Folhetim de voto: Rui Tavares despachou André Ventura com vários zeros

6 jan 2022, 07:10

Faltam 24 dias para as eleições, e ainda não sabemos quem poderá ir votar - a solução para que quem está confinado possa ir às urnas depende do Governo. Mas já sabemos que é possível arrumar com André Ventura num debate, como Rui Tavares demonstrou. A coluna diária de análise e opinião sobre a campanha, pelo jornalista de política Filipe Santos Costa

Confinamento. Os portugueses com ordem de confinamento no dia 30 poderão ir votar? Com as atuais regras, não; mudando-as, sim. Depende do Governo, escreve o Público de hoje, com base na opinião dos constitucionalistas José Bacelar Gouveia e Vitalino Canas. “Basta” que o Governo altere a resolução do Conselho de Ministros que impõe o estado de calamidade e define as regras de confinamento. Há um choque entre o direito constitucional a votar, e a proteção constitucional da saúde pública- sendo certo que o direito e liberdade de votar é um dos pilares do regime democrático.

O Governo informou ontem que já pediu ajuda ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República para saber como pode compatibilizar os dois valores constitucionais que estão em choque. Os dois constitucionalistas acima citados concordam que o direito ao voto se deve sobrepor, mas Paulo Otero, outro constitucionalista ouvido pelo Público, discorda: “Se há razões de saúde pública relativas a toda a comunidade que justificam o isolamento, não podem ser postas em causa.” Qualquer que seja a decisão do Governo, será de certeza alvo de críticas, daí a necessidade de procurar conforto no parecer da PGR. 

Pode haver mais de 400 mil portugueses em confinamento no dia das eleições - seja porque estão doentes, ou infetados, ou porque tiveram contacto de risco e estão em isolamento profilático. Outro contributo para resolver o imbróglio das eleições pode vir da DGS, se aliviar as normas de isolamento, sobretudo para quem não está infetado (está só em isolamento profilático) ou, estando, não tem sintomas da doença.

Uma intervenção do Parlamento já não é possível nesta altura, pois a AR foi dissolvida. Pena que, enquanto tinha poderes para tal, o Parlamento não tenha levado o problema a sério. Mexeu em pormenores, mas nada que possa mitigar o impacto de um pico de contágios como o que estamos a viver. No Crossfire, aqui na CNN Portugal, Cecília Meireles considerou que o problema está na pressa com que se marcaram as eleições, fazendo-as coincidir com um pico de contágios. Talvez o problema esteja antes na inação dos deputados, perante um risco há muito pré-anunciado.

 

Zero vezes. Vamos aos debates. Ontem foi o dia em que André Ventura foi arrumado a um canto durante um debate televisivo. O responsável foi Rui Tavares, do Livre. Ficou provado que com trabalho de casa, foco e serenidade, é possível desarmar o matraquear incessante do líder do Chega, e confrontá-lo com aquilo que Ventura mais quer evitar: o seu próprio programa eleitoral. Não acho que Tavares tenha “limpado o chão com André Ventura”, como li nalguns comentários mais exuberantes no Twitter. Mas fez-lhe frente, desmontou alