparecendo também têm de procurar ajuda, porque estão num padrão em que não conseguem construir confiança suficiente em si e no outro para terminar a relação", argumenta João Veloso.

Neste caso, o primeiro passo é querer efetivamente mudar, indica o psicólogo Fernando Mesquita, reconhecendo que esse ponto de partida já exige "muito trabalho". É que "este tipo de comportamento acaba por criar uma espécie de adição, é algo que cria adrenalina e que nalgumas pessoas aumenta a autoestima, no sentido em que são desejadas pelas vítimas", assinala.

"A pessoa tem de se sentir realmente motivada para a mudança. Muitas vezes procuram mudar porque conheceram alguém e sentem que é com aquela pessoa que querem ter uma relação. Mas, por vezes, isso não é suficiente, porque assim que a relação deixar de ser tão positiva, facilmente desistem", preconiza.

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