As “sanções” à Rússia e mais algumas coisas

25 mar 2022, 20:05

Introdução. Sanções, contramedidas e o Conselho de Segurança

Tem-se falado muito de sanções, de pacotes de sanções e “charters” de sanções a propósito da guerra na Ucrânia. Pacote um, pacote dois, três, quatro e outros que possam vir a ser decididos. Do ponto de vista técnico, já o defendi, dever-se-ia falar em contramedidas, uma vez que as “sanções”, como mecanismo de resposta a um ilícito, ou como instrumento para enfrentar ameaças à paz e segurança internacionais, resultam de uma decisão com matriz multilateral, no âmbito das Nações Unidas.

Sucede que, por razões à vista de todos, o Conselho de Segurança não pode atuar de forma decisiva. Não consegue sequer “atuar” de qualquer forma que seja, porque, como no passado, está impedido sempre que estejam em causa, indireta ou diretamente, interesses dos membros permanentes. Este tipo de bloqueio integra o ADN do Conselho de Segurança desde 1945 – qual a surpresa?

Então, primeiro “mito” que era bom que se arredasse de vez: o CS, qualquer que seja o seu estado ou vitalidade, nunca agiu contra os membros permanentes que o integram – porque cada um deles dispõe de um direito de veto (art. 27, 3, Carta das Nações Unidas).

As contramedidas, de forma diferente, são atos unilaterais de resposta perante a invocada atuação ilícita de um terceiro ou conjunto de terceiros. E a sua adoção, como “castigo” que pretende ser, tem a intenção de induzir o infrator a cessar o ilícito (leia-se, no caso: levar a Rússia a cessar a sua agressão militar ou a não conseguir continuá-la) e a aceitar um princípio de reparação (leia-se, “pagar” pelos danos causados).

A primeira aula prática da União Europeia

Outro ponto que convém acentuar é que o facto de as contramedidas serem “unilaterais” não as diminui necessariamente do ponto de vista da legitimidade. No caso “ucraniano”, por exemplo, elas nem serão totalmente unilaterais (do ponto de vista da avaliação do ilícito da Rússia): têm como âncora, entre muitos outros elementos, a tomada de posição esmagadora da Assembleia Geral contra a agressão militar.

Têm, ainda, outra dimensão de legitimação que representa uma novidade importante. No plano europeu, com efeito, assistimos a um processo de “multilateralização” regional, em que a União assumiu um papel decisivo na negociação, promoção e execução das contramedidas. Ou seja, a União Europeia algo ronceira, muito burocrática, dividida, de standards mínimos, encheu-se de brios e começou a falar como ator político fundamental. Esta pode ser uma revolução tranquila, esperemos para confirmar.

Seria também bom que tivéssemos presente, a sério, que há mais Mundo além da União Europeia, dos Estados Unidos, da NATO, da Ucrânia e da Rússia. Nesse muito Mundo que vai além destas baias, muito dele não está a aplicar, não vai aplicar, e não quer aplicar “sanções” ou “contramedidas” contra a Rússia. Simplesmente, a Rússia tem agora como opositor, pelo menos, dois gigantes económicos, os Estados Unidos e, pela primeira vez nesta condição com caráter de efetividade, uma União Europeia determinada que, por enquanto, faz o luto àquilo vai perder.

Esta é, sob qualquer prisma, uma péssima notícia para a Rússia.

Perguntar-se-á, a União Europeia não estava já preparada, do ponto de vista das regras, para o que desse e viesse? Estava, é verdade que estava. No papel.

Com efeito, sempre por causa do Leste, a União Europeia adotou dois regulamentos. Um, em 2014, que estabelecia um quadro de contramedidas relativamente às violações da integridade territorial e da soberania da Ucrânia (pela Rússia, claro). Outro, de dezembro de 2020, que enquadra as respostas a adotar devido às violações de direitos humanos na Bielorrússia. Das duas vezes, foi uma espécie de aulas teóricas, com relativamente poucas concretizações. Desta vez, é a doer, é uma aula prática no terreno que, espera-se, não se repita.

A União Europeia, curiosamente, fez um pouco copy paste do modelo das Nações Unidas, construído para definir as sanções “individualizadas” aplicáveis ao Daesh e outras organizações terroristas, seus simpatizantes e pessoas singulares e coletivas que estabelecessem relações de qualquer natureza com aquelas entidades. O Comité de Sanções, assim se chama de forma abreviada, inspirou de forma evidente a nossa (europeia) abordagem. Ora, este facto reforça, é fácil de ver, a capacidade da UE intervir, enquanto tal e em nome dos Estados-Membros, em áreas de grande importância das relações internacionais. Com a agressão à Ucrânia, Vladimir Putin deu o último empurrão que era necessário para que o sistema ganhasse o músculo de que precisava. Como se tem visto pelas amostras já conhecidas.

