«Não escondo que o 7-1 doeu: eh pá, que ganda vergonha!»

4 mar 2016, 10:13
Mário Zambujal  - Apresentação de «Serpentina» Foto: João Cabral/Lux

Entrevista com Mário Zambujal, a propósito do dérbi do próximo sábado e dos 80 anos de uma vida cheia de cor

Uma casualidade feliz agendou o Sporting-Benfica para o dia em que Mário Zambujal completa 80 anos. O que deu um excelente pretexto para falar com uma das mais entusiasmantes personalidades deste nosso Portugal.

Amante da noite e das mulheres, namoradeiro, diz que é um apaixonado pela vida, pelas pessoas, pela beleza e pelo ritual de sedução: adora cortejar.

A conversa começa aliás com um elogio à empregada de mesa que vem trazer os cafés, uma jovem russa que sorriu perante o galanteio. A partir daí continua pelo prazer do futebol, pela história de uma vida riquíssima e pelos derbis que não nos saem da memória.

Para um amante da beleza e do prazer como o Mário Zambujal é, tornou-se natural apaixonar-se pelo futebol?

O futebol tem estética. Há lances de futebol de puro bailado. Aliás, é um jogo muito bem imaginado. Como dizia o meu primeiro chefe, o Vítor Santos, de A Bola, o futebol é um desporto jogado com a parte inábil do corpo humano: os pés, a cabeça, os joelhos, todas as partes em que o ser humano não tem habilidade. Por isso também é tão belo.

Mas gosta de futebol ou gosta do Benfica?

Não são duas coisas paralelas. Gosto muito de futebol. Do Benfica gosto enquanto herança familiar, enquanto sentimento de pertença a um grupo. O futebol é a parte mais visível, espetacular e apaixonante desse Benfica. Mas não deixaria de ser benfiquista se não houvesse futebol, nem deixaria de gostar de futebol se não houvesse Benfica.

A paixão pelo Benfica foi-lhe portanto passada pelo seu pai...?

Foi. Tenho amigos que são benfiquistas e os filhos sportinguistas, ou vice-versa, mas para mim isso são modernidades. À antiga, o pai tinha o cuidado de instilar no filho, logo de pequenino, a paixão e o gozo de pertencer a um clube. Aquilo era parte da família.

Portanto consigo isso começou também muito cedo...?

E estou grato ao meu pai por isso, acho que ele fez muito bem. O Benfica tem-me dado grandes satisfações.

E algumas desilusões, também...

Não sou do género de adepto que fica amargurado quando o clube perde. Fica-se chateado um quarto de hora, claro que sim. Tenho uma neta de 20 anos que é uma benfiquista fervorosa e digo-lhe: a vida é a vida e a gente saboreia esta coisa que é o futebol. Com alegrias e desilusões, mas... eh pá, não passa disso.

Ainda vai ao estádio?

Sou sócio fundador, tenho lugar anual e a minha casa está à distância de ir a pé ao Estádio da Luz, mas raramente vou. Até é a minha neta que utiliza mais o cartão. Se me chateio com um jogo e estou em casa, vou fazer outra coisa. No estádio não.

Mas para um crítico da desumanização criada pela tecnologia, ver o jogo pela televisão não afasta também as pessoas?

Um pouco, sim. Futebol é no estádio. Até porque um jogo vê-se bem é no estádio. Nas bancadas é que se entende o futebol. Mas tenho um bocado de preguiça.

E não sente falta do ritual de ir ao estádio?

De vez em quando sinto, sim. E nessas alturas vou. Geralmente vou muito cedo, passeio pelo estádio, olho para as pessoas, sinto o início da festa. Gosto disso. Ver um jogo no estádio é insubstituível. Mas hoje vejo mais o futebol na televisão, confesso.

Vê tudo ou vê só o Benfica?

Vejo o campeonato português e vejo muito o campeonato inglês. Aí é que me entusiasmo, como apaixonado pelo futebol. Gosto muito da liga inglesa. São combates duros, limpos, nobres. É raro ver um jogador a atirar-se ao chão. Foram os gajos que inventaram o jogo e têm um grande respeito por ele.

Gostava de ter sido jogador de futebol?

Eu fui. Fui capitão da equipa de juniores do Sporting Lisboa e Faro, que era a filial número um do Benfica. O clube tinha os melhores bailes do Algarve.

Isso já explica muita coisa...

