O problema não é novo mas agudizou-se nestas últimas eleições: os emigrantes queixam-se que o sistema eleitoral é demasiado complexo e não responde às suas necessidades. Que mudanças são necessárias?
Nas últimas eleições legislativas, foram contabilizados 189.676 votos nulos - destes, 122.327 registados nos círculos eleitorais dos emigrantes. A percentagem de votos nulos nos círculos de emigração costuma ser elevada. Ainda assim, nas legislativas anteriores tinham representado 19,66% do total, muito abaixo dos 36,68% destas eleições.
De acordo com a Comissão Nacional de Eleições (CNE), a quase totalidade desses votos nulos correspondem a votos chegado por via postal: a não inclusão do documento de identificação e a introdução desse documento no envelope errado são os principais motivos para a anulação - o que significa que muitas pessoas não sabem como votar corretamente ou não entenderam as instruções.
O que fazer para que esta situação não se repita?
"Se se quer manter este sistema, o problema só se resolve através de um maior esclarecimento", considera o jurista Vitalino Canas, especialista em direito constitucional. No entanto, na sua opinião, a solução ideal seria prescindir da cópia do cartão de cidadão e assumir "o risco democrático" de não ter a certeza que o voto é realmente daquele eleitor (mas haverá alguma maneira de garantir que assim é se o voto chegar por correspondência?, pergunta).
Ou, quem sabe, pode-se optar pelo voto eletrónico, como já fazem outros países, diz o embaixador Francisco Seixas da Costa. É claro que isto exgiria uma alteração de todo o sistema eleitoral do país, mas, além de seguro, teria a vantagem de colocar em pé de igual todos os eleitores, quer se encontrem em Portugal ou noutro país.
Seja como for, ficou claro, com estas eleições, que alguma coisa tem de ser feita. "A participação eleitoral dos portugueses no estrangeiro continua a subir a cada eleição, tendo atingido um valor recorde de 333,520 votos, um aumento de 91,9% relativamente às eleições de 2022. Contudo, a anulação de 36,68% dos votos ensombra estas eleições, é um descrédito democrático nos 50 anos do 25 de Abril - e indigna as comunidades portuguesas", considerou associação de emigrantes TSP – Também Somos Portugueses, num comunicado de reação aos resultados eleitorais.
Em abril do ano passado, o Governo criou um grupo de trabalho para a modernização eleitoral no estrangeiro, com o objetivo aperfeiçoar o voto. No entanto, quase um ano depois, ainda não foram apresentadas conclusões ou soluções.
Presencial ou por correspondência: como votam os emigrantes?
Os residentes no estrangeiro podem participar nas eleições legislativas, presidenciais e europeias (mas não nas autárquicas). Podem sempre votar presencialmente, nas mesas de voto instaladas nas embaixadas e consulados e, nas eleições legislativas, podem também votar por correspondência.
A distinção é fácil de explicar: "O voto por correspondência é sempre inseguro. Por muitos mecanismos de segurança que se apliquem é impossível garantir que o voto é mesmo daquela pessoa", afirma à CNN Portugal o embaixador Seixas da Costas. Por isso, nas eleições presidenciais, "onde cada pessoa corresponde a um voto e os votos são todos os iguais, esteja-se em Portugal ou no estrangeiro, considerou-se que seria demasiado arriscado, e apenas se permite o voto presidencial. Já nas eleições legislativas, onde os círculos da emigração podem eleger apenas quatro deputados, independentemente do universo eleitoral, facilitou-se um bocadinho. Considerou-se que, mesmo que houvesse falhas, a repercurssão nunca irá além daqueles quatro deputados e, portanto, seria um risco controlado".
"O voto presencial levanta um problema grave nas comunidades porque é preciso montar locais de escrutinio", explica o embaixador. Para o último ato eleitoral estavam registados 1.541.295 eleitores, residentes em 189 países (e dentro destes, espalhados por várias cidades). É impossível abrir mesas de voto em todos os locais. "Cada vez há menos consulados, com a desmaterialização dos atos consulares, que são uma espécie de loja do cidadão no exterior, os cidadãos já conseguem resolver muitos dos seus problemas digitalmente. Além disso, a cidadania europeia também permite que os cidadãos no estrangeiro sejam apoiados por outras instituições", explica Seixas da Costa.
