Já não há confinamentos nem restrições na circulação, mas a covid-19 veio para ficar, assim como as vacinas. Três anos depois da declaração de pandemia por parte da OMS, ainda não há certezas, mas quatro especialistas dizem o que esperar do vírus que parou o mundo em 2020 e deixam o alerta: a long covid vai ser a grande dor de cabeça a partir de agora
“Em Medicina, quando lidamos com alguma doença, vamos a tratados médicos e em cada capítulo podemos aprender todas as características e como se manifesta. Neste caso, estávamos com um capítulo em branco, como diz um colega meu”. Luís Graça, professor de imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM) admite que “estar confrontado” com “um vírus que não conhecíamos, em que as características da doença não eram conhecidas” e “à procura de informação” foi o maior desafio que a pandemia trouxe, mas longe de ser o único.
Os primeiros sinais de alerta soaram ainda em 2019, mas do outro lado do globo, a uma distância que muitos acreditaram ser de segurança. Mas num ápice um agente desconhecido passou as fronteiras, invadiu corpos e fechou o mundo em casa. E por cá continua e vai continuar, mesmo passados três anos da declaração de pandemia por parte da Organização Mundial da Saúde, a 11 de março de 2020. O SARS-CoV-2 passou a ser “mais um” entre nós, mas a monitorização é para manter, assim como a proteção.
Manuel Carmo Gomes também olha para a incerteza inicial como o principal obstáculo e diz que o vírus apanhou todos na curva, sobretudo pela velocidade com que contagiava e passava fronteiras e, agora, com a capacidade de resistir e adaptar-se. “Não pensei que isto durasse aquilo que está a durar e tivesse as implicações que teve”, reconhece.
O epidemiologista está desde o início de 2020 no leque de peritos da Direção-Geral da Saúde (DGS) que traça o caminho de combate à covid-19 em Portugal. Ainda em fevereiro desse ano, quando já se falava de covid-19 mas longe de se sonhar que iria chegar a Portugal (e a todo o mundo), esteve num grupo formado pela DGS “para estabelecer a nossa reserva estratégica de medicamentos” e esse mesmo grupo foi desafiado a responder à pergunta que ecoava na cabeça de todos: “quantos casos vamos ter e quanto vai durar?”, recorda. “Não vou dizer qual a resposta que demos, mas foi muito aquém do que se passou, demos uma resposta mais comedida, guiamo-nos pela China, que tinha tido 80 mil casos e depois conseguiram mitigar a epidemia depois de fecharem tudo”, diz
“Na altura, não era capaz de dizer que 650 milhões de pessoas iam ser infetadas, que duraria três anos, mas senti que era perigoso”, admite.
Manuel Carmo Gomes tem agora a certeza que estamos “num ponto de viragem” da pandemia, uma opinião que vai sendo consensual na maioria dos especialistas, mas que não quer dizer que o SARS-CoV-2 desapareça ou deixe de causar mossa, até porque a long covid é agora o grande puzzle por resolver. E por isso mesmo, assegura, “há uma série de boas práticas que devemos pensar se não seria útil manter, não temos de ter preconceitos”.
Pandemia pode ter os dias contados
O vírus veio para ficar, mas a classificação de pandemia pode estar para acabar. A OMS mantém o nível máximo de alerta face ao SARS-CoV-2, mas os especialistas crêem que entraremos brevemente em endemia, mesmo que o mundo ainda combata o vírus a dois ritmos, um pouco como acontece com outras doenças.
“A covid veio surpreendendo e adaptou-se de forma extraordinária à população humana. Acredito que este seja o ano em que sai do estado de emergência, mas a covid vai ficar para sempre”, diz Gustavo Tato Borges.
O presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública acredita que “estamos mesmo no ponto de viragem”, muito graças à cobertura vacinal, que “em boa parte dos países é elevada”, e ao facto de “a população estar mais habituada a esta doença, que é uma doença menos grave” agora do que foi inicialmente, com as primeiras variantes - e a Ómicron teve um papel fundamental. “São boas condições para estar em endemia”, chuta. Os Estados Unidos, por exemplo, já deram esse passo.
