"Falamos de Pedrógão Grande, mas estamos a falar do mundo inteiro": "Sopro do Diabo", o filme produzido por Leonardo DiCaprio sobre o incêndio de 2017

12 nov 2022, 15:38
Filme "O Sopro do Diabo" (Direitos reservados/ Lynsey Addario)

Vítor ficou gravemente ferido, Nádia perdeu a família, Sérgio combateu o fogo, Sofia quer reflorestar a região: estes são os quatro portugueses que protagonizam o documentário sobre o incêndio de Pedrógão Grande. Está este fim de semana nos cinemas

Vítor foi apanhado pelo incêndio quando estava a trabalhar no campo, na zona de Pedrógão Grande, no dia 17 de junho 2017. Tentou fugir no carro, mas os pneus derreteram. Sentiu a pele a queimar no rosto, e nem sequer foi o fogo, foi só o calor. Sentiu as mãos a arder quando o temóvel entrou em combustão, também devido ao calor extremo. Vítor achou que ia morrer. Foi Sérgio que o arrastou para o carro dos bombeiros e que o levou, por entre as chamas, a toda a velocidade. Ele lembra-se de pouco. Esteve quatro meses em coma e, cinco anos depois, ainda está a reaprender a viver. Guarda no corpo as cicatrizes terríveis daquele dia em que morreram 66 pessoas no mais trágico incêndio ocorrido em Portugal.

A sua história, e a de outros soreviventes, é contada agora em "From Devil's Breath - O Sopro do Diabo", curta-metragem documental, realizada pelo britânico Orlando Von Einsiedel, vencedor de um Óscar em 2017 com outra curta documental, "Os Capacetes Brancos", sobre voluntários de equipas de socorro, na guerra da Síria. O filme, produzido pelo ator e ativista climático Leonardo DiCaprio, tem sido apresentado em festivais de cinema e está este fim de semana em exibição nas salas, um pouco por todo o país.

No domingo, "O Sopro do Diabo" é exibido no canal norte-americano MSNBC, no âmbito da série documental "Tipping Point", do apresentador Trevor Noah e da produtora Time Studios. Depois, fica disponível na plataforma de streaming Peacock. 

O jornalistas português Tiago Carrasco que, tal como a jornalista Catarina Fernandes Martins, participou na produção, recorda-se que tudo começou em dezembro de 2018. Habituado a trabalhar como "fixer", ou produtor local, para jornalistas estrangeiros que vêm a Portugal, Tiago foi contactado pela produção que lhe pediu para ir para o terreno e "fazer um levantamento" com o objetivo de encontrar "as melhores histórias". Tiago, que conhecia bem a zona, por causa das muitas férias que ali passou, e que tinha acompanhado os incêndios de Pedrógão em reportagem para a revista "Sábado", conta à CNN Portugal que fez um levantamento exaustivo, durante quatro meses, falando com "toda a gente - vítimas, bombeiros, políticos, madeireiros, empresários...". "Entrevistei mais de 120 pessoas", conta. "Apercebi-me que o grau de exigência dos produtores era muito grande. Eles queriam sempre mais histórias, mais pormenores, não ficavam satisfeitos com qualquer coisa", recorda Tiago Carrasco. 

Na primeira visita a Portugal, para fazer a preparação do filme, a equipa de produção entrevistou dez pessoas. Foi desse grupo que foram selecionados os quatro protagonistas portugueses do filme: Vitor Neves, um dos feridos graves do incêndio; Sofia Carmo, dinamizadora de projetos de reflorestação na área afetada; Sérgio Lourenço, o bombeiro que, entre todo o trabalho, salvou 13 pessoas do fogo; e Nádia Piazza, que perdeu o marido e um filho no incêndio e foi presidente da Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande. A eles junta-se Thomas Crowther, cientista e ecologista britânico, responsável pelo projeto de reflorestação do planeta "A Trillion Trees".

Bombeiros no incêndio em Pedrógão

"Thom, que é cientista, estava naquela altura a estudar os incêndios na Austrália e achava que o documentário devia ser feito na Austrália ou na Califórnia (EUA), mas, quando foi a Pedrógão e percebeu o que tinha acontecido ali, mudou de ideias. Não só porque foi uma grande tragédia mas também porque houve aquele fenómeno meteorológico e era evidente a ligação às alterações climáticas", explica Tiago Carrasco. O incêndio de Pedrógão é impressionante "por ter sido tão devastador, tão concentrado e uma tragédia com uma enorme perda de vidas".

Mais do retratar a tragédia, "O Sopro do Diabo" tem um olhar de esperança em relação ao futuro e apresenta a reflorestação, com espécies diversificadas e autóctones, como a forma mais importante de prevenir futuros incêndios e de manter a biodiversidade do planeta. "Olhamos à nossa volta e vemos árvores e achamos que está tudo bem, mas não está. A monocultura, sobretudo de espécies como o eucalipto, vai emboprecendo a terra. O eucalipto absorve a água dos solos. Nos eucaliptais, os terrenos ficam arenosos, não há matéria orgânica, não há aves nem outros animais, não há vida. Não se pode reflorestar de qualquer maneira, tem de ser bem feito", explicou na estreia do filme, esta sexta-feira, em Lisboa, Sofia Carmo, que atualmente trabalha no gabinete ambiental da Câmara Municipal de Pedrógão e que, nos últimos anos, tem trabalhado para promover a plantação de espécies autócotones, como o carvalho, o souto ou o castanheiro.

Sofia Carmo numa ação de reflorestação

Infelizmente, nem todas as pessoas entendem esta preocupação: "Temos empresários que têm no eucalipto a sua maior, às vezes única, fonte de rendimento. Com eucalipto o lucro é muito mais rápido. Tentamos explicar que, além de sustentável, a floresta autóctone também pode ser uma fonte de rendimento, talvez não seja tão rápido mas é possível. Mas é difícil arranjar financiamento para algo que não tem impacto imediato, que não é logo visível", desabafou esta ativista climática. "Fazer floresta é um investimento a longo prazo. Por isso, é algo que temos de fazer já, não podemos atrasar mais", disse Sofia Carmo, lamentando no entanto que, apesar de pequenas mudanças, a verdade é que "parece que não aprendemos nada com a tragédia: "A seguir ao incêndio a plantação de árvores não-autóctones duplicou ou triplicou", acusa.

"Falamos de Pedrógão Grande, mas estamos a falar do mundo inteiro", concluiu Catarina Fernandes Martins nessa mesma sessão, explicando que a mudança tem de passar por todos nós, mas tem sobretudo de passar pelos decisores políticos e económicos. "A mudança é ambiental, mas também é política, económica, social", concordou o deputado Miguel Costa Matos, um dos responsáveis pela Lei de Bases do Clima.

"Se este filme contribuir para mudar alguma coisa, para fazer as pessoas pensar e agir, já terá sido positivo", diz Sofia Carmo. 

As gravações para o documentário decorreram no início de 2020. Tiago Carrasco e Catarina Fernandes Martins acompanharam todas as filmagens e ainda ajudaram a encontrar as imagens de arquivo, necessárias para mostrar a dimensão do incêndio e da tragédia humana. "A equipa de produção foi impecável, foi sempre pedindo a nossa opinião, mesmo durante o processo de montagem. Para eles era muito importante que o filme respeitasse a integridade dos entrevistados", conta. A colaboração dos dois jornalistas foi de tal forma relevante que, na ficha técnica, são apresentados como co-produtores. 


 

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