No caso do voto presencial, e tal como acontece nas mesas de voto em Portugal, era necessário apresentar um documento de identificação. Para verem onde votavam, os emigrantes deveriam consultar antecipadamente os sites da Comissão Nacional de Eleições (CNE), da SGMAI e do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
No entanto, se não comunicassem à comissão recenseadora no estrangeiro qual a opção pretendida, considerava-se que votavam por via postal. Neste caso, terão recebido em casa um envelope do Ministério dos Negócios Estrangeiros, contendo um boletim de voto e dois envelopes: um verde para colocar o boletim preenchido e um branco que servirá para colocar o verde (que deverá ser fechado) assim como uma cópia do cartão de cidadão.
"Existe, de facto, alguma complexidade no procedimento", admite Seixas da Costa. "Ou talvez ele esteja mal formulado. As instruções podem criar alguma confusão a pessoas menos práticas, com uma certa idade ou mais desatentas", diz. A confusão persiste apesar de o sistema estar em vigor há já vários anos e de as instruções serem enviadas em português e na língua do país de residência.
Imbróglios com o cartão do cidadão: como são verificados os votos que chegam por via postal?
Os envelopes brancos que são expedidos pelos eleitores já têm a morada do destinatário e, na face oposta, têm também um código de barras de identificação do remetente - não é necessário escrever nada nem colocar selo, uma vez que a franquia está paga.
Na operação de contagem dos votos, a primeira coisa a fazer é validar o código de barras. Depois de aberto o envelope, como explica à CNN Portugal Fernando Anastácio, porta-voz da CNE, é preciso verificar se está lá dentro uma cópia do cartão de cidadão e se o número do cartão corresponde ao número do envelope.
Se algo falhar neste processo, o voto é considerado nulo e o envelope verde nem sequer é aberto. Isto pode acontecer se, por exemplo, não vier a cópia do CC ou se os envelopes tiverem sido trocados e o número do CC não corresponder ao número no código de barras.
Se estiver tudo bem, o envelope verde é colocado numa urna para depois os votos serem contabilizados.
Este processo tem sido várias vezes contestado. Em 2022 o Tribunal Constitucional decidiu, de forma inédita, anular os votos nas 139 assembleias de voto do círculo eleitoral da Europa e mandar repetir o ato eleitoral, porque, após uma queixa, se verificou que muitos votos tinham sido validados ainda que não viessem acompanhados pela fotocópia do cartão de cidadão.
"O sistema como está é inútil", considera o constitucionalista Vitalino Canas. "O que se pretende assegurar com a cópia do Cartão de Cidadão é garantir que quem vota é a pessoa que diz que é, ora a junção do CC não garante nada disso. Quem nos diz que não foi outra pessoa a colocar lá o voto? Não há forma de saber isso", sublinha. "A exigência da cópia do CC poderia ser eliminada e isso já resolvia quase todos os problemas."
"Quando se trata de voto por correspondência é quase impossivel garantir a integridade do voto. É o risco democrático que existe. Não há nenhum mecanismo que previna isso", considera o jurista. "Ou queremos que a maior parte dos cidadãos recenseados votem, ou queremos ser rigorosos e obrigamos toda a gente a ir a um sítio, como acontecia antes" - o que, como se viu, também não é uma opção viável.
Votos nulos têm vindo a aumentar: duas explicações
Ter dois envelopes foi a solução encontrada inicialmente, porque permite o anonimato do voto, uma vez que o envelope interno, com o boletim de voto, não tem a identificação do eleitor.
No entanto, em 1995 foi decretada a obrigatoriedade da inclusão da cópia de um documento identificação, que, na altura era o cartão eleitor. Nesse ano, apesar de uma diminuição no número de votantes - de 61 mil para 46 mil - o número de votos nulos aumentou. Até aí, os nulos representavam menos de 1% dos votos, nesse ano passaram para 14,23%. Ou seja, a introdução de uma maior complexidade na identificação levou a um crescimento dos votos considerados nulos.
A não inclusão do documento de identificação assim como a introdução desse documento no envelope verde, juntamente com o boletim (o que compromete o anonimato), leva automaticamente à anulação dos votos.
