Familiares das vítimas de Pedrógão sentem que "a sua dignidade humana foi violada" com a absolvição de todos os arguidos

15 set 2022, 20:49
Incêndio em Pedrógão Grande

Depois dos incêndios, do trauma e das perdas - humanas e materiais -, em Pedrógão Grande o processo de luto ficou em suspenso ao longo de cinco anos, com um processo criminal que terminou com a absolvição de todos os arguidos. Como lidar com o sentimento de injustiça?

Cinco anos depois, as vítimas do incêndio de Pedrógão Grande receberam a notícia de que os 11 arguidos foram absolvidos de qualquer responsabilidade criminal pelo ocorrido. No julgamento estavam em causa crimes de homicídio e ofensa à integridade física. No processo, o Ministério Público contabilizou 63 mortos e 44 feridos quiseram procedimento criminal. Mas a sentença foi clara: apesar de admitirem falhas na prevenção e no combate ao incêndio, os juízes consideraram que não é possível atribuir responsabilidades individuais - a culpa foi, acima de tudo, das condições meteorológicas extremas. Ou seja, não há culpados.

A psicóloga Joana Oliveira não tem dúvidas: "A aplicação de uma pena, e consequente responsabilização dos arguidos, seria uma forma de ajudar as vítimas e os seus familiares a superarem o trauma que vivenciaram".

"Uma vez que não foi possível impedir a ocorrência dos incêndios, a sociedade teria uma dívida para com as vítimas, a qual seria simbolicamente saldada com a responsabilização dos arguidos pelo sucedido. A imposição penal seria importante, não por uma questão de vingança, mas sim porque representaria a 'solidariedade do grupo social com a vítima'", explica Joana Oliveira à CNN Portugal. "Tendo sido o processo concluído sem imputação de responsabilidade aos arguidos, as vítimas sentem-se completamente esquecidas. Sentem que não há qualquer preocupação em lhes garantir um 'mínimo existencial', ou seja, os meios indispensáveis para uma vida digna. Ora, na ausência de um amparo estatal e/ou social no que concerne ao acompanhamento das vítimas, elas sentem-se desprotegidas, desamparadas, inseguras e 'largadas à própria sorte' e, dessa forma, sentem que a sua dignidade humana é violada, dificultando ainda mais a superação ou minimização da sua dor".

O luto - um processo demorado e exigente

"Perante uma situação de perda inicia-se um processo de luto que tem como objetivo adaptarmo-nos a uma nova realidade resultante dessa perda. Não existem dois processos de luto semelhantes, mesmo em condições de perda idênticas", começa por explicar à CNN Portugal a psicóloga Filipa Jardim da Silva, fundadora da Academia Transformar. No caso de Pedrógão Grande, "cada pessoa estará num processo de luto único". "Luto de uma pessoa querida que perdeu a vida, luto de um bem material como uma casa que se destruiu, luto de uma vida que se alterou drasticamente mudando sonhos e dinâmicas diárias, luto perante a impotência sentida." 

Sendo o luto um processo pessoal, implica várias etapas (da negação ao choque, tristeza e aceitação), diversas emoções intensas como o desespero, a raiva, angústia, a culpa), diferentes respostas do corpo (agitação ou falta de energia, exaustão ou apatia, ausência ou excesso de apetite, alterações no sono), pensamentos ambivalentes e contraditórios (não conseguir parar de pensar no acontecimento, ter medo ou ansiedade em relação ao futuro) e até possivelmente, sublinham as especialistas, um impacto negativo no comportamento (não conseguir tomar decisões, isolamento, consumo de substâncias como compensação, automedicação, fuga para dias de muito trabalho ou apatia e incapacidade de trabalhar).

Tudo aconteceu ao mesmo tempo que se desenrolava o processo criminal. "A experiência traumática que a vítima vivencia acaba por ser, apenas, a primeira fase deste processo e, infelizmente, não a pior delas, uma vez que a vítima continua a ser vitimizada, especialmente ao recorrer a instâncias formais de controle social, levando consequentemente a uma vitimização secundária. Ao longo da fase de investigação, assim como durante o processo criminal, a pessoa passa por um conjunto de novas experiências que sente como sendo agressões psicológicas", descreve a psicóloga Joana Oliveira.

"Uma vez que cada pessoa reage ao luto de forma diferente, as características pessoais e circunstâncias podem também facilitar ou prolongar o processo de luto. Nestes casos de Pedrógão Grande, com tamanha projeção e cobertura jornalística, a repetição incessante de imagens e reconstituição de tudo o que aconteceu, a grandiosidade da tragédia, as sequelas individuais e comunitárias que prevalecem até hoje tendem a tornar estes processos individuais particularmente duros, daí o suporte emocional e psicológico continuar a ser tão importante", recorda Filipa Jardim da Silva.

Conciliar um processo de luto com uma batalha judicial pode ser complicado, como explica esta psicóloga: "Depois de batalhas legais, que se prolongam habitualmente ao longo de anos nos tribunais portugueses, e que tendem a deixar em suspenso processos de luto, quem se confronta com uma perda apercebe-se do caminho restante de adaptação à nova realidade que é necessário fazer. É muitas vezes nessa etapa, depois de anos bloqueados no modo zanga e busca de justiça e de respostas que nunca se revelam suficientes, que quem está num processo de luto reconhece dificuldades acrescidas em avançar, em evoluir neste processo tão pessoal de construir uma nova realidade, aceitando o que aconteceu, por entre toda a ambivalência inerente a essa aceitação". 

