Creches gratuitas? Quotas, inscrições ou material de desgaste: há privados (e IPSS) a cobrar aos pais das crianças

2 nov 2023, 07:00
Creche (Matt Roth/The Washington Post via Getty Images)

Governo dá 460 euros por criança às creches privadas que aderiram ao programa Creche Feliz, mas nas zonas mais caras do país não parece ser suficiente: encarregados de educação garantem que recebem pedidos de pagamentos e aceitam - porque continua a ser mais barato do que pagar toda a mensalidade - mas queixam-se da falta de honestidade e de não ter, realmente, uma creche gratuita. IPSS ressentem-se sobretudo em Lisboa e Setúbal. Os privados pedem novo modelo de financiamento que não estrangule as instituições e permita oferecer mais vagas

Carla, nome fictício, ainda estava grávida quando inscreveu o filho numa creche privada na Grande Lisboa. O bebé nasceu em abril de 2023, mas, no ano anterior, a mãe já tinha pagado uma taxa de inscrição de 230 euros e contava com uma mensalidade a rondar os 500 euros no berçário a partir de outubro. Foi surpreendida pela positiva quando a creche lhe comunicou que tinha aderido ao programa Creche Feliz, que determina que as crianças nascidas depois de setembro de 2021 não pagam mensalidade. "É uma creche fantástica e gosto muito de todas as pessoas que lá trabalham", garante.

O filho entrou na creche há poucas semanas e Carla foi confrontada com um aditamento ao contrato, que prevê o pagamento de uma joia inicial de 170 euros, que abrange uniforme, atividades comemorativas a desenvolver pela instituição e respetivo aluguer de espaços para festas; além disto, está também prevista uma quota de 110 euros, a liquidar mensalmente, justificada pela utilização dos encarregados de educação de uma aplicação onde conseguem acompanhar as atividades diárias dos seus educandos, bem como a prestação de serviços de psicologia. A CNN Portugal teve acesso a este documento, que indica ainda que o aditamento é justificado pela necessidade de ajustar o regulamento geral da instituição à resposta que esta pretende oferecer, face à atual realidade em que estas instituições privadas e que tinha como objetivo o lucro e passam a disponibilizar vagas gratuitas.

Isto não me parece muito correto", desabafa, ao telefone com a CNN Portugal. "Apesar de pagar menos do que pagaria pela mensalidade da creche privada, 110 euros não me faz muito sentido, ainda por cima dizerem-me que é para psicologia". Carla pediu explicações à direção e, depois de muito insistir, disseram-lhe que o pagamento iria suprir os custos relacionados com alimentação: o estabelecimento, por ter aderido ao programa Creche Feliz, tem a obrigatoriedade de fornecer gratuitamente as refeições às crianças, mas a mensalidade que era antes cobrada - de 495 euros - previa que os pais pagassem toda a comida à parte. "Mas estes 110 euros são um exagero, parece-me quase uma forma de fazerem dinheiro dos dois lados", diz Carla. "Sei que a Segurança Social paga 460 euros por criança, eu podia pagar a diferença para perfazer a mensalidade anterior, eram mais 35 euros", reflete.

Também se queixou de que não lhe tinham devolvido o valor da inscrição - que tinha de ser restituído às famílias que já o tivessem pago antes de saberem que iam ter creche gratuita, conforme determinado pelo Governo numa portaria de julho de 2022. "Disseram-me logo que não iam devolver e que, se eu tinha algum problema, havia muitas crianças à espera de vaga", lamenta.

Carla admite que, dados os custos elevados de funcionamento das instituições de ensino, estaria até disponível para pagar uma contribuição à creche, até porque só tem elogios para os funcionários que, todos os dias, lhe tomam conta do filho. "Eu pagaria e eles têm razão em quase tudo. Mas este valor, tão elevado, para uma creche que se diz gratuita? Não está correto", repete.

460 euros por criança "não cobrem custos"

Numa audição parlamentar, no passado mês de junho,  a secretária de Estado da Inclusão, Ana Sofia Antunes, estimava que quase 80% das creches privadas estavam "a caminho" de aderir ao programa Creche Feliz. A falta de vagas continua a ser um problema e a adesão dos privados contribuiria, de forma decisiva, para aumentar a oferta. 

Porém, apesar de algumas dificuldades já terem sido ultrapassadas - nomeadamente a espera entre a comunicação do número de crianças com creche gratuita e a respetiva transferência das verbas da Segurança Social para as instituições, que chegou a durar quase 60 dias - os montantes pagos por criança podem não estar a ser suficientes para garantir a continuidade dos estabelecimentos de ensino. 

Segundo a portaria 305/2022, que regula a gratuitidade nas creches privadas aderentes ao programa Creche Feliz, não podem ser cobradas alimentação, despesas inerentes ao processo de inscrição e seguros e a frequência de períodos de prolongamento de horário. Mas os encarregados de educação terão de pagar todas as atividades extra de carácter facultativo, fraldas, fardas e uniformes escolares, bem como outros serviços opcionais, como os serviços de transporte, por exemplo.

