«Fui um dos putos que corriam atrás do Quaresma na rampa do Olival»

30 jan 2021, 09:48

Entrevista a Jorge Fernandes, defesa central do Vitória de Guimarães - Parte I

O Vitória Sport Club, de Guimarães, chega à 15ª jornada do campeonato com uma marca defensiva impressionante: apenas 13 golos sofridos. Um dos principais responsáveis pelo registo é Jorge Fernandes, o defesa mais utilizado por João Henriques e a referência do quarteto mais recuado. 

Aos 23 anos, Jorge faz a primeira temporada sem qualquer ligação ao FC Porto e vai dizendo estar determinado a recolocar o emblema de D. Afonso Henriques nas provas da UEFA. Seguro no discurso, fiável dentro do campo, o defesa central abre a alma ao Maisfutebol e percorre os caminhos que já o levaram à Turquia e a dois balneários comuns com Ricardo Quaresma. 

O Mustang merece palavras muito especiais nesta conversa exclusiva com o defesa central do Vitória, um dos nomes nacionais mais interessantes a competir na liga portuguesa.


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Maisfutebol – Esteve só um ano fora de Portugal. Quais os motivos que o levaram a optar pelo Vitória?
Jorge Fernandes – Já tinha falado há algum tempo com o meu empresário. Queria voltar a Portugal e dar um passo em frente na carreira, mas um passo consciente. Não queria dar um passo maior do que a perna. Pretendia um projeto trabalhado, estruturado e o nome do Vitória deixou-me muito contente. Como amante do futebol, é impossível não admirar o clube e os adeptos. Nunca tinha jogado no Vitória, mas já havia uma ligação através de amigos que tenho na instituição e de outros que são adeptos apaixonados. Conhecia também alguns dos futebolistas. Foi fácil escolher, sinceramente. É um clube de exigência altíssima e de dimensão média-alta em Portugal. Sentia-me preparado para jogar neste enquadramento.

MF – O que falta ao Vitória para lutar sempre pelo «top 5» da Liga?
JF – Iniciámos um novo projeto e o foco é esse, estar sempre entre os melhores. Do presidente ao tratador da relva, todos sabem que é aí que temos de andar. Os resultados estão a ser bons na Liga, não fomos à «final four» da Taça da Liga por um mero detalhe – perdemos por penáltis na Luz – e na Taça de Portugal, sim, ficámos aquém do que desejávamos. Este ano a diferença entre o Vitória e os quatro primeiros é muito pequena. Temos excelentes condições de trabalho, o plantel é forte e a dimensão social do clube é rara.

MF – Tem sido sempre titular neste Vitória. Podemos falar em «época de afirmação» para o Jorge Fernandes?
JF – Acredito que sim. Quero que todas as temporadas sejam boas, mas é verdade que sou titular num grande clube. As pessoas em Portugal podem ver-me a jogar todas as semanas, ao contrário do que acontecia na Turquia. Esse foi um dos motivos que me fizeram voltar ao nosso país, não queria cair no esquecimento. A liga turca não tem grande visibilidade e senti que precisava precisamente disto. Jogar, render e ser visto.

MF – O Vitória só tem 13 golos sofridos em 15 jornadas. Que relevância tem este número para o defesa mais utilizado da equipa?
JF – É sempre bom não sofrer golos, estamos sempre mais perto de ganhar. O meu papel é esse, ajudar a equipa a estar sólida, mas no Vitória toda a gente participa no processo defensivo. Estamos satisfeitos com esse dado e somos até a defesa menos batida fora de casa. Mas, é importante dizer, o que mais queremos é somar pontos. Só com pontos esse registo ganha sentido. Queremos pontuar em todo o lado.

MF – Este Vitória já tem a impressão digital forte do João Henriques? Organizado e conhecedor de todos os momentos do jogo.
JF – Era esse o Santa Clara do mister. Estamos a evoluir, há sempre pormenores a melhorar e tentamos conhecer treino a treino ainda melhor as ideias do treinador. Mas, dentro do jogo, tem de ser a própria equipa a ter essa capacidade de decidir também. Quando deve pausar mais o jogo, quando deve arriscar numa transição, quando deve acelerar, quando deve ter bola. Temos evoluído em todos os aspetos, a mensagem do mister tem passado bem, estamos a todos a pensar o jogo da mesma forma e os resultados estão à vista. O treinador e os adjuntos têm-nos sabido ajudar e a equipa tem progredido bastante desde a chegada deles.

MF – O que nos pode dizer sobre os outros defesas centrais do plantel? O Mumin e o Suliman também têm jogado regularmente.
JF – São dois excelentes centrais. O Mumin é rápido e sabe sair com bola. O Suliman é mais refinado e é muito forte nos duelos. Tenho uma concorrência forte (risos). Curiosamente, não sei se é da posição, mas os centrais que tenho apanhado têm sido exemplares no compromisso e no trabalho. E no Vitória é a mesma coisa. Ainda temos o Bisseck, que começou connosco e tem jogado mais pela equipa B, e o André Amaro. O Amaro subiu à equipa A, já jogou nos Açores e é um miúdo com muita qualidade e grande margem de progressão. Se mantiver a cabeça no lugar, o André será um excelente jovem defesa central, só tem 18 anos.