Pois, talvez. Desportivamente estava um bocado adormecido e fui encarregado de arranjar uma equipa de juniores. Conhecia muitos tipos que jogavam bem à bola e fizemos uma equipa, e tal. Só que havia um problema: o clube tinha realmente bailes fabulosos. E eu percebi duramente como as noites de sábado são demasiado próximas das manhãs de domingo. Por isso ficávamos todos rotos para os jogos, que eram ao domingo de manhã.

E havia outro problema, que era o seu pé esquerdo...

Esse era um grande problema. O treinador obrigava-me a treinar com uma sapatilha no pé direito e uma chuteira no pé esquerdo, para eu tratar a bola com o pé esquerdo. Ó pá, ia de sapatilha, ia de tudo, o pé esquerdo é que nada.

Jogava melhor do que o presidente Cavaco Silva?

Eu acho que jogava melhor do que ele. Isso acontecia porque as nossas famílias passavam férias nos Olhos d’Água, no Algarve. Eu devia ter uns 17 anos e ele era mais novo, teria uns 14 anos. Ele era um rapazito muito alto, muito esguio, chamávamos-lhe o Nibinho, diminutivo de Aníbal. Ele sabe que nunca votei nele, mas foi sempre simpático comigo.

E ele não era tão duro a jogar futebol como foi mais tarde a tomar decisões políticas?

Aquilo eram jogos na praia. Ele era um rapaz alto, rápido, mas não me lembro de como jogava, sinceramente.

A sua carreira de futebolista acabou nos juniores?

Sim, depois fui convidado para selecionador de juniores do Algarve. Há distinções na minha vida que me dão vontade de rir e esta é uma delas. Quem era eu para ser selecionador de juniores do Algarve?! De maneira que disse que sim. Fui a Olhão convidar o senhor Fernando Cabrita para treinador. Então eu era selecionador e ele treinador, mas ele é que fazia tudo. Eu só lhe dizia: ó Fernando, não me lixem com isto. De maneira que foi esta a minha pouco consistente carreira de homem do futebol.

Mas depois construiu uma carreira de jornalista desportivo e foi o primeiro rosto do desporto da RTP no pós-25 de abril, quando apresentou o Grande Encontro...

A vida é cheia de acidentes. Eu com 16 anos escrevia contos no «Ridículos», que era um jornal satírico, por causa de um professor que tinha em Faro que me incentivava a enviar para Lisboa o que escrevia. Bem, a minha família ficou muito admirada, porque eu só queria saber de futebol e bailes. Mas enfim, escrevia nesse jornal quando adoeceu o correspondente de A Bola no Algarve. Teve de ficar três meses em casa e pediu-me para o substituir. Assim aconteceu. Depois ele regressou e ficámos os dois, mas A Bola pedia-me mais coisas a mim, o que até gerou uma situação desconfortável, mas pronto.

Depois tornou-se o primeiro corresponde de A Bola a vir para Lisboa, correto?

Inicialmente disse que não, que no Algarve tinha oito meses de praia, mas depois lá vim. Aluguei um quarto no Bairro das Colónias e os primeiros tempos foram difíceis. Eu tinha uma vida boa lá em baixo, pá... Toda a gente me conhecia, tinha montes de amigos.

Foi nessa altura que, como diz, foi adotado pelo Carlos Pinhão...

O Carlos Pinhão levava-me para todo o lado. Eu sentia-me sozinho, faltavam-me as amizades, e ele levava-me para casa dele. O Carlos Pinhão foi um grande amigo. Como foram o Alfredo Farinha, o Aurélio Márcio, o Cruz dos Santos, o Homero Serpa, enfim.

Tudo grandes escritores...

Nunca fui um analista do jogo. Fui um contador de histórias. Agora às vezes ouço falar de losangos invertidos e digo logo: eh lá, isto é de mais para mim. Há tempos num debate com o José Peseiro até disse que estavam a matar o futebol. Antigamente havia uma coisa fundamental que é o espaço. Depois foram ao basquete buscar o pressing, agora há pressing em todo o terreno, tiraram o espaço aos artistas e isto está a matar o jogo. Um tipo como o Peyroteo tinha só um Gaspar Pinto a marcá-lo, não havia cá dobras, e mais dobras, e mais coisas. Agora vão quatro jogadores a uma bola...

Mas isso não faz parte da evolução natural do jogo?

Pois, talvez. Mas depois assistimos a coisas estranhíssimas como um clube grande comprar quatro avançados fabulosos, cada um a custar uma fortuna, para colocar um no onze, um no banco e dois na bancada. Custa-me ver jogadores fabulosos, comprados a peso de ouro para marcar golos, que depois não jogam porque o jogo está feito maioritariamente para não sofrer golos. Isto é uma crueldade para o futebol.

