"As pessoas vão trabalhar doentes" e logo agora que a nova vaga da covid-19 pode estar a chegar. Sem medidas, resta-nos a "solidariedade coletiva"

15 out 2022, 18:00
Homem de máscara (AP Photo/Kin Cheung)

Médicos concordam: a gravidade do vírus é menor, mas a pandemia ainda não se foi embora e o número de casos reportados está longe de refletir a realidade. Vem aí o inverno, e esperam-se serviços de urgência de novo a abarrotar, com novos picos de infeção por SARS-Cov 2 e outros vírus respiratórios. Só a vacinação e o resgate de outras medidas de proteção podem travar uma nova vaga

É o regresso a uma aparente normalidade: deixámos as máscaras em casa, acabaram-se os isolamentos e até já relaxámos as medidas de higienização das mãos. Mas a pandemia ainda não terminou. As autoridades de saúde europeias e mundiais, nos últimos dias, têm sido veementes nos apelos: os casos estão a subir, a nova vaga até já chegou a alguns países europeus e isso sente-se nos serviços de saúde. E isto numa altura em que há menos pessoas a quererem vacinar-se.

Os últimos números divulgados pela Direção Geral de Saúde apontam para 6760 novos casos numa semana, com 420 internamentos, 28 deles em cuidados intensivos. São menos casos novos, mas mais internamentos e mais doentes em cuidados intensivos do que no último boletim epidemiológico semanal divulgado. A covid-19 continua a matar e, na semana entre 4 e 10 de outubro, morreram 36 pessoas.

Mas quem está no terreno sabe que os números divulgados estão longe de refletir a realidade e consideram que se relaxaram as medidas cedo demais.

“Os números não correspondem à realidade da pandemia em Portugal. Desconhecemos se na escola dos nossos filhos há pessoas infetadas, se no nosso trabalho há colegas infetados. Não existe vigilância, ponto. As pessoas que se testam são apenas aquelas que, conscientemente, por estarem em contacto com grupos de risco, como profissionais de saúde ou funcionários de lares, se testam para não infetarem as pessoas com quem contactam profissionalmente. Ou são as pessoas que têm sintomas já com alguma gravidade e se dirigem aos serviços de saúde”, retrata Gustavo Tato Borges, vice-presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública.

O médico considera que se abandonaram as medidas de contenção da pandemia no timing errado, quando se estava a entrar no outono e com um aumento de casos que apontava para o início de um novo pico da doença. E aponta o dedo, sobretudo, às autoridades de saúde e ao Governo, por terem posto fim ao estado de alerta. “Já não era a ideal, porque as pessoas já não eram obrigadas a testar-se. Houve um período para entrar em determinados locais ou para viajar de avião era obrigatório um teste negativo, mas já não era. Ainda assim, até ao final do mês passado, havia, por exemplo, incentivos para que as pessoas se isolassem e se testassem. Havia acesso a testes gratuitos, incentivo ao teletrabalho e as pessoas não perdiam grande rendimento estando positivos e isolando-se em casa, porque era pago a 100%”, enumera Gustavo Tato Borges, em conversa com a CNN Portugal.

“Solidariedade coletiva”

Uma posição que é partilhada por Bernardo Gomes, também médico de saúde pública, para quem “a cultura do presentismo” é um grande inimigo do combate à pandemia. “O nosso regime dos certificados de doença e de baixa não é incentivador do isolamento, os primeiros dias de baixa não são remunerados por exemplo. As pessoas vão trabalhar doentes e, só em última instância é que ficam em casa. Sobretudo agora, que atravessamos um período de maior escassez económica”, sublinha.

E o problema não é de agora e nem sequer é filho da pandemia: “Havia um problema pré-pandémico: a sobrecarga burocrática dos certificados de incapacidade temporária.”

Os especialistas lembram que há medidas que é preciso manter ou, em muitos casos, resgatar. Entre elas, é importante não abandonar de vez as máscaras, continuar a higienização das mãos e manter a etiqueta respiratória.

“Quando estamos com sintomas respiratórios, temos de usar máscara. É um ato de solidariedade coletiva. Temos de pensar que, quando há notícia e aviso de uma maior transmissão de vírus (seja da covid, seja da gripe), em espaço fechados, temos um ganho adicional individual em usarmos máscara. Mas temos também um ganho coletivo, porque estamos a proteger as franjas mais frágeis”, lembra Bernardo Gomes.

