Surdez, fadiga e manchas nos pulmões. Histórias de quem vive com marcas pesadas da covid-19

Daniela Costa Teixeira , com fotografias de Rui Oliveira e grafismo de Rita Cerqueira
13 fev 2022, 08:00
Laurinda Lopes, 51 anos, foi das primeiras portuguesas a ser infetada com o SARS-CoV-2.

Foram infetadas há muitos meses com SARS-CoV-2, mas não recuperaram. Vanessa não consegue subir escadas, Laurinda deixou de fazer tarefas de casa por causa das lesões pulmonares e Ana perdeu o olfato, o paladar e a audição. A long covid é um problema de saúde que veio para ficar

“Não foi essa semana com covid que me custou mais, era como se fosse uma grande gripe. O pior foi depois”. Ao telefone, Vanessa Arlandis começa a contar uma sucessão de acontecimentos após ter ficado infetada no natal de 2020. “Não quero chorar ao telefone”.

Com 36 anos, nunca chegou a recuperar totalmente dos sintomas causados pela infeção por SARS-CoV-2. O primeiro sinal de alerta foi uma tentativa de caminhada na passadeira estática que tem em casa dias depois de os pais terem testado positivo. “Não aguentei nem um minuto, o meu coração começou a bater muito forte e fiquei zonza. Parecia que tinha feito uma maratona”, conta-nos. 

Depois de “horas a dormir”, tal foi o cansaço imposto no seu corpo, fez um teste PCR que confirmou a infeção e seguiram-se sintomas “como se estivesse com gripe”, mas uma gripe mais intensa do que qualquer outra que já tivesse tido. “Fiquei toda a semana de cama e houve um dia em que não acordei, o meu marido só me abanou a perguntar se estava bem. Eu nem conseguia abrir os olhos”, recorda a diretora de e-commerce da Moviflor.

E, volta a lamentar, “o pior foi depois”. “Um mês depois tive uma tromboflebite”, um quadro clínico que os médicos disseram que, apesar de raro, pode estar associado à infeção em pessoas com problemas de circulação sanguínea. 

(Fotografia de Rui Oliveira com grafismo de Rita Cerqueira)

Embora as alterações respiratórias sejam o sintoma mais comum após uma infeção e aquele que pode perdurar mais tempo, a verdade é que a long covid - também denominada como síndrome pós-covid, covid persistente, covid longa ou covid de longa duração - faz-se sentir de muitas formas e intensidades. Não há um padrão, nem tão pouco uma justificação, pelo menos para já. 

Um estudo publicado na eClinicalMedicine, que juntamente com a eBioMedicine faz parte da The Lancet Discovery Science - onde são publicados estudos e ensaios clínicos cujos resultados podem ajudar a melhorar a saúde da população -, indica que já foram identificados 203 sintomas associados à covid de longa duração e que envolvem 10 órgãos diferentes do corpo humano. O estudo foi realizado com dados de 56 países e envolveu mais de três mil pessoas, tendo concluído que 56 dos 203 sintomas identificados persistiram por sete meses.

Assim que foram relatados os primeiros casos de sintomas que se mantêm mesmo após um resultado negativo, a comunidade científica começou a alertar para o facto de a long covid ser a pandemia que a pandemia trouxe, mas foi apenas no final de 2021 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou, por consenso médico, uma definição para covid de longa duração.

“A condição pós-covid-19 ocorre em indivíduos com histórico de infecção provável ou confirmada por SARS-CoV-2, geralmente três meses após o início, com sintomas que duram pelo menos dois meses e não podem ser explicados por um diagnóstico alternativo”, lê-se num documento publicado na revista científica The Lancet Infectious Diseases. A definição destina-se apenas a adultos, pois são raros os casos de long covid em crianças, e os cientistas que escreveram a definição deixam claro que os sintomas e sequelas podem oscilar e variar de pessoa para pessoa.