A necessidade de fazer justiça

No desenvolvimento dos processos de luto, muitas pessoas procuram por um sentimento de justiça em jeito de reparação ou diminuição do sentimento de injustiça. "Identificar uma pessoa responsável pela perda tende a desfocar-nos da dor do vazio e a focar-nos, em substituição, na raiva dirigida a quem agiu mal. Há uma sensação de racionalidade e controlo. A pessoa A comportou-se mal e em função disso houve uma consequência B e agora há o castigo C. Esta causa-efeito-consequência gera uma certa sensação de previsibilidade e poder, o que num cenário de perda, em que a impotência e a imprevisibilidade predominam, tende a ser reparador, momentaneamente", explica Filipa Jardim da Silva.

"Conseguir que essa pessoa seja responsabilizada pela perda e tenha uma consequência negativa como uma pena de prisão ou coima fomenta novamente o sentimento de que se vingou um pouco a perda e se fez a tal justiça necessária."

Em situações como a de Pedrógão Grande e de outras tragédias que "implicam eventos atípicos e algo incontroláveis inerentes a tragédias naturais (incêndios, cheias, derrocadas, tremores de terra) há o desafio de se lidar com um responsável abstrato, com a ausência de um rosto", sublinha Filipa Jardim da Silva. "Mesmo que sistemas humanos ou comportamentos humanos tenham falhado ou fomentado a tragédia natural, percebemos muitas vezes que não há uma pessoa que possa ser considerada a culpada absoluta. Isso naturalmente impacta no processo de luto, na racionalização da perda e na aceitação da nova realidade. Ter um rosto responsabilizado apoia na mobilização da raiva em detrimento da tristeza e no aumento da perceção de justiça. "

Ou, como diz Joana Oliveira: "Sendo o desfecho do processo a absolvição de todos os arguidos, as vítimas sentem-se ‘negligenciadas’, pois não há responsáveis pelo sucedido, e podem ter muita dificuldade para se recuperarem, podendo mesmo acarretar-lhes sentimentos de rejeição e isolamento. Pois, além de todo o impacto emocional resultante de um novo trauma, que pode acarretar sintomas de ansiedade e/ou depressão, as vítimas podem sentir falta de esperança, falta de confiança, raiva e revolta para com o sistema de justiça e para com a sociedade em geral".

Como lidar com a falta de um culpado

"Por entre todos os processos judiciais e legais que não se equiparem sentenças, sejam elas quais forem, à reparação do que aconteceu. Com ou sem responsáveis concretos identificados, é importante salvaguardar a grandiosidade destas perdas, de tantas vidas e sonhos que se desfizeram, é fundamental respeitar a memória de quem partiu e do que se perdeu, dando legitimidade, espaço e suporte a quem fica nesta nova realidade", sublinha a psicóloga Filipa Jardim da Silva.

"Com ou sem responsáveis concretos identificados, o que aconteceu é e sempre será uma tragédia sem reparação possível. Pode existir a crença de que existir um culpado concreto diminuirá a dor ou atenuará a injustiça, pode existir a ilusão de que existir um culpado evitará que o mesmo aconteça novamente, mas sabemos que essa atenuação tende a ser momentânea e passageira e que esta percepção de controlo futuro é ilusória. E é aí que o confronto real se dá: a perda mantém-se, independentemente da sentença judicial e na verdade, controlamos menos do que aquilo que gostamos de acreditar que controlamos", diz esta psicóloga. "E por entre a nossa impotência controlamos algo muito importante: a maneira como legendamos o que acontece nas nossas vidas e a maneira como escolhemos posicionar-nos perante acontecimentos de vida. É esse agora o maior poder de todos os sobreviventes desta grande tragédia e é por isso que continuarão a necessitar de apoio especializado e de um grande suporte comunitário e estatal."

"Seria extremamente importante todos nós (sociedade, dirigentes, responsáveis máximos, estado, autarquias) assumirmos parte do que pode ser a nossa responsabilidade perante as consequências para, assim, sermos empáticos perante a dor do outro. Assumir, humildemente, que não pensamos em tudo, que não fizemos tudo, que não executamos tudo e que a consequência foi aquela", diz Joana Oliveira.

"Ao não haver um sentimento de justiça (e de reconhecimento para com as suas dores), as vítimas podem reviver os acontecimentos traumáticos das mais diversas formas, muitas vezes entrando em estados de sofrimento psicológico intenso, demonstrando sinais de raiva, revolta, angústia, irritação e comportamentos físicos e/ou verbais agressivos." O apoio psicológico é crucial para ajudar as vítimas e os seus familiares a fazerem o 'luto' (seja da perda de familiares que morreram nos incêndios, seja da perda dos seus bens, seja da injustiça que sentiram ante a decisão judicial, etc), dizem as especialistas. Isto porque "é necessário haver uma conclusão para o ocorrido e, consequentemente, uma readaptação à vida através do alívio da dor mental e emocional e da restauração do funcionamento normal por parte da pessoa que está no processo de luto", afirma Joana Oliveira.

"Aceitar não é passar a gostar do que aconteceu ou achar que 'está tudo bem'. É, simplesmente, estar inteiro perante a perda. Ter perdido mas não se sentir vazio. Sentir que falta algo mas que é possível continuar a viver. Passar pela dor da perda não é fácil, mas é a única forma de a ultrapassar, de reconstruir e de viver novamente com equilíbrio emocional e com paz interior."

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