Consegue eleger o craque da sua vida?

Diria que foi o Eusébio. Mas não esqueço o Matateu, o Travassos, o Carlos Duarte, do FC Porto, enfim, houve grandes jogadores. Mas se tivesse de escolher um, pela excecionalidade, o Eusébio. Digo mais: se o Eusébio jogasse hoje continuaria a ser um estrondoso jogador. Tal como o Simões, o Zé Augusto, o Vasques, o Travassos ou o Hernâni, do FC Porto. Mas talvez ganhassem menos lances. Olha-se para o Gaitán, e ele tem pés de ouro. Faz coisas extraordinárias. Mas a malha está mais apertada e por isso é um jogador menos perfeito.

Curioso que não tenha falado de Messi ou de Cristiano Ronaldo...

O Messi e o Cristiano têm a vantagem de fazer coisas extraordinárias, numa época particularmente difícil para os avançados.

Mas o futebol hoje em dia tem menos cor, é isso?

Antigamente também havia o catenaccio. Também havia o Benfica de Riera, que era um grande amigo meu, com quem passei muitas noites a beber copos, mas que era um treinador que tinha uma ideia clara: a bola era a arma do jogo. Por isso tinha uma obsessão de jogar para o lado e para trás, fazer tudo para não perder a bola. Mas regra geral havia mais espaço, havia mais espetáculo, o futebol era mais colorido.

Ainda compra jornais desportivos?

Sim, compro jornais desportivos.

Mas o jornalismo hoje é muito diferente...

A vida hoje é muito diferente. A vida é muito mais comercial. Por exemplo, não tenho pachorra para ver os programas de televisão que tem um tipo do Benfica, um do Sporting e um do FC Porto a discutir arbitragens. Não consigo ver. É preciso gostar do futebol com todas as suas imperfeições e ter educação desportiva. Quando se fala de verdade desportiva sem condenar o jogador que simula penáltis e tenta ludibriar o árbitro... Quando até se elogia o jogador que tem ratice para cavar penáltis... Por amor de Deus.

Hoje há menos educação desportiva, para usar a sua expressão?

Sempre houve. Os árbitros sempre foram acusados de ser gatunos, sempre houve insultos, antigamente até havia jogos que acabavam em pancada de meia-noite. O que hoje há mais, e é grave, é a insinuação. É dizer uma coisa, sem o dizer, é atirar uma coisa para o ar e depois esconder-se. Ah, e tal, não foi isso que disse. Essa falta de frontalidade é terrível.

Voltando um pouco atrás: surpreendeu-o o convite para o Grande Encontro?

Eu ri-me. Como diabo se foram lembrar de mim? Comecei por dizer que não, mas houve uma noite, eram para aí quatro da manhã, num bar - sempre gostei muito de bares -, em que o Serafim Marques, coordenador de desporto da RTP, me dá cabo da cabeça, que tinha de ir e que ia só fazer uma experiência. Bem, lá fui, às tantas percebo que ia ser em direto, fiquei nervosíssimo, em pânico, meti os pés pelas mãos completamente.  

Foi assim tão mau?

Terrível, terrível. Às tantas havia uma prova de atletismo no Estádio Nacional e tínhamos de ir em direto para acompanhar as duas últimas voltas do Carlos Lopes. Atrapalhei-me tanto que quando fomos em direto já o homem tinha tomado banho, ou caraças. Saí do estúdio a dizer que não voltava, mas depois pensei: se sair agora, saio derrotado. Só saio quando estiver a ganhar, ou pelo menos empatado.

Por isso lá voltou...

Por isso lá voltei e fui ficando. Ainda por cima na altura usava um bigode à mexicano, fantástico, e o Serafim obrigou-me a cortar o bigode...

O jornalismo desportivo no pós-25 de abril era tão instável como o país?

Nessa altura não existia jornalismo desportivo. Vou confessar-lhe uma coisa. Eu estava em O Século nessa altura e ninguém se entendia naquele jornal, andava tudo à porrada. Como nunca gostei disso, bati com a porta. Apareceu-me um convite para diretor do Mundo Desportivo e eu pensei: bestial, anda tudo à porrada e eu aqui a ver a bola. Nisto vou falar com o Coronel, administrador do grupo, e digo-lhe que só queria ficar como sub-chefe de redação do Diário de Notícias, em comissão de trabalho no Mundo Desportivo. E era ele: eh pá, mas você quer ficar como sub-chefe de redação? Diretor é muito mais importante... E eu só lhe digo: ó Coronel, o Mundo Desportivo vai acabar.