It’s power, stupid!

Não se seja inocente: as contramedidas exprimem, às vezes na sua forma mais crua, relações de poder. Se o Tuvalu – com todo o respeito que merece – acordar um dia e decidir aplicar contramedidas contra a Federação Russa, é (como dizer?) bastante provável que a sua ação não induza o destinatário a alterar o rumo nem que seja um milímetro, apesar de sentir cócegas que não consegue definir de onde vêm. Já se forem os Estados Unidos a tomar essa decisão, por sozinhos que se encontrem, causarão mossa e terão projeção muito para lá da decisão em sentido próprio. Por aqui se vê: as contramedidas não são “democráticas”, refletem a capacidade distinta de influenciar e de prejudicar e, normalmente, a elas recorre quem sabe ter poder e não recear a resposta – estando disposto a pagar esse preço (porque pode).

É uma imagem bem conhecida, que distingue a vigência do princípio da igualdade jurídica dos Estados (que vale para todos), mas afasta a igualdade “absoluta” e reconhece as desigualdades de facto (população, território, recursos, etc.). Numa manhã, bem cedo, olhamos pela janela e vemos um manto imaculado de neve. Pousa um pardal, e deixa uma marca quase impercetível, delicada (é o Tuvalu). Passa a seguir um alce, tranquilo, a caminho do seu destino. Deixa marcas fundas, aqui e ali até se vê a terra negra gelada por baixo. O alce são os Estados Unidos.

A eficácia das contramedidas, os três consensos e um erro grave de avaliação

Apesar de tudo o que se disse, não é garantido que a Rússia vergue completamente e modifique comportamentos, bastando para isso que se sinta encurralada ou encostada à parede. Mas é garantido que, na relação custo-benefício, a sua “persistência” terá um desvalor presente, ou pelo menos futuro, quase incalculável. Cuba e Iraque aí estão como casos mais antigos, a Federação Russa como caso mais recente – e, penso, ainda mais dramático (em potência).

As contramedidas devem ser pacíficas, afastadas de um tempo em que as represálias armadas eram o bê-á-bá no quotidiano das relações internacionais, um tempo em que foi preciso fazer um tratado para que os signatários renunciassem a usar a força para a cobrança de dívidas.

Essa fase, conhecida carinhosamente como “política da canhoneira”, bolsa de vez em quando nas relações internacionais, nunca foi completamente eliminada. Digamos que, para alguns, a cura de desintoxicação do vício das armas “não alcançou os resultados almejados”, como dizia um velho professor no fim das orais, quando queria anunciar ao estudante que tinha chumbado (o mais das vezes, o estudante saía entorpecido da sala, sem perceber o que lhe tinha acontecido).

Neste confronto com a Rússia, é compreensível e só nos fica bem, houve muitos que participaram, ativamente, no desenho e aplicação de uma resposta sólida e consistente perante uma tão grave (para alguns, a mais grave) violação do direito internacional: a agressão armada.

Desta feita, e comparando com exemplos anteriores, verificaram-se algumas diferenças de monta; e todas funcionaram em detrimento da Rússia.

O primeiro facto pouco comum foi o da unidade.

Verdadeiramente, a adoção de contramedidas pressupõe três consensos mínimos, aplicados de forma cumulativa:

a) É necessário que haja consenso sobre a forma de qualificar o comportamento ilícito (houve: agressão armada);

b) Deve haver consenso quanto à gravidade dos riscos que decorrem do comportamento descrito em a) para aqueles que decidem (há consenso: ameaça à porta da nossa casa, e o etc. que todos sabemos);

c) É preciso, finalmente, que se aceite um custo próprio, e assumi-lo (houve esse acordo, às vezes surpreendente).

Muitas vezes no passado, as coisas periclitaram, ou porque faltava a), ou as perceções divergiam em b); ou, finalmente, até podia estar toda a gente de acordo quanto a a) e b), mas faltava a vontade de pagar que está pressuposta em c).

A Rússia terá pensado mais ou menos como se segue.