À CNN Portugal, chegaram vários relatos de pais, todos pedindo anonimato por receio de represálias, sobretudo na área da Grande Lisboa, que têm recebido faturas extra para pagar no fim do mês, mesmo estando os filhos a frequentar escolas integradas no programa Creche Feliz, com mensalidade gratuita. São normalmente despesas com quotas ou materiais, que são imputadas aos encarregados de educação, mas que, no limite, servem para compensar cortes nos orçamentos, mesmo que cada instituição receba do Estado os referidos 460 euros mensais por cada criança inscrita.

Há uma série de creches que ainda não aderiram [ao programa Creche Feliz]  por causa disso, este valor unitário dos 460 euros não cobre os custos", admite Susana Batista, da  Associação Nacional de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP). "Já dissemos à secretária de Estado, é inconcebível, tudo aumentou. É no novo ano letivo que as coisas se atualizam, já estamos em outubro e nada disseram", lamenta. "As creches poderão, efetivamente, estar em dificuldades", acrescenta ainda.

A presidente da ACPEEP diz não ter conhecimento de estabelecimentos privados que estejam a encontrar formas de equilibrar os custos cobrando novas rubricas, mas lembra que a lei "é transparente" quanto ao que pode ser cobrado ou não. Ainda assim, há espaço para dúvidas quanto aos materiais de desgaste: Susana Batista defende que as creches não vão abdicar de faturar tudo o que não esteja expressamente incluído no programa Creche Feliz e que o material de desgaste, como colas, plasticinas ou cartolinas, pode ser cobrado aos encarregados de educação, tal como se faz na escola pública.

Já fonte do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social remete para a portaria, que indica: "As atividades extra projeto pedagógico, de caráter facultativo, que as creches aderentes desenvolvam e nas quais os pais ou quem exerce as responsabilidades parentais inscrevam as crianças, bem como a aquisição de fraldas, fardas e uniformes escolares encontram-se excluídas da medida da gratuitidade, ficando as mesmas a cargo dos pais ou de quem exerce as responsabilidades parentais". Ou seja, os materiais de desgaste só poderão ser cobrados nas creches privadas se forem utilizados em atividades extra projeto pedagógico e será sempre um pagamento opcional para os pais. 

A CNN Portugal questionou também o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sobre eventuais atualizações no valor pago às instituições, por criança, no programa Creche Feliz: "No que ao valor pago por criança diz respeito, o Governo permanece em estreito diálogo com os representantes do Setor Social e Solidário e a Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular", lê-se numa declaração enviada pelo Ministério tutelado por Ana Mendes Godinho, que sublinha: "Com a entrada em vigor do programa Creche Feliz, o Governo passou a assegurar o valor da creche (incluindo alimentação, higiene, atividades pedagógicas, lúdicas e de motricidade, inscrição e seguros), onde apenas as atividades extra projeto pedagógico, de carácter facultativo [...] estão excluídas".

Na sexta-feira passada, ouvida nas comissões de Orçamento e Finanças e de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, a ministra Ana Mendes Godinho revelou que há atualmente 85 mil crianças a beneficiar do programa Creche Feliz, 15.500 das quais em creches privadas. A meta do Governo, para 2024, é ter 120 mil crianças com creches gratuitas. 

Alargar o regime das IPSS

Sónia, nome fictício, tem uma filha de ano e meio a frequentar uma creche privada nos arredores de Lisboa. Quando a bebé entrou para a escola, aos cinco meses e meio, em outubro do ano passado, recebeu por email a informação da Segurança Social a confirmar que tinha acesso à gratuitidade, mas já tinha pagado a inscrição e o seguro. Achou que, a partir dali, não tinha de pagar qualquer outro valor - e esperou que lhe devolvessem o montante que já tinha pagado - mas não foi isso que aconteceu. Acabou por pagar ainda 200 euros de mensalidade em outubro, mais 300 em novembro e o mesmo montante em dezembro. "Paguei fora de horas e porque me estavam a pressionar. Diziam-me que, enquanto a Segurança Social não lhes começasse a pagar, tinha de pagar eu", conta à CNN Portugal. 

A creche só lhe comunicou que começou a receber o respetivo valor do Estado em janeiro de 2023, pelo que só aí Sónia deixou de assegurar os pagamentos. Nunca recebeu o que tinha adiantado nem conseguiu perceber, junto da direção da instituição, se o valor tinha sido transferido para a creche, pela Segurança Social, com retroativos. Foi vencida pelo cansaço e assumiu os custos, mas no passado mês de setembro voltou a ser surpreendida com uma fatura. "Tive de fazer o pagamento do seguro e do material de desgaste, foram 77,50 euros". Pediu esclarecimento à direção quando viu o valor a pagamento e explicaram-lhe que eram rubricas que tinha de ser ela a assegurar - ao contrário do que diz a lei. Sónia nem questionou.