E acabou...

Pois acabou. Não tinha condições. Podia ter sido mais poderoso do que A Bola, porque tinha muito dinheiro, mas era subsidiário do Diário de Notícias e não tinha uma redação excecional, como tinha A Bola. Tinha o David Sequerra, e pouco mais.

Depois ainda apresentou o Domingo Desportivo...?

Pois, entrei para os quadros da RTP e estando nos quadros tinha de fazer o que me mandavam. Mas essa segunda vez já fui sem nenhum entusiasmo. O Adriano Cerqueira insistiu comigo e eu sem pachorra nenhuma. Já estava muito afastado do desporto.

Como é que se consegue fazer tantas coisas numa vida só?

Fui um tipo bafejado por esta coisa muito importante que é a sorte. Quando era miúdo, o correspondente de A Bola adoeceu e eu comecei uma carreira de jornalista, que mudou por completo a minha vida. Um dia fui parar ao Diário de Lisboa, onde tinha o Fernando Urbano e o Assis Pacheco. Num dia de férias fiquei em casa, com uma garrafa de whiskey, comecei a escrever uma brincadeira, que mostrei a esses amigos, homens das letras e das artes, e assim nasceu a Crónica dos Bons Malandros, que também mudou a minha vida. Passados 35 anos ainda saem edições desse livro.

Aliás, fez tantas coisas que até dirigiu uma revista chamada Modas e Bordados...

Ahahahahah. Eu não dirigi coisa nenhuma, pá. Um dia a diretora da Modas e Bordados foi saneada e o Francisco Sousa Tavares, que era o administrador do grupo, chamou-me às gargalhadas a dizer que tinha uma coisa para mim: as senhoras da redação só aceitavam voltar a trabalhar se eu fosse o diretor. Eu disse que não punha lá os pés, mas que dava o nome. Só impus duas coisas: mudar o nome da revista para Mulher e tornar a fundadora, a D. Maria Lamas, diretora honorária. Um dia meti a redação no meu Fiat 125 e fomos todos a Évora, tomar um chá e fazer o convite à D. Maria Lamas. De resto não fiz mais nada, avisei logo que não valia a pena falar-me do ponto cruz.

Voltando atrás, qual é o dérbi que não esquece?

É pá... Há um jogo, uma final da Taça de Portugal, que o Benfica ganha por 5-4 com três golos do Rogério Pipi. Eu não vi o jogo, só ouvi o relato, mas deve ter sido uma coisa eletrizante. E o Benfica nessa altura não era melhor, pelo contrário: era o grande Sporting, ainda com alguns Violinos. Como também não esqueço um jogo que o Sporting ganhou com quatro golos do Lourenço... Foi uma coisa completamente inesperada.

Já esqueceu o 7-1?

O 7-1 acontece num ano memorável para o Benfica, que foi campeão. Mas enfim, gosto muito do Manuel Fernandes, que entrevistei algumas vezes. Foi um jogo que aconteceu, como o Benfica ganhou também 6-1 e ganhou 5-0, penso que com cinco golos na primeira parte. Agora não escondo que o 7-1 doeu. Eh pá, 7-1, que ganda vergonha. Mas houve outro Benfica-Sporting que não esqueço, que foi o do 6-3. O Sporting tinha uma grande equipa, com Figo, Paulo Sousa, Balakov, o Benfica tinha o João Pinto e ganhou o título.

Como imagina que vai ser este dérbi de sábado?

Eu sou um dos vaticinadores do Expresso e atenção: a semana passada ia em terceiro. Não sou mau. Apostei num 2-2. Mas não sei, pá. Isto depende muito da noite. Se o Sporting ganhar não será surpresa, como se o Benfica ganhar também não o será.

Um Sporting-Benfica no dia do 80º aniversário é uma bonita homenagem que o futebol lhe faz?

Eu acho que a maior parte das pessoas nem sabe, para me dar essa atenção. É uma coincidência naturalmente, mas muitas das pessoas de quem eu gosto lá irão acabar a jornada em Alvalade ou em frente da televisão. Eu tenho um encontro de comemoração, possivelmente não verei o dérbi em direto, mas vou ver depois seguramente.

Aos 80 anos, o que sente que lhe falta fazer?

O meu projeto mais urgente agora é fazer 81 anos.

Não tem planos, portanto?

Eh pá, nunca planeei nada, por isso vou deixar que a vida corra e continue a oferecer-me coisas boas como tem oferecido.

Sporting

Mais Sporting

Patrocinados