Bem podemos esquecer a), está perdido: o que estamos a fazer é demasiado óbvio, por muito que se diga e se repita até à náusea que se trata, apenas, de uma “operação militar especial”.

Quanto a b), os ocidentais poderão ter alguma razão em ficarem assustados, as bombas até se vão ouvir do lado deles. Mas também temos amigos, nem todos acompanharão. E, seja como for, nunca se porão de acordo quanto a c), porque pensam muito mais com a conta bancária e o conforto do bem-estar, amoleceram. Apertemos o cinto durante alguns meses, como fizemos em 2014, o mau tempo passa, e tudo como dantes, quartel-general em Abrantes.

Pelo menos para já, saiu a fava ao agressor. A), b) e c) tombaram uma após a outra e a Rússia viu-se confrontada com os seus fantasmas, e com um erro de avaliação dramático em mãos. A verdade, no entanto, é que a avaliação certa teria sido sempre muito difícil. Quem poderia, de facto, acertar em tantas improbabilidades?

Um azar dos Távoras

O azar dos Távoras da Rússia foi…não, não foram os Estados Unidos. Foi a Alemanha.

É melhor nem tentar adivinhar em que ponto estaríamos hoje se, nos Estados Unidos, estivesse ainda a Presidente quem nós sabemos. É melhor, mesmo.

No entanto, a Alemanha é que foi determinante para que b) e c) pudessem ser aplicados de forma tão síncrona e unida, para que a UE crescesse, se empolgasse, e decidisse. Sobretudo, através de um sinal que funcionou como o início desta história de terror para a Rússia: aquele em que o chanceler alemão, Olaf Scholz, anunciou a decisão de matar o Nord Stream 2. Mais de dez mil milhões de euros gastos, 55 mil milhões de m3 de gás/ano, conforto com um fornecimento de gás estável e barato, envolvimento de grandes empresas alemãs, lobbying muito forte de personalidades alemãs, a Alemanha colocada fora das perturbações que vinham de um gasoduto problemático (que atravessa a Ucrânia).

A tudo isso renunciou Scholz, o Chanceler que há tão pouco tempo tinha ascendido ao poder, e de forma surpreendente, porque não era o favorito. Muitos olharam para ele como um “tenrinho”, não era o colosso político que o antecedeu e, além disso, só estava sentado na Chancelaria desde 8 de dezembro de 2021. Façam as contas: quando a invasão começou, Scholz chefiava o Governo há menos de oitenta dias. Pois, mas saiu mais teso que a encomenda.

Quem quiser consegue fechar os olhos e acreditar que, num relance, se volta atrás, a 23 de fevereiro, mesmo antes de a Rússia lançar as suas tropas contra terras ucranianas.

Vladimir Putin está no gabinete, já tarde de noite, debruçado sobre um mapa da Ucrânia desenrolado numa mesa infindável de madeira, iluminado por uma daqueles candeeiros de latão como há nas bibliotecas antigas, a congeminar o momento para dar o passo decisivo. E a concluir: é agora, a Alemanha não vai mexer.

Só que Alemanha mexeu, e muito. E mais mexeu quando, para estupefação de quase todos, Olaf Scholz anunciou perante o Parlamento germânico que decidira um salto quântico no Orçamento de Defesa da Alemanha. A), b) e c), mais se confirmava a conjugação dos astros.

Angela Merkel foi despromovida de um dia para o outro: sic transit gloria mundi. No momento da saída, deixava o poder aquela que tinha marcado de forma indelével a História europeia. Scholz…coitado.

Agora, Scholz é enorme e Angela Merkel destratada de Chamberlain para baixo. A rapidez com que, por exemplo, nos esquecemos de uma coisa tão simples como a coragem que mostrou na questão dos refugiados é testemunho de que já quase não retemos informação, vivemos segundo a segundo. Cada vez mais parecidos, isso sim, com a Dori do filme Nemo, aquele peixinho incapaz de se lembrar do que quer que fosse que tivesse acontecido apenas há alguns instantes.

Mais duas ou três coisas que se juntam

A esta questão juntam-se outras duas ou três, que não se tem visto serem devidamente distinguidas. Já se sabe que a NATO estabeleceu as regras do apoio à Ucrânia com um limite claro. Não iria atuar, militarmente, ao lado do agredido, ao abrigo do direito de legítima defesa coletiva.

Mas, podia sequer fazê-lo? Poder, podia, mas não quis, devido ao risco desproporcional de contribuir, carregada de boas intenções, para uma galopada em direção a um confronto generalizado e nuclear.