“A classificação tem os dias contados, mas concordo com a posição que a OMS tomou. Eles vão reunir-se em abril e acho que apenas adiaram a decisão”, diz Manuel Carmo Gomes. “Acredito que em abril a OMS vai levantar o estado de emergência”, atira o epidemiologista, mas num ápice diz que isso jamais poderá fazer “baixar a guarda”. “Se surgir uma forma que seja muito transmissível e tivermos o azar de ser muito patogénica, temos um sarilho na mesma”.
“Mesmo em Portugal, onde temos esta proteção imunitária enorme, nos últimos meses tivemos mais de 200 óbitos por mês de covid-19 e temos ainda alguns milhares de casos por dia e centenas de pessoas hospitalizadas. Só cancros e pneumonias matam mais do que isto, e isto não é normal. E ao contrário do cancro, isto propaga-se. Não vamos esquecer e dizer que isto passou”, frisa o epidemiologista, que defende que o cenário vai mudar, mas que é preciso continuar a prestar atenção à doença.
Raquel Duarte, médica pneumologista do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho e docente na Faculdade de Medicina e Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, está confiante com o fim da declaração de pandemia, mas evita o histerismo e as certezas absolutas. “Já fomos tantas vezes surpreendidos”, diz, entre risos.
Como devemos olhar para a covid-19 a partir de agora?
Olhar para a covid-19 como se olha para a gripe é o cenário mais provável e aquele que reúne mais consenso entre os especialistas: os grupos de risco continuarão a ser mais vigiados e a ter mais estratégias de proteção, mas o vírus irá adotar um carácter sazonal e circular em comunidade, provocando, na maioria dos casos, sintomas ligeiros. Isto, claro, se a covid não mudar novamente as regras do seu próprio jogo, com uma variante mais agressiva.
A monitorização deve também manter-se, um pouco à semelhança do que acontece com a gripe. “Em termos de saúde pública, é importante monitorizar o que está a acontecer na comunidade, quais as consequências em termos de morbilidade e hospitalização, isso tem de continuar”, atira Raquel Duarte.
“O que estamos a assistir é uma transmissão na comunidade de vários vírus respiratórios, que se transmitem e previnem de formas semelhantes”, o que, diz Raquel Duarte, torna “importante” saber como as pessoas “se podem proteger e ter comportamentos adequados”, frisando que, por isso, “o uso de máscaras deve ser manter-se”, sobretudo em “hospitais, centros saúde e lares”.
Neste pós-pandemia, mas ainda em fase de atenção máxima, as máscaras serão o novo normal, dizem os especialistas. Manuel Carmo Gomes não é a favor da “obrigatoriedade”, mas pede bom senso, sobretudo quando se está numa situação em que a saúde de outrem depende da nossa ação.
Aqui, os quatro especialistas concordam que as máscaras em espaços mais críticos e frequentados por pessoas mais vulneráveis (como unidades de saúde e lares, por exemplo) devem passar a ser a regra, assim como o investimento na melhoria das qualidades de ventilação destes espaços, mas também de outros que podem servir de incubadora para o vírus, como “escolas, salas de espetáculo, consultórios”, sugere Manuel Carmo Gomes.
Olhando já quase como uma forma de prevenir males maiores em epidemias ou pandemias futuras, o epidemiologista aborda ainda a questão do teletrabalho. “Houve imensa gente que entrou em teletrabalho na pandemia. Temos de pensar caso a caso se não vale a pena manter uma certa percentagem da força de trabalho em casa”, sugere.
De todos para os mais vulneráveis. Qual o papel das vacinas a partir de agora?
A pneumologista Raquel Duarte apressa-se a dizer que “a vacinação tem um papel fundamental na infeção e vai continuar a ter”, deitando por terra a hipótese desta deixar de ser uma estratégia quando a covid-19 deixar de ser classificada como pandemia. “É das medidas mais úteis na saúde pública”, continua, explicando que “o calendário da vacinação será desenhado com o máximo benefício, pois há sempre estudos a decorrer”.
Mas o certo é que funcione em simultâneo com a da gripe e se destine à mesma população-alvo. Ou seja, ao invés de ser para todos, como a da covid foi inicialmente, irá sobretudo destinar-se a idosos, pessoas com imunossupressão ou outras doenças e que sejam de risco, profissionais de saúde e de lares ou unidades de cuidados sénior.