Estima-se que 10% a 20% das pessoas infetadas com SARS-CoV-2 mantêm os sintomas passadas 12 semanas após testarem positivo ao vírus. E são dez aqueles que, segundo a OMS e Fundação Britânica do Coração, mais teimam em persistir.

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Longos meses a tentar recuperar

Ana Magalhães e Laurinda Lopes, mãe e filha a residir em Lousada, ainda não conseguem esquecer o mês de março de 2020, não só por terem sido das primeiras pessoas a serem infetadas em Portugal numa altura em que apenas reinava o medo e incerteza, mas porque o corpo não deixa - e faz questão de as lembrar dia após dia. “Ainda hoje me queixo”, conta à CNN Portugal Laurinda Lopes, de 51 anos.

“Tivemos perda de olfato e paladar e ainda hoje não recuperamos, os médicos dizem que isto é com o tempo”, revela Ana.

Tanto Ana como Laurinda foram das primeiras pessoas a ser internadas no Hospital de Braga. Estiveram lá 11 dias e receberam alta apesar de ainda testarem positivo ao vírus. “O hospital começou a ficar cheio e como as pessoas precisavam de ventiladores tivemos de desocupar os quartos”, conta Ana, que se apronta a “agradecer” o trabalho feito pelos profissionais de saúde, sobretudo por não saberem “com o que estavam a lidar”. 

Ana, de 29 anos, perdeu parte da audição no ouvido direito. “Dizem que pode passar com o tempo”, adianta-se, embora reconheça que, de início, “isto foi um susto, mas quando fui à consulta do pós covid [no Hospital de Braga] fui a quinta pessoa a queixar-se da audição”.

Já Laurinda revela que ficou “com bastantes sequelas nos pulmões”, algo que ainda hoje impacta o seu dia-a-dia, na sua rotina e nos hábitos que tinha já como adquiridos.

“Cá em casa quem arruma é a minha filha, faço muito menos coisas. Fico triste”, lamenta Laurinda. “Fiquei muito cansada desde o princípio, sempre me queixei”.

Quase dois anos depois, Laurinda ainda tem lesões nos pulmões, sente-se cansada e limitada em algumas tarefas diárias. (Fotografia: Rui Oliveira)

A fadiga é um dos sintomas de long covid, talvez o mais comum. “É uma fadiga extrema, uma fadiga inexplicável, é uma fadiga independente dos esforços para fazer tarefas domésticas”, explica Jorge Pimenta, médico fisiatra e diretor clínico da Fisiogaspar.

Também Vanessa Arlandis, que reside em Ermesinde, se queixa do cansaço que a acompanha há mais de um ano. “É um cansaço que em fevereiro e março [de 2021] não conseguia fazer a minha cama”, exemplifica. Embora vá notando algumas melhorias com o passar dos meses, reconhece que ainda está longe da sua forma física pré-infeção. “Hoje em dia não consigo subir umas escadas”, continua. “Faço fisioterapia desde outubro para ver se ganho resistência respiratória, mas o cansaço é permanente, ficou sempre desde a infeção. De manhã ainda consigo dar conta do recado, à tarde parace que fico sem pilhas, coisa que nunca me aconteceu porque sempre fui muito energética”, lamenta.

“É um cansaço frustrante”, desabafa Vanessa. E o facto de estar há vários meses limitada não ajuda. “Isto prejudicou a capacidade de fazer as coisas no trabalho, a capacidade de ter foco, de ter energia”.

Para além do cansaço, mas em parte como causa desse mesmo cansaço, Laurinda Lopes ficou com lesões pulmonares, uma outra consequência comum da infeção por SARS-CoV-2. “Comecei a fazer uma TAC aos pulmões de meio em meio ano e encontraram sete manchas nos pulmões que ainda não passaram”.

(Fotografia de Rui Oliveira com grafismo de Rita Cerqueira)

As lesões pulmonares foram das primeiras a permanecer, sobretudo em pacientes que foram infetados pela cepa original do vírus e que desenvolveram doença grave. “Nos primeiros surtos predominavam as queixas respiratórias e o compromisso respiratório”, explica Miguel Toscano Rico, médico especializado em Medicina Interna e um dos responsáveis pela Clínica de Atendimento pós-covid, no Hospital Santa Marta, em Lisboa.