Susana Batista, presidente da ACEEP, lembra que os custos de funcionamento das creches, sobretudo nas grandes cidades e arredores, são sempre superiores, "nomeadamente por causa das rendas. Em Lisboa, Porto, Oeiras, é tudo muito caro e é a principal razão pela qual as creches não aderiram" ao programa Creche Feliz, defende a responsável. 

Houve creches que já entraram apertadas e agora, não havendo qualquer informação de aumentos e com os preços a subir, este ano foi uma loucura que ultrapassou o razoável dos aumentos na alimentação, energia, combustíveis, nos custos básicos, é lógico que isso estrangula as entidades", refere. 

Questionada sobre qual seria o valor justo, neste momento, que o Estado deveria entregar às creches por cada aluno, Susana Batista admite que preferia um modelo diferente, em que as famílias entregassem uma comparticipação financeira ao estabelecimento de ensino consoante os seus rendimentos, que iria acrescer ao montante pago pela Segurança Social. Uma reedição, no fundo, do que acontece nas instituições particulares de solidariedade social: as crianças que nasceram antes de setembro de 2021 pagam uma mensalidade estabelecida em função do rendimento do agregado familiar, à qual acresce uma comparticipação da Segurança Social.

"Antes, só as IPSS é que tinham a possibilidade de ter mensalidades mais baixas, em função do rendimento. Se este regime fosse simplesmente alargado a todas as creches, todas poderiam concorrer ao programa e não estariam limitadas por este valor que é imposto pelo Estado, tinham outra comparticipação", explica. Um modelo que, segundo Susana Batista, poderia ajudar a fazer crescer a oferta de vagas nas creches: os estabelecimentos, assinala, não estariam "limitados a um valor que lhes limita a sua capacidade de gestão".  

IPSS não pedem ajudas "coercivas"

O padre Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS), diz que não tem "relatos de mal-estar" entre as instituições particulares de solidariedade social (IPSS) em relação aos orçamentos, ainda que admita que a situação não é igual em todo o país. "Há zonas onde as instituições têm mais custos e consideram que esse valor é insuficiente, mas, na generalidade do país, sentem-se confortáveis", afiança. "Sei que há em Lisboa uma ou outra situação mais difícil", explica ainda, acrescentando que as dificuldades estão sobretudo concentradas nas regiões de Lisboa e Setúbal. "Os custos são mais elevados", refere, lembrando que o valor de 460 euros foi atualizado no início de 2023 para o sector social em 3,5% - o que não aconteceu para as instituições privadas. 

Questionado se as IPSS têm pedido aos pais que contribuam de outras formas, que não o pagamento da mensalidade, para solucionar os problemas da falta de orçamento, garante que a frequência das crianças continua a ser gratuita: "Podem pedir ajuda e os pais podem colaborar, mas nunca coercivamente", aponta. 

Laura, nome fictício, tem uma filha de ano e meio que frequenta a creche desde o ano letivo de 2022/2023, numa IPSS na capital. "Ela entrou com seis meses, já existia o Creche Feliz, e sempre correu bem", admite, apesar de um pequeno pormenor inicial: "Pediram-me o valor da inscrição. Eu expliquei que não ia pagar porque esse valor estava incluído e não disseram mais nada", recorda a encarregada de educação, em declarações à CNN Portugal.

No início do atual ano letivo, em setembro, Laura recebeu um email da direção a informar que tinha de pagar 40 euros de "material de desgaste". Enviou ela um email para a Segurança Social, através do site, a explicar a situação e o que lhe tinha sido pedido. "Responderam-me rapidamente", indica. O centro distrital informou que, de acordo com a portaria em vigor, a gratuitidade abrange alimentação, processo de inscrição, seguros, excluindo atividades extra. "O material de desgaste encontra-se incluído", lia-se na resposta dada. "Perante este email, simplesmente, não paguei à escola. Também não voltaram a pedir e se voltarem apresento esta resposta", declara. 

Laura garante que se a abordagem tivesse sido diferente, nem teria problemas em pagar os 40 euros solicitados. "Se até querem fazer atividades do Dia do Pai, ou Dia da Mãe, umas t-shirts, e precisavam de um fundo de maneio para esse material, porque não? Se me fosse explicado, até compreendia e colaborava. Enviarem-me email sem nenhum contacto prévio, não há aqui sensibilidade para explicar nada", lamenta. "É desta postura que não gosto. Parece que é para ver se pega". Com ela, não "pegou": "Os pais que se mexam", termina, incentivando os encarregados de educação a fazerem o mesmo que fez. "Peçam sempre esclarecimento à Segurança Social".

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