MF – Por falar em jovens, falemos de Ricardo Quaresma. Foram colegas no Kasimpasa e estão juntos em Guimarães. É mera casualidade ou houve influência mútua nisto?
JF – Se houve coincidência foi provocada pelo Ricardo. Ele é que anda sempre atrás de mim, eu fui o primeiro a chegar ao Kasimpasa e ao Vitória (risos). Para mim é um privilégio poder partilhar balneário, campo e momentos com ele. Eu era um dos putos que na rampa em paralelo do Olival corriam atrás do carro do Quaresma. Era o Quaresma. Agora estar a jogar com ele, é um privilégio. É um jogador diferente. No início as pessoas podiam duvidar por ele ter 37 anos, mas quem tem magia nos pés vai tê-la sempre. Se calhar já não tem a mesma velocidade, mas o Quaresma é muito inteligente e percebe o que pode e que não pode fazer. Ele sabe o que consegue e já não consegue fazer. É pura inteligência. E a qualidade… é inquestionável, poucos são assim. É um exemplo em muitas coisas, ajudou-me imenso na Turquia, foi fundamental. Já lhe agradeci em privado e agora faço-o em público.

MF – Portanto, o Jorge já estava no Kasimpasa quando o Quaresma chegou. Como foi esse encontro? Disse-lhe que andava atrás do carro dele no Olival?
JF – Bem, quando começaram a dizer que ele podia ir para lá, confesso que fiquei entusiasmado. Ia ter ao meu lado um ídolo. No primeiro dia do Ricardo no Kasimpasa fui bater-lhe à porta do quarto e ele foi logo cinco estrelas, a fazer conversa comigo. Eu, pronto, fiquei um bocado envergonhado. Mesmo hoje, que tenho mais confiança com ele, mantenho-me muito respeitador (risos). É a minha maneira de ser, o Quaresma será sempre o Quaresma. É mais velho e já conquistou coisas que eu sonho um dia conquistar. É um colega diferente. Nunca quis invadir a privacidade dele, apesar de o Ricardo me deixar sempre muito à vontade. É engraçado, porque ele mostrou uma abertura muito grande comigo desde o início.

MF – Que tal foi essa experiência na Turquia?
JF – Foi rica, com muitos momentos altos e muitos baixos. Evoluí como pessoa, claramente. Eu queria ter uma experiência fora de Portugal ainda novo, para perceber o que é e não ter problemas no futuro, se voltar a sair. O campeonato não é muito evoluído, mas no ataque as equipas têm sempre grandes nomes, têm dinheiro para isso. Ainda agora o Mesut Ozil foi para o Fenerbahce. Defrontei muitos pontas-de-lança de qualidade e apanhei um futebol muito partido, feito de transições e que expõe muito os centrais. Isso obrigou-me a mudar e a melhorar. Em Portugal é tudo mais pensado e tático. Vivi sozinho pela primeira vez, a cozinhar, a tratar da casa e hoje dou ainda mais valor à minha mãe por causa disso. Adorei a experiência, sabendo que tive momentos difíceis.

MF – Que avançados o impressionaram na Turquia?
JF – O Vedat Muriqi, do Fenerbahce. Está agora na Lazio, mas joga poucas vezes. Tem força, joga bem de costas para a baliza e é poderoso nos duelos. Pela qualidade e velocidade, diria o Papiss Cissé, que se mudou para o Fenerbahce e já jogou no Newcastle. Não incluo o Radamel Falcao porque não joguei contra o Galatasaray. São jogadores experientes, com grande nível e que conhecem os truques todos. Eu era apenas um miúdo a querer aprender e evoluir. Na Turquia não faltam condições de treino e capacidade financeira. No Kasimpasa tínhamos estruturas ao nível dos três grandes de Portugal. Tive três treinadores e todos encaram o momento de transição e o jogo partido como aspetos normais. Joguei muitas vezes, mas admito que tive uma época inconstante. Nos momentos maus temos de nos concentrar naquilo que podemos fazer, no que controlamos: treino, descanso, alimentação. Temos de dar o máximo, ter a consciência tranquila e o resto é decidido pelo treinador.

MF – Passou por algum momento inesperado durante o ano em que viveu na Turquia?
JF – Bastantes, sim. O clube é de Istambul e estávamos no lado ocidental, mas posso contar um episódio revelador. Na primeira sexta-feira em que lá estava, treinei de manhã e depois ia almoçar no restaurante do centro de estágios do Kasimpasa, como fazíamos sempre. Cheguei lá e só vi mais dois ou três colegas, os que não eram muçulmanos. Não estava mais ninguém. Cozinheiros, funcionários, futebolistas, treinadores, nada. Ficámos a pensar que nos tínhamos atrasado e que estávamos tramados (risos). Mas não. Sexta-feira, à uma da tarde, todos se juntavam na mesquita mais próxima para rezar. E os outros ficaram ali, desamparados e sem comida (risos). Como éramos novos no clube, não sabíamos disso.

MF – Voltando ao Vitória, o que perspetiva e o que é possível alcançar esta época?
JF – No domingo temos de ganhar ao Marítimo em casa. O ano passado não conseguimos ir às competições europeias e este ano queremos devolver o Vitória às grandes noites da UEFA. É possível, há qualidade, ambição e uns adeptos que nos obrigam, no bom sentido, a isso. Eu gosto dessa pressão, dessa exigência das pessoas que gostam do Vitória. Acredito que vamos acabar a época a celebrar.

MG – Os adeptos não podem ir aos jogos, mas sente na cidade essa ligação com as pessoas?JF – Claramente, até dou um exemplo concreto. Damos sempre um passeio perto do hotel onde estagiamos para os jogos e ouvimos sempre, no mínimo, 20 buzinadelas de carro, gritos de «vamos lá ganhar!» e coisas do género. Pessoas mais velhas, mais novas, as pessoas de Guimarães amam o Vitória, é muito bonito. Já joguei no D. Afonso Henriques como adversário e arrepiei-me. É uma atmosfera muito especial mesmo.

CRÉDITOS DAS FOTOS: Studium Creative

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