Para o especialista, mesmo com a chegada de novas variantes e linhagens do vírus, “as formas graves de queixas respiratórias continuam a ser preocupantes, sobretudo quando há compromisso respiratório e necessidade de ventilação, com perda de massa muscular e descompensamento respiratório”, continua o médico. Mas adianta-se a mostrar algum otimismo: “Tem aparecido menos”.

Laurinda é um desses casos. Infetada com a cepa original do vírus, acabou por ver a sua função pulmonar afetada, algo que ainda hoje sente. “Vou recomeçar a fazer a próxima fisioterapia a ver se os pulmões recuperam, as manchas estagnaram”, diz, esperançosa, embora esteja em planos de reabilitação com fisioterapia desde 2020. “Já consigo fazer mais um pouco de passadeira e bicicleta”, apronta-se a dizer, mas admite que a infeção “mudou a rotina”, deixando-a mais limitada. “Antes fazia algumas caminhadas e fazia bem, corria, e agora correr está fora de questão”.

Mais do que consequências físicas

“2021 foi o meu pior ano”, admitiu Vanessa Arlandis num tom pesado, algo que não conseguiu deixar ao longo de toda a conversa com a CNN Portugal. Para lá das consequências físicas, que a levaram a ser operada às pernas e ainda se fazem sentir no cansaço do qual não se consegue livrar, a mente também deu sinais de alerta. “Ainda hoje em dia faço terapia, foi um ano muito puxado emocionalmente”.

Vanessa começou a sentir-se deprimida e “sei que a partir daí fiquei uma pessoa menos focada, a memória a curto prazo está caótica, parece que estou aluada”.

“Quem esteve assintomático não tende a ter sintomatologia de long covid e sabemos que a prevalência de pessoas com sintoma de covid são aquelas que sabem que tiveram covid. Muitas destas pessoas acabam por ficar deprimidas, acabam por ficar com sintomatologia de ansiedade ou depressão e precisam de acompanhamento nesta área”, explica, Miguel Toscano Rico, que alerta para o facto das consequências da pandemia não apenas no sofrimento emocional, mas também no próprio funcionamento cognitivo e saúde mental.

(Fotografia de Rui Oliveira com grafismo de Rita Cerqueira)

Embora reconheça que “o número de doentes infetados é grande e felizmente não temos o mesmo caudal de doentes com alterações cognitivas”, Miguel Toscano Rico não deixa de alertar para o facto de “o total de pessoas afetadas [a nível cognitivo] é significativo” e que têm sido mais frequentes as alterações neurocognitivas nas mais formas mais graves de doença, sendo também já notórios alguns impactos no sistema nervoso periférico e central. “Desconfio que iremos ter formas [de long covid] mais complicadas e difíceis de tratar do ponto de vista cognitivo”, adverte.

Miguel Toscano Rico diz que o brain fog, descrito pela comunidade médica como névoa mental (que não só causa confusão como compromete a memória a curto prazo) continua a ser uma das sequelas a que mais assiste.  “Ainda é difícil saber quando o brain frog passará, alguns melhoram com o tempo, outras têm flutuações, algumas delas persistem com a sintomatologia”, explica o também criador da Inspiro, uma associação criada em plena pandemia que oferece programas de reabilitação a pessoas que tenham ficado com sequelas associadas à infeção. 

Focada sobretudo na reabilitação respiratória, com exercícios que ajudam também na movimentação do corpo, a Inspiro tem aulas de grupo online conduzidas por fisioterapeutas da área de intervenção cardiorrespiratória, em colaboração com estudantes finalistas de Cursos de Licenciatura em Fisioterapia. Até hoje, já se inscreveram 249 pessoas.

Também o médico fisiatra Jorge Pimenta diz que em clínica tem notado a chegada de pacientes com “alterações cognitivas” e quadros de ansiedade, pois “há muito o foco no medo ainda”, explica. Este cenário, que mostra que a covid-19 vai muito além das mazelas respiratórias, leva a que a Fisiogaspar, clínica de onde é diretor, aposte numa abordagem mais abrangente e que seja o mais personalizada possível tendo em conta o diagnóstico de cada pessoa. “A equipa é multidisciplinar, envolve a parte médica, de medicina de reabilitação e medicina interna, envolve os terapeutas de fisioterapia e da fala e psicologia”, refere.

Aprender a lidar com a incerteza

A incerteza é um dos calcanhares de Aquiles da covid de longa duração. Não só a incerteza da recuperação, mas também a incerteza de a que porta irão bater os sintomas prolongados.

Publicado em janeiro deste ano na revista Nature Communications, um estudo explica que as pessoas que desenvolvem doença após a infeção (a covid-19) há muito tempo têm níveis mais baixos de certos anticorpos no sangue logo após serem infetadas com o coronavírus. Esses níveis de anticorpos, quando combinados com outros fatores, como a idade ou histórico de asma, foram 75% eficazes na previsão de covid de longa duração, indicam os cientistas, que defendem que esta descoberta poderá dar azo a mecanismos de diagnóstico precoce de risco de long covid, mesmo até através de uma simples análise sanguínea.

Segundo Miguel Toscano Rico, “os fatores de risco para formas mais graves de covid continuam a ser válidos para a long covid. O facto de se estar vacinado reduz bastante as formas graves, mas mesmo assim há outros fatores de risco, como hipertensão, obesidade, diabetes e idade, que aumentam o risco de ter formas mais graves de long covid”.

Sobre a incerteza da recuperação, até para os médicos esta é uma questão delicada e nem sempre fácil de trabalhar com os pacientes, “Não podemos fazer um plano a longo prazo [para os pacientes], sabemos onde queremos chegar e muitos chegam, mas há sintomas e doenças mais graves cujas sequelas ficam”, diz o médico fisiatra Jorge Pimenta.

Para o médico fisiatra, uma das estratégias para lidar com a long covid é olhar para ela como uma doença crónica, algo que deve ser trabalhado de forma adaptada ao longo do tempo. “Tal como noutras doenças crónicas, não sabem se [os pacientes] vão ficar bem e a forma de lidar com isso, e é o que tentamos privilegiar, é o apoio no dia-a-dia, em que, por etapas, ganham mais competências mais próximas do que tinham antes da doença”, esclarece.

E para os pacientes este é o principal choque após a recuperação da infeção. “Fico assustada por não saber se vou recuperar ou não a audição, o mesmo acontece com o paladar e olfato, não sei quando voltará”, lamenta Ana Magalhães.

Também Vanessa Arlandis tenta manter-se otimista quanto ao futuro, mas nem sempre o consegue. “Lido muito mal com esta incerteza, não quero chorar ao telefone, mas isto deixa a nossa vida em stand-by. Pareço uma velhinha e recuso muito a vida social”, reconhece.

Miguel Toscano Rico admite que “é muito difícil explicar às pessoas que não sabemos quando vão dar a volta e se vão dar a volta”. “Uma coisa que é difícil de explicar é que a medicina não é uma ciência exata e no caso concreto da infecção por SARS-CoV-2 é também uma ciência que não fez a prova do tempo, não está connosco há tempo suficiente para percebermos as consequências a longo prazo”. Mas prefere passar uma visão positiva. “Com o tempo, com o treino cardiorespiratório, a estimulação neurocognitiva e o acompanhamento psicológico, tudo isto faz-nos intuir para que lado o doente está a evoluir”.

E no meio de tantas incertezas, o médico Miguel Toscano Rico tem uma: “a história natural das formas de long covid ainda não está completamente esclarecida, mas sabemos, de qualquer forma, que ainda vamos ter muitos doentes com formas de long covid”.

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