Tânia inscreveu o filho em 42 creches. Todas deram a mesma resposta. Não há vaga

5 set 2023, 07:00
Crianças (Foto: Christopher Furlong/Getty Images)

Filipa está na iminência de se despedir para ficar com a filha em casa. Tânia não sabe como conciliar a ocupação como cuidadora informal do filho mais velho doente com os cuidados a um bebé pequeno. Nem uma nem outra têm vaga para os filhos nas IPSS ou mesmo em creches privadas. Com a gratuitidade universal das creches, veio a mudança de critérios de admissão e o agravar de um problema antigo: a falta de vagas. "Um drama", resume a CNIS. Histórias para conhecer no dia em que o Governo apresenta o balanço do primeiro ano do programa Creche Feliz

 Na ternura e placidez dos seus 20 dias de vida, Gabriel usufrui da tranquilidade que um colo de uma mãe de três consegue proporcionar. Nem adivinha o turbilhão que assola os pensamentos da mãe Tânia sobre o futuro mais próximo. Ainda nem ia a meio da gravidez e Tânia Vargas já tinha começado a saga da procura de creche para o bebé que havia de nascer. Fez a inscrição em 42 estabelecimentos do concelho de Amares, onde a família reside, e de outros três concelhos vizinhos. Já sabe que, quando for a altura de deixar Gabriel na creche, em janeiro, não tem vaga em nenhuma.

Para o primeiro e para a segunda consegui vaga exatamente como fiz com este bebé. Inscrevi-os durante a gravidez e fui pagando metade da mensalidade para ir segurando a vaga. Agora, com a gratuitidade, não é possível reservar vagas. Das 42 creches onde o inscrevi, todas, sem exceção, me disseram que não ia ter vaga quando ele tivesse idade para as frequentar. Algumas não deixam sequer fazer a inscrição. Tenho por escrito todas as respostas”, conta Tânia à CNN Portugal.

O caso de Tânia já foi até discutido em plenário, no Parlamento, levado a debate pelo Bloco de Esquerda. De nada valeu. Agora, que devia estar a gozar o início de maternidade com a máxima tranquilidade possível, vive os dias a fazer contas à vida e a tentar perceber como continuar a conciliar os cuidados ao filho mais velho, de quem é cuidadora informal e que tem vários problemas de saúde que exigem terapias diárias e dedicação quase exclusiva, com os cuidados a um bebé de poucos meses.

“Jogo de cintura financeira”

A solução encontrada por Tânia, que deixou de trabalhar para se tornar cuidadora a tempo inteiro de Gonçalo, agora com seis anos, e pelo marido, programador informático, foi procurarem uma vaga numa instituição inteiramente privada. “Não tem acordo sequer com o programa Creche Feliz. Se calhar por isso é que consegui vaga. Vou pagar uma mensalidade bastante puxada para ter o Gabriel na creche, porque o irmão precisa de mim de forma integral e não consigo conciliar os cuidados e as terapias do irmão com os cuidados a um bebé pequeno. Vai ser um jogo de cintura financeira, mas não temos retaguarda familiar e não tenho outra solução”, lamenta.

Tânia é cuidadora informal do filho mais velho. Não consegue vaga numa creche para o bebé que acabou de nascer, apesar de, ainda grávida, a ter inscrito em 42 instituições. (Arquivo pessoal Tânia Vargas)

Filipa Santos vive um drama em muitos pontos semelhante ao de Tânia. Tem uma bebé agora com dois meses e meio e está na iminência de se demitir do trabalho como administrativa numa clínica para ficar em casa a tomar conta da bebé, agora com dois meses e meio. “Mesmo com o irmão na mesma instituição, não tenho qualquer hipótese. Tentei outros. Tentei vários, mas está tudo com lista de espera”, conta Filipa.

Também ela não tem retaguarda familiar e, durante longas temporadas, nem sequer com o apoio do marido pode contar. Ele é militar da Marinha e passa várias semanas embarcado.

Pedi teletrabalho e foi-me negado. Ou fico a receber mais três meses de licença de maternidade alargada, que é paga a 25%, e vou adiando o problema mais uns meses. Ou venho-me embora e fico a receber o subsídio de desemprego, que deve ser de uns 500 euros. É o equivalente a uma renda de casa que entrará a menos em casa”, lamenta.

“Vai ser muito ingrato até para o meu filho de sete anos, que vai para o primeiro ano e não percebe porque é que não fica em casa também se eu fico em casa com a irmã”, acrescenta.

Problema agravado pela gratuitidade

Tânia olha para o problema e não o consegue dissociar da gratuitidade das creches, lançada há um ano. “Não tenho dúvida que a gratuitidade veio agravar a falta de vagas”, lamenta.

Tânia Vargas aplaude o programa Creche Feliz e a gratuitidade das creches. Pensa mesmo que veio resolver os problemas de muitas famílias e ajudar muitas crianças. Mas olha para a medida e considera que o aumento da procura de vagas não foi acautelado.

Acho bem que havendo possibilidade de colocar a criança na creche, assim os pais o queiram, mesmo com alternativas familiares, o façam. Todos têm direito. Acho é que o Governo deveria ter acautelado este crescimento na procura de vagas, dado que o fator económico deixou de ser obstáculo para colocar os filhos na creche. Muitas crianças que antes ficavam com os avós ou iam para uma ama, sendo a creche gratuita, vão para a creche!”, analisa.