Sabe-se como esta decisão foi, repetidas vezes, criticada pela Ucrânia e até, dentro da NATO, por alguns dos Estados-Membros, apologistas de uma reação musculada e militar direta frente à Rússia (Polónia, Lituânia e Eslovénia). A política é o que é, e nestes casos muito em particular. De facto, é plausível que este entusiasmo bélico à outrance tivesse bastante menor, ou desaparecesse, se algum dos Países referidos pensasse que os restantes podiam aceder às suas pretensões. Sabendo que não, ficaram bem e marcaram pontos num futuro relacionamento com a Ucrânia. E arriscam zero ou quase nada, garantindo o manter da pressão sobre a os restantes colegas e, de cada vez, “trocando” aquilo que pedem em favor da Ucrânia por mais este ou mais aquele equipamento militar, confortando o “naming and shaming” de Zelensky.

Bem jogado.

Não pode é esquecer-se que, além das contramedidas e da capacidade e coragem notáveis da resistência ucraniana (que nunca será excessivo referir), NATO, UE e vários países a título individual têm alimentado a Ucrânia com armamento, munições e outros sistemas, de forma discreta, mas não escondida, e em quantidade e qualidade tais que é cada vez mais óbvia a importância decisiva que este apoio está a ter no teatro de operações, com a balança a pender para o lado da vítima.

E o impensável está a acontecer ou a entrever-se. O anúncio de hoje da Rússia, de que completou a primeira fase das hostilidades e irá agora concentrar-se no leste da Ucrânia e na consolidação das posições das duas entidades separatistas é um momento histórico. Chegou a altura de o digerir com alguma calma, pode ser este o momento decisivo de viragem do conflito. E já é certo que “Ucrânia conquistada” …não.

Um dia se fará a história deste processo “fascinante” (que bem se dispensaria). Não é a mania das armas, é a ideia de que, como se vê, aqueles que apoiam foram mesmo até ao limite do possível na sua ajuda à resistência ucraniana.

O último ponto que pode ter um efeito dramático para a Rússia, para esta Rússia e para o futuro, é que não enfrenta apenas a condenação geral, ou as contramedidas, ou até o apoio militar dado ao seu opositor. A Rússia enfrenta, como se isso não fosse já dose suficiente, o conjunto de medidas lícitas que, nomeadamente no plano do comércio internacional, implicam mudanças definitivas de dependências. O caso do gás é o mais conhecido, embora não seja, provavelmente, o de maior impacto.

Quem mais ganha com esta recomposição? Claramente, os Estados Unidos, como se adivinhava, por exemplo, desde a morte do Nord Stream 2. O anúncio da celebração de um acordo entre europeus e americanos para o fornecimento de até 15 mil milhões de m3 de gás, só até final de 2022, transmite uma mensagem à Rússia: nunca mais.

Passar-se-ão décadas, bastantes décadas, sem que a Rússia, qualquer que seja, consiga reconstituir as “poupanças” que destruiu em 30 dias. E a União Europeia dá um sinal de relevo. Nunca mais quer, é esse o sinal, depender da Rússia – e este raciocínio irá, de forma gradual, alargar-se a outros protagonistas.

Definições de movimento

Não se conhecem decisões ou consequências perpétuas na história das relações internacionais, não é agora que isso vai acontecer. Mesmo assim, se, como a enorme maioria desejará, este desgraçado conflito estiver a aproximar-se do termo, o que vai acontecer às contramedidas, ao apoio militar à Ucrânia e a tudo o resto? Aí está a tragédia russa: vão ficar como estão.

A Rússia já sabe, não tem como ignorá-lo, que as consequências da agressão à Ucrânia vão prolongar-se no tempo, sem limite de substância ou temporal. E deixá-la exaurida económica, política, militar e socialmente, só com uma coleção grande de armas nucleares.

De Gaulle terá um dia dito dos tratados, com um sexismo que hoje não se aturaria, que os tratados eram como a beleza das mulheres e a frescura das flores: duram o que duram. Ainda é cedo para este tipo de reflexão, ainda temos anos pela frente, mas chegará o dia em que haverá que decidir se vamos repetir o “modelo iraquiano”, com sanções brutais dirigidas a um ditador e sua clique, que neles fizeram ricochete (nem as sentiram), para atingirem em cheio o povo iraquiano – que sofreu várias vezes. Sofreu porque estava nas mãos de Saddam Hussein, sofreu porque aguentou guerra após guerra, sofreu, finalmente, porque, e de longe, foi quem mais foi atingido com as sanções tão higiénicas, tão invisíveis, que sobre ele se abateram.

