opinião
Correspondente nos Estados Unidos da América

A tirania da minoria nos Estados Unidos

28 jun 2022, 16:00

“O pesadelo de Hamilton tornou-se a realidade da América do Séc. XXI. Vivemos sob a tirania da minoria, com os estados mais pequenos a impor a sua vontade aos maiores.”

A quinta e sexta-feiras da semana passada chocaram milhões de pessoas nos Estados Unidos, quando os juízes ultraconservadores do Supremo Tribunal, decidiram facilitar o uso e porte de armas de fogo no país com mais armas de fogo per capita no Mundo (o segundo, com menos de metade, é o Iémen, que vive uma guerra civil).

E, logo a seguir, pela primeira vez na história dos Estados Unidos o Supremo retirou aos cidadãos um direito previamente reconhecido: o direito à interrupção voluntária da gravidez.

Os acórdãos são ignóbeis, não tanto pelas conclusões a que chegaram, mas muito mais pelo caminho para lá chegarem. Os juízes não consideraram o impacto das armas de fogo na vida dos cidadãos, não valorizaram a necessidade de o governo regulamentar o seu uso e porte, para manter a segurança pública – limitaram-se a aplicar critérios do Séc. XVIII para justificar preferências políticas.

Em relação ao aborto, os juízes tentaram esconder as suas preferências políticas, negando a existência e um direito reconhecido há 50 anos, afirmando que um direito que não consta num texto do Séc. XVIII não existe no Séc. XXI.

Como foi possível chegar aqui, e ter um grupo de juízes com opiniões de há dois séculos e meio, confirmados nos seus lugares por senadores representando uma minoria da população americana, foi alvo de análise particularmente oportuna pelo colunista do The Washington Post, Max Boost. Tão oportuna, que não resisto a partilhá-la, com ligeiras adaptações.

“Todos sabem que os Fundadores dos Estados Unidos tinham medo da tirania da maioria. Por isso construíram tantos contrapesos na Constituição (checks and balances). O que é menos sabido é que eles também tinham medo da tirania da minoria. E por isso descartaram os Artigos da Confederação, que exigiam o acordo de nove dos 13 estados para aprovar qualquer lei, e promulgaram uma Constituição com autoridade executiva mais forte.

No Ensaio Federalista nº 22, Alexander Hamilton advertiu que dar a pequenos estados como Rhode Island ou Delaware “peso igual na escala de poder” ao de grandes estados como “Massachusetts, Connecticut ou Nova Iorque” violava os preceitos da “justiça” e do “senso comum." “Os Estados maiores, depois de algum tempo, entrariam em revolta contra a ideia de os mais pequenos lhes imporem a lei”, previu, argumentando que tal sistema contraria “a base fundamental do governo republicano, que exige que prevaleça a vontade da maioria”.

O pesadelo de Hamilton tornou-se a realidade da América do Séc. XXI. Vivemos sob a tirania da minoria, com estados mais pequenos a impor a sua vontade aos maiores através de influência desproporcionada no Senado e no Colégio Eleitoral – e, portanto, no Supremo Tribunal. Para dar um exemplo: 21 estados com uma  população total combinada inferior à da Califórnia, têm 42 assentos no Senado; a Califórnia tem dois. Este sistema antidemocrático e injusto produziu as novas decisões do Supremo sobre controle de armas e o aborto.

Estas são questões em que a opinião pública tende a favor do que, à falta de melhor palavra, poderíamos chamar o lado “liberal”. Após o massacre em Uvalde, Texas, uma sondagem mostrou que 65% dos americanos querem uma regulamentação mais rígida das armas de fogo; apenas 28 por cento se opõem. A opinião pública é igualmente clara sobre o aborto: 54% dos americanos querem preservar Roe v. Wade (acórdão do Supremo que, em 1973, reconheceu o direito ao aborto), e apenas 28% querem revogá-lo. Cinquenta e oito por cento querem que o aborto seja legal na maioria ou em todos os casos.

No entanto, a maioria de extrema-direita do Supremo Tribunal acabou de anular uma lei de Nova Iorque que dificultava a obtenção de uma licença de uso e porte de arma, enquanto defendia uma lei do Mississippi que proibia todos os abortos após 15 semanas. Isto representa uma expansão dramática do direito ao porte de arma e uma redução igualmente dramática do direito ao aborto.

O Supremo não tem obrigação de seguir a vontade popular. Tem a função de salvaguardar a Constituição. Mas é difícil para qualquer observador imparcial ter confiança no que os juízes de direita estão a fazer.

Eles não estão a agir de forma muito conservadora ao revogar um acórdão sobre o aborto que tem 49 anos e uma lei de regulamentação de armas do estado de Nova Iorque, aprovada há 109 anos. Em ambos os casos, os magistrados recorrem a leituras duvidosas da história do direito, postas em causa por muitos académicos, para derrubar o que havia sido estabelecido como lei.

Os conservadores podem argumentar plausivelmente que os juízes liberais inventaram um direito constitucional ao aborto, mas que diferença existe entre isso e que os juízes conservadores fizeram ao inventar um direito individual de porte de armas que também não existe na Constituição? O Supremo Tribunal só reconheceu o direito individual de porte de armas em 2008 –  217 anos após a Segunda Emenda (à Constituição dos EUA) ter sido promulgada expressamente para proteger milícias estaduais “bem regulamentadas”. A Segunda Emenda não mudou ao longo dos séculos, mas a composição do tribunal sim.

A maioria, convenientemente, favorece a autoridade dos estados para legislar sobre o aborto, mas não para legislar sobre as armas. É óbvio que os juizes conservadores (que são presumivelmente anti-aborto e pró-armas) estão simplesmente a impor as suas preferências pessoais, assim como os juízes liberais (que são presumivelmente pró-liberdade de escola no aborto e pró-armas) fazem.

Mas se o Supremo Tribunal vai ser um fórum legislativo, não deveria respeitar as opiniões de dois terços do país? Pelo contrário, o nosso sistema político perverso permitiu que uma minoria militante de direita sequestrasse a lei. Como nota um correspondente do The Economist, “cinco dos seis juízes conservadores do Supremo Tribunal foram aprovados por uma maioria republicana no Senado que obteve menos votos do que os democratas” (então a minoria naquela câmara) e “três dos seis foram nomeados por um presidente eleito sem a maioria do voto popular”.

Na verdade, a situação é ainda mais desigual: Roe vs. Wade não teria sido revogado se o então líder do Senado, o republicano Mitch McConnell, não tivesse violado todos os precedentes ao recusar colocar à consideração dos senadores o juiz Merrick Garland, indigitado para ao Supremo pelo presidente Barack Obama, em 2016. McConnell descaradamente manteve a vaga aberta para o presidente Donald Trump a preencher, depois das eleições. O juiz indicado por Trump, Neil Gorsuch, faz parte da maioria de cinco juízes que derrubou Roe. (O juiz-presidente, John  Roberts, juntou-se aos outros cinco juízes para defender a lei de aborto do Mississippi, mas não para anular Roe.)

A confiança pública no Supremo Tribunal caiu, em Junho, para o mínimo histórico de 25%, e há boas razões que o justificam. Vivemos o que os Fundadores temiam: uma crise de legitimidade governamental provocada pela tirania da minoria. E em breve pode ficar muito pior. Na sua declaração de voto, no caso do aborto, o juiz Clarence Thomas pediu ao Supremo que derrubasse os precedentes legais que defendem o direito à contracepção, relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e igualdade no casamento. E tanta esperança tinha Hamilton de que “a vontade da maioria devia prevalecer”.

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