Filomena Bordalo, assessora da direção da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) para a área da cooperação, considera o problema está na legislação que determinou a gratuitidade universal das creches para crianças nascidas depois de 1 de setembro de 2021. É que, com a entrada em vigor da medida, alteraram-se também os critérios de admissão e de priorização das crianças.

“A creche, quando foi regulamentada pela Portaria 262/2011 de 31 de agosto, foi definida como sendo um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionada para ajudar a família e a criança. O primeiro objetivo que a Portaria que regulamenta a creche determina é facilitar a conciliação da vida familiar e profissional do agregado familiar. (…) Esta questão das vagas prende-se com isso. Quem sente dificuldade nas vagas são as famílias que trabalham os dois, sem retaguarda familiar e sem local ondem deixar as crianças para poderem trabalhar. São estas pessoas que estão a encontrar essas dificuldades”, analisa Filomena Bordalo.

Mudança de critérios

Mas os critérios de admissão das crianças nas creches foram alterados com a introdução da gratuitidade. “A própria Portaria 198/2022, de 27 julho, reforça a perspetiva de centrar mais na situação social e económica das famílias”, explica a responsável.

De acordo com a explicação de Filomena Bordalo, se até julho de 2022, um dos primeiros critérios de admissão era, por exemplo, ambos os pais trabalharem (e precisarem da creche para deixarem os filhos e poderem continuar a trabalhar), agora, uma criança com ambos os pais desempregados, por exemplo, terá prioridade. “Os filhos dos desempregados entram todos”.

Trinta por cento das vagas afetas à gratuitidade das creches destina-se a crianças beneficiárias da garantia para a infância ou beneficiários do abono de família até ao 3º escalão. Aqui é que está a grande origem da falta de vagas em creche. Não é que tenha havido um boom de crianças. Há aqui um pecado original. Não estou a pôr em causa a gratuitidade. É o desvirtuar da questão da conciliação da vida familiar e profissional”, considera Filomena Bordalo.

E o problema é universal, garante: “É um drama. E não é só nas zonas metropolitanas de Lisboa e do Porto. É em todo o país, nuns sítios mais, nuns sítios menos, mas é um problema do país inteiro”.

Tal como Tânia, Filomena Bordalo é perentória ao afirmar que todas as crianças beneficiam da frequência de creche e que, sobretudo pelas crianças, não pode haver um recuo na gratuitidade. “Há crianças que saem muito beneficiadas pela frequência da creche, pela socialização, pela alimentação, pelo desenvolvimento…”, admite.

Mas afirma que é preciso alterar a legislação e “encontrar aqui um equilíbrio” entre os critérios de admissão que visam a conciliação da vida familiar e profissional com as questões socioeconómicas: “O nosso país e a realização profissional de cada pessoa precisa disso. O equilíbrio de cada família precisa disso”.

Mais salas e mais crianças por sala

O balanço do programa Creche Feliz é feito esta terça-feira, pela ministra do Trabalho da Solidariedade e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, numa visita a uma creche. A assessora da CNIS acredita que o Governo está ciente da falta de vagas para os pais deixarem os filhos e poderem trabalhar. Filomena Bordalo acredita mesmo que o Executivo até tem tomado algumas iniciativas para resolver o problema.

“A Portaria 190/2023, de 05 de julho, facilita o aumento de mais duas crianças nas salas de um ano e na sala de dois anos e prevê a reconversão e espaços. Se uma instituição decidir reconverter uma sala de pré-escolar para creche, pode fazê-lo com alguma flexibilidade de requisitos, não abdicando de questões de acessibilidade e segurança. A Portaria já está em vigor. Em algumas zonas do país é mais célere do que em outros. Em alguns casos, os processos já foram deferidos. Noutros casos ainda não. Nem lhe posso dizer quantas instituições aderiram a este processo [de reconversão de espaços]”, explica.

Medidas que podem não ser suficientes para resolver o problema: “Temo que não venha a resolver a situação. Vai minorar, mas não vai resolver.”

Quando o corpo é grande o pano não chega, ou é as pernas ou os braços. Alguma coisa fica destapada”, resume.

A solução, adianta, terá e passar por estimular a reconversão de espaços, sim, mas também pela revisão dos critérios de admissão e prioridade, “de modo a compatibilizar a conciliação da vida familiar e profissional das famílias e esta questão social e económica”.

“Avós não são creches”

Filipa Santos sublinha que é urgente resolver o problema, até porque as estruturas das famílias também têm tendência a mudar e os avós estão a deixar de ser solução para muitos pais. “Eu, por exemplo, tenho uma mãe que trabalha, um pai que trabalha e uma sogra que trabalha. Agora os pais trabalham até mais tarde. Além disso, os avós também não são creches”, atira.

Filipa está na iminência de se despedir para ficar em casa com a filha bebé. (Arquivo pessoal Filipa Santos)

Filipa até ponderou recorrer a uma ama, mas rapidamente a solução desemprego lhe pareceu mais bem colocada: “Uma ama aqui na zona da Moita é 350 euros sem alimentação. É o meu ordenado vai para ela? Para isso, fico em casa”.

E com as histórias que se ouvem por aí? É como os lares. A necessidade traz as desgraças. Prefiro não arriscar”, acrescenta.

Assim, em novembro, é provável que venha engrossa a lista de beneficiários do subsídio de desemprego. Não porque não tenha realmente trabalho ou porque não queira trabalhar. Mas porque não tem onde deixar a filha para poder trabalhar

 

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