Outro elemento a ter em conta é o aumento do número de votantes. Em 2015, havia pouco mais de 292 mil eleitores inscritos que votavam fora de Portugal e o nível de participação era geralmente, muito baixo e com tendência para diminuir: nesse ano votaram apenas 28.354 pessoas nos círculos da emigração e os votos nulos foram pouco mais de 10%.
Na eleição legislativa seguinte, já estava em vigor o recenseamento automático introduzido em 2018, com o cartão de cidadão. O número de eleitores inscritos aumentou brutalmente - de 300 mil para 1,46 milhões. O número de votantes também aumentou: apesar de abstenção se manter elevada, em 2019 foram mais de 158 mil os que participaram nas eleições. O que levou também a um aumento dos votos nulos que, nessas eleições, representaram 22,33% dos votos.
Nestas últimas eleições, com 1,54 milhões de inscritos, o número de participantes atingiu o recorde de 333.520. No entanto, desses 122.327 foram considerados nulos, o que representa 36,68% dos votos.
Votar no estrangeiro é sempre um problema. O voto eletrónico pode ser uma solução?
Os problemas nas votações dos emigrantes não são novos. É possível votar presencialmente em apenas 150 localidades, apesar de haver portugueses espalhados por 189 países do mundo. Há quem tenha de percorrer muitas horas horas de automóvell ou até fazer viagens de avião para poder votar, com todas as despesas que isso implica, além de outros incómodos para a vida das pessoas.
O voto postal veio resolver em parte esses problemas, mas, de cada vez, ouvem-se queixas de emigrantes que não receberam o boletim de voto em casa por a morada não estar atualizada nos cadernos eleitorais ou por falhas no funcionamento dos correios. Este ano, mais uma vez, não foi exceção e, nas redes sociais e na comunicação social, multiplicaram-se os testemunhos de emigrantes que se queixam se ser eleitores de segunda.
No caso dos votos nulos, que têm vindo a aumentar, a questão mais debatida tem sido a clareza das instruções no que toca à necessidade ou não incluir a cópia do cartão de cidadão e se esta deve ser colocada no envelope verde ou no envelope branco. Em todas as eleições esta confusão está presente.
"Em 2022, no rescaldo da repetição das eleições no círculo da Europa, ouvimos responsáveis políticos dizer que a prioridade na Assembleia da República seria a alteração das leis eleitorais", lamentou a Associação TSP – Também Somos Portugueses. "Nada aconteceu. Ainda não temos uma alternativa à cópia do cartão de cidadão, não se fez uma campanha alargada de correção das moradas, e não se iniciaram os testes do voto digital (voto eletrónico remoto), solução preconizada pela maioria dos portugueses no estrangeiro".
Seixas da Costa concorda que voto eletrónico poderia reolver os problemas atualmente existente, com vantagens para todos: "O voto eletronico é extremamente seguro, nos países onde é usado não tem havido". E teria a vatagem de "permitir que todos votassem da mesma maneira em Portugal e nos outros países".
E ainda há outro problema: "quatro deputados não chegam"
A existência de um grande número de votos nulos não é o único problema quando falamos dos círculos eleitorais da emigração: "O que estas eleições mostraram é que há uma décalage muito importante entre o volume dos eleitores que votam e os mandatos que estão ao dispor destes círuclos, e esta é uma desigualdade cada vez maior", afirma Vitalino Canas. "O sistema político vai ter que perceber que os eleitores no estrangeiro estão a ter mais presença efetiva no sistema político. Quando se chegar a ter meio milhão de votos para quatro mandatos isto vai representar uma desigualdade que pode ser quase inconstitucional", diz.
Essa é também uma preocupação da associação de emigrantes TSP – Também somos portugueses: "Nesta eleição, cada 27 mil eleitores em Portugal elegeu um deputado, mas no estrangeiro foram necessários 83 mil eleitores para eleger cada um dos quatro deputados que representam a emigração", dizem, coniderando que "esta disparidade é demasiado visível, demasiado injusta, e tem de ser corrigida". "Quatro deputados não chegam para representar condignamente estes portugueses, que cada vez mais manifestam o seu empenho em participar na construção do futuro do país, onde quer que vivam", conclui a associação.