Fuga ao IVA. Como uma empresa de trabalho temporário ocultou quase 250 mil euros do Estado

17 jun 2022, 07:00
dECLARAÇÃO IVA

Chama-se W4N e era conhecida por fornecer a clientes de relevo, como a MEO e a Vodafone, técnicos comerciais e operadores de Call Centers em regime temporário e part-time. Uma investigação do Fisco desmontou o esquema fraudulento e levou os administradores a tribunal

Uma empresa portuguesa, que se dedicava ao negócio do trabalho temporário e que tinha como clientes marcas de peso como a MEO ou a Vodafone e até uma Câmara Municipal, foi apanhada num esquema de fuga ao Fisco, mais concretamente ao IVA. Segundo o processo a que a CNN Portugal teve acesso, o Juiz considerou que o Estado foi lesado em 243.884,73 euros.

Os seus dois administradores foram agora, em maio, condenados por dois crimes de abuso fiscal agravado a um ano e oito meses de prisão, cada um e, num processo com milhares de páginas, é relatado como o esquema foi desmontado pela Autoridade Tributária que passou a pente fino os contratos que esta empresa celebrou durante o segundo e terceiro trimestre de 2015.

Este é também um dos casos que fez crescer o valor que o Estado perde todos os anos com fuga ao IVA que vai desde os 4 aos 23% consoante o tipo de produto e a localização da empresa. De acordo com dados da Comissão Europeia, entre 2008 e 2018, Portugal perdeu 22 mil milhões de euros em esquemas de desvio do Imposto sobre o Valor Acrescentado. Só em 2019, as autoridades europeias garantem que 1,6 mil milhões de euros ficaram por cobrar.

No centro do processo está a W4N, uma empresa de trabalho temporário, com cerca de 700 trabalhadores, e os seus dois gestores, João Vilaça Ramos e João Peixoto e o caso remonta ao segundo e terceiro trimestre de 2015, altura em que a empresa faturou 3.754.999,30 euros em serviços de cedência temporária de trabalhadores. 

O esquema da empresa para não pagar IVA

Para não pagarem aquilo que era devido ao Estado, os dois administradores da empresa decidiram enviar as declarações periódicas para o pagamento do IVA ao Fisco, preenchidas e a identificar que o dinheiro já tinha chegado aos cofres do Estado, “sem as fazer acompanhar do correspondente meio de pagamento”, concluiu o relatório da Autoridade Tributária e Aduaneira, que foi utilizado como prova documental na acusação do Ministério Público contra a empresa.

A verdade é que a primeira vez que este esquema foi colocado em marcha, os dois administradores sentiram que tinham conseguido fugir ao pagamento do IVA, já que não foram imediatamente notificados pelo Fisco, o que, segundo a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, lhes deu a segurança para tentarem o golpe uma segunda vez. “As pluralidades de resoluções criminosas tomadas sustentaram-se no sucesso da primeira, dada a facilidade com que conseguiram eximir-se ao pagamento do IVA, pelo que repetiram o mesmo procedimento”, conclui o juiz. 

Mas se no primeiro trimestre tiveram a perceção de que conseguirem iludir o Estado, que não avançou imediatamente com nenhuma ação, na segunda vez, soaram os alarmes na Autoridade Tributária que iniciou uma investigação em 2015 e que concluiu que no segundo trimestre a empresa não tinha pago, em IVA, 122.969,86 euros e no terceiro trimestre tinha acumulado de forma criminosa 120.874,87 euros.
 

Para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, os administradores da empresa de trabalho temporário “fizeram seus e da sociedade os referidos montantes, no valor de 243.884,73 euros, que gastaram em proveito próprio, usando-o para prosseguir outros fins e interesses da empresa”. Neste período em que o IVA não foi pago ao Estado, João Vilaça Ramos e João Marques Peixoto, de acordo com a investigação feita pela Autoridade Tributária e Aduaneira, assinaram contratos com dezenas de empresas, incluindo a MEO e a Vodafone, a quem a W4N fornecia técnicos comerciais e operadores de Call Centers em regime temporário e part-time.

Entre os vários contratos em que os administradores fugiram ao Fisco, segundo o acórdão, estão também dois feitos com a autarquia de Resende. Um para a contratação de um psicólogo durante nove meses, no valor de 7.315,00 euros e outro para o contrato de um ano de um auxiliar de serviços gerais que custou à autarquia 5.332,80 euros. Os dois contratos, realizados durante o segundo e terceiro trimestre de 2015, ascenderam a um valor total de 12.647,8 euros e fazem parte do relatório do Fisco sobre este caso que envolve a W4N. 

Para além disto, segundo o Portal Base, no resto do ano, em janeiro e outubro, a W4N assinou outros quatro contratos com a autarquia de Resende, no valor total de 104.832,08 euros, por causa da contratação de oito motoristas de transportes coletivos de crianças (93.449,28 euros) e de um auxiliar de serviços gerais (5.332,80 euros), tal como a prestação de serviços na área das Tecnologias de Informação e Conhecimento (6.050 euros).

A testemunha chave 

Segundo o processo a que a CNN Portugal teve acesso, houve uma testemunha que foi central para a investigação que o Fisco conduziu à empresa de trabalho temporário, uma vez que assumia o cargo de técnico oficial de contas da W4N desde 2013. Interrogado no dia 18 de fevereiro de 2016, contou que “tinha conhecimento de que o pagamento não foi oportunamente efectuado” e que os próprios administradores tinham “consciência da gravidade do incumprimento, designadamente que tal prática podia configurar uma infração de natureza criminal”.

João Vilaça Ramos e João Marques Peixoto foram constituídos arguidos no mesmo mês em que o técnico oficial de contas foi interrogado e foram sujeitos a Termo de Identidade e Residência. Um mês a seguir, no dia 30 de março, Vilaça Ramos foi levado para interrogatório, onde, segundo o auto a que a CNN Portugal teve acesso, assumiu “ter conhecimento de que não foi entregue nos cofres do Estado o IVA devido pela sua sociedade” e justificou o não pagamento com “dificuldades no recebimento de alguns clientes”, sublinhando que essas empresas, sem identificar quais, deviam à W4N “meio milhão de euros”.

Já o juiz, que considerou que o grau de ilicitude dos factos era “muito elevado se considerarmos o valor dos pagamentos omitidos”, sublinhou, na sentença, que a fuga ao IVA “acarreta imensas desigualdades sociais”, desde logo, “porque agrava de forma injusta a carga tributária dos contribuintes cujos impostos estão controlados, cria uma imagem de impunidade que coloca em causa a coesão social e faz vacilar o sentimento de dever que cada cidadão deveria ter presente ao pagar os seus impostos, com a noção de contribuir para o bem nacional.”

No final, os dois administradores foram condenados por dois crimes de abuso de confiança fiscal e receberam, cada um,  uma pena de um ano e oito meses de prisão que foi, no entanto, substituída por 480 horas de trabalho comunitário, tendo sido dada indicação à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais para definir o tipo de trabalho que lhes será dado.

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