“A vida não pode voltar àquilo que era antes da pandemia. Não pode ser normal que uma pessoa com sintomas gripais vá trabalhar sem proteção. Pode ir trabalhar, mas usa máscara, não convive no intervalo do café, no almoço, ou no intervalo para fumar”, enfatiza Gustavo Tato Borges.

O papel de quem decide

Bernardo Gomes admite que “a situação não é, de facto, tão grave”, mas sublinha que “é preciso combater esta ideia de que é uma infeção como qualquer outra”. E se o papel de cada um de nós é fundamental, é igualmente importante o papel de quem manda.

“Estamos sobrecarregados com outras circunstâncias, nomeadamente o custo de vida, que fizeram esquecer um pouco a pandemia. E há cautelas individuais muito importantes, mas quem tem responsabilidade de gestão também tem um papel fundamental. Nomeadamente num investimento na qualidade do ar, apostando em sistemas de ventilação e de renovação do ar, que tem retorno económico e financeiro. Porque está provado que quem trabalha em cenários com melhor qualidade do ar, tem maior produtividade.”

O especialista lembra ainda a importância de se fomentar o teletrabalho, que permitiria “descongestionar transportes e espaços das próprias empresas”, da opção por desenvolver atividades ao ar livre sempre que possível e da “cultura do uso de máscara em espaços fechados”.

Gustavo Tato Borges considera importante que se volte a implementar medidas como o isolamento de cinco dias, a baixa paga a 100%, máscara obrigatória em determinados espaços, e testes acessíveis e gratuitos, que possam ser passados pelo SNS 24.

O retrato da doença nos hospitais

Nelson Pereira, médico intensivista, diretor da Unidade Autónoma de Gestão da Urgência e Medicina Intensiva do Hospital de São João, recebeu, em plena pandemia, muitos doentes jovens, sem outras patologias, que acabavam entubados nos cuidados intensivos. O retrato é agora diferente:

“Continuamos a ter doentes que se apresentam no serviço de urgência com infeção covid, mas a gravidade da doença é menor. O vírus tem uma agressividade menor e a vacinação tem tido um papel fundamental na prevenção das formas mais graves da doença. Não deixa de ser um problema de saúde pública, continua a ser. Mas os casos mais graves são agora de doentes mais frágeis, idosos e doentes em imunossupressão. Temos menos doentes com doença primária ou com pneumonia provocada pela covid.”

O médico intensivista sublinha também que há já muitos casos de infeções respiratórias provocadas por outros agentes infeciosos que não o SARS-CoV-2, que “até estão a surgir mais cedo do que no ano passado, por exemplo, por causa do uso de máscaras, que alterou a sazonalidade das doenças”.

O que esperar do inverno e a importância da vacinação

No seguimento dessa linha de análise, Bernardo Gomes sublinha que, “mesmo estando mais escudados, continuamos a ter contacto com muitos agentes. Mas houve alguma alteração sazonal, com vírus que estão a surgir fora de época”.

O médico de saúde pública ressalva os estudos que apontam para “a própria infeção da covid-19, à semelhança de outros vírus, afetar o sistema imunitário, fazendo com que, nos meses seguintes, a pessoa venha a ter outras infeções”.  

Os especialistas ouvidos pela CNN Portugal veem “como muito pouco provável, dentro deste cenário de incertezas, a repetição de um janeiro de 2021” nos hospitais portugueses, apesar de ser esperado um aumento da prevalência da doença.

“É importante olharmos para a nossa vida pós-pandemia de forma diferente da que olhávamos para a nossa vida pré-pandemia. Procurar não negligenciar nenhum dos sintomas que tenhamos, sejam eles respiratórios ou gástricos. É expectável que, dentro de dois meses, tenhamos níveis de utilização dos serviços de urgências muito próximos daquilo que é capacidade máxima”, considera Gustavo Tato Borges.

O especialista considera que “o que pode acontecer no próximo inverno é uma incógnita grande”. “Há dois fatores fundamentais. Um depende de nós e o outro não podemos controlar. O primeiro é a vacinação: todas as pessoas elegíveis devem ser vacinadas quando forem chamadas. O outro é o aparecimento de novas variantes: se aparecer uma variante que seja mais grave e mais transmissível, pode deitar por terra tudo. Dependendo destas duas variantes, podemos ter um inverno calmo, como foi o último janeiro e fevereiro, com muitos casos e poucos doentes graves e poucos óbitos”, explica.

Para o especialista, a tónica está mesmo na vacinação: “Quanto mais pessoas se vacinarem, mais probabilidade temos de ter um inverno mais tranquilo”.

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