Dez anos depois, o Iraque tinha recuado décadas, a mortalidade infantil tinha explodido, a esperança de vida tinha recuado muito e calcula-se que tenham morrido, por efeito direto ou indireto daquele sistema de sanções, em torno de 800.000 pessoas. Abriu-se, na altura, um debate muito importante sobre se qui não estavam em causa sanções cegas, com violação grave de direitos humanos. Estavam, evidentemente.

É provável que, perante este tipo de consideração, muitos logo perguntem, indignados, “e os mortos ucranianos? E as crianças e as mulheres? E as cidades destruídas ainda a fumegar? Só pensa nos russos?”

Justamente porque esta questão é difícil, logo disse que teríamos de esperar.

Há, é verdade, um aspeto que relativiza as virtudes da “analogia” iraquiana. Esse é o de, acabado o conflito na Ucrânia, a intensidade real das contramedidas poder atenuar-se. Outro aspeto a tomar em consideração será a mão que China e Índia poderão dar à Rússia.

Sem prejuízo disso, e porque as perguntas indignadas exigem resposta, aqui vai ela.

Aquilo que nos distingue da Rússia (deste regime russo), ou pelo menos assim o espero, é uma cultura de direitos humanos que ainda continuamos a considerar património intangível do continente europeu, uma marca distintiva de humanidade. Ora, as contramedidas têm um limite inultrapassável, a partir do qual são uma ferramenta de violação de direitos humanos. Vão restabelecer-se mecanismos de responsabilidade coletiva que afastámos há séculos? Mas, se quisermos que os “russos” paguem um preço pelo menos tão elevado como aquele que, desde 24 de fevereiro, pagam e de que maneira os ucranianos, há uma solução bastante fácil e barata: repõe-se, só em relação aos russos, a Lei de Talião, o princípio do olho por olho, dente por dente.

Por enquanto, haverá que não aliviar o esforço, garantir que a independência e integridade territorial da Ucrânia sejam restabelecidas, garantir que a nossa segurança não está sob ameaça direta. Depois, chegará o tempo da responsabilidade, estadual e individual, daqueles que mais envolvidos estiveram na agressão armada. Depois, ainda, não conseguiremos fugir a uma resposta clara sobre se queremos, ou não, que a Rússia responda coletivamente. Também aí nos definiremos.

Depois de acabar

Era bom concluir com uma nota menos pesada, mas não é fácil. Nas várias frentes da guerra na Ucrânia, aqueles que combatem, qualquer que seja o lado por que o fazem, sabem que cada dia pode ser o seu último dia. Vários terão já preparado mensagens para aqueles que lhe são queridos. Para a família, a namorada ou namorado, os amigos. Essas mensagens são testemunhos, por vezes belos, por vezes tristíssimos, mas sempre pungentes, sobre o que uma guerra significa para quem a fazer, porque quer defender a sua terra, porque a isso é obrigado. Sugiro, por isso, a leitura da obra de Siân Price, “If you’re reading this…last letters from the front line”, Frontline Books, Londres, 2014, que junta cartas de combatentes, desde o final do séc. XVIII até às guerras no Iraque e no Afeganistão. O que mostra é que, qualquer que seja a guerra ou o século, aquele momento em que olhamos a morte não é diferente. É, até, terrivelmente similar para quem quer que seja, onde quer que esteja, a combater.

Termino com Beethoven. Admirava os ideais da Revolução Francesa, admirava Napoleão – e assim lhe dedicou uma das suas Sinfonias. Napoleão, como é sabido, não teve grande fim. E mesmo antes, quando se (auto)proclamou Imperador, Beethoven, tomado de um acesso de fúria, arrancou a página de rosto da referida Sinfonia, onde constava a dedicatória. Nem valerá apena dizer como a cavalgada militar do pequeno Corso confortou, e de que maneira, a decisão do compositor. Assim nasceu, por causa destas questões dos ideais e das guerras, uma “outra” Sinfonia, Heroica. O segundo movimento da Sinfonia, marcha fúnebre, destacou-se quase como obra autónoma. Foi tocado no funeral de Rossevelt, no de Mendelssohn, em 1847, e no das vítimas do atentado de Munique, em 1972. Ei-lo aqui, numa altura em que, na Ucrânia, ainda se contam as vítimas.

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