“É natural que a vacina da covid deva ter uma atitude semelhante e uma estratégia de proteção dos mais vulneráveis”, como acontece atualmente com a gripe, esclarece o imunologista Luís Graça, que destaca a investigação que tem vindo a ser feita para otimizar as vacinas, estando na mira “vacinas combinadas que protejam contra a covid-19 e a gripe”. “Assumindo que os grupos de risco para covid e gripe são os mesmos, poderá ser conveniente uma vacina única, mas isto são estratégias que estão em desenvolvimento”, explica.
“Eu acho que o mais provável é que será recomendado o reforço vacinal anual das pessoas mais frágeis, os mais idosos ou que têm doenças crónicas”, afirma Manuel Carmo Gomes, perspectivando que isso aconteça no outono, “na mesma altura da vacina da gripe”. “Mas longe de mim ter certezas”, atira, até porque, explica, há ainda “a dúvida se necessitaremos ou não de recomendar a vacina antes do outono, por exemplo na primavera”.
Gustavo Tato Borges partilha da opinião, que “a perspectiva é que se mantenha o reforço sazonal, a não ser que haja uma nova vacina, mais eficaz a controlar a transmissão da doença e também em termos de duração da resposta imunitária”.
A própria Agência Europeia do Medicamento aponta que o reforço anual pode ser o caminho a seguir.
Long covid, a grande dúvida
“Quando foi declarada a pandemia, não sabíamos o que ia acontecer. Estamos ainda a ver o que vai acontecer, a sofrer as consequências dos últimos anos. A long covid vai deixar ainda sequelas, para a qual temos de encontrar resposta. Na verdade, estamos em fase de sequela”, afirma Raquel Duarte.
A covid de longa duração é agora a grande preocupação, um efeito colateral que se arrasta por semanas ou meses e cujo impacto ainda não é possível medir. “Estima-se, e numa estimativa conservadora, de que pelo menos 10% das pessoas infetadas desenvolvem covid longa”, diz, lembrando que, apesar de ser já um conceito falado, “sabemos muito pouco, sabemos que a lista dos sintomas é imensa, ronda os 200 sintomas, segundo um artigo de revisão na Nature, desde problemas cardíacos e pulmonares, grande fadiga, algumas arritmias, falta de ar”.
“Não sabemos ainda dizer o que vai determinar o tempo que as pessoas vão levar a resolver, alguns casos é grave, como diabetes tipo 2 e microtrombos. Algumas pessoas ficam com o vírus no sistema gastrointestinal ou no sistema nervoso. Embora a pessoa teste negativo, continua com o vírus que desencadeia um processo inflamatório que permanece, tem imensas consequências, causa desregulação do sistema imunitário e deixa a pessoa mais propensa a outras infecções”, diz.
A persistência de sintomas após a infeção aguda por SARS-CoV-2 começou a fazer-se notar logo no verão de 2020. Afetava sobretudo quem desenvolvia doença grave, tinha estado internado e até entubado. Hoje o cenário é diferente: até quem teve infeção ligeira pode ficar com sintomas prolongados. E há ainda quem, passados meses, continue a sentir no corpo as marcas. Por cá, não há números oficiais de pessoas que são acompanhadas, mas rondam os milhares, tanto no sistema público de saúde como no privado.
Manuel Carmo Gomes diz que absentismo é apenas uma das consequências mais diretas da covid longa e garante que “não estamos preparados para o pós-covid, mas vamos ter cada vez mais casos” e, por isso, defende uma “rede de consulta e apoio organizada”, sob a pena de “causar pressão no sistema hospitalar”.
O médico de Saúde Pública Gustavo Tato Borges também reconhece, apesar de os hospitais já estarem a fazer um esforço para acompanhar a situação, que “não estamos preparados”. "Há uma incerteza muito grande sobre o pós-covid, há muitos estudos a serem feitos para perceber a dimensão do problema e as suas ramificações, não sabemos o que vem aí, não temos noção de quantas pessoas vão precisar apoio”.
“Seria sempre interessante haver um plano organizado para estas questões, para o cidadão, independentemente de onde está, saber o que fazer e onde recorrer. Isso implica formação nos hospitais e com os médicos de família para saber reconhecer o que se passa com os utentes”, sugere, defendendo que “havendo uma resposta isto torna-se simples e automático para o utente”, algo que, acrescenta, se conseguiria com “uma resposta organizada” e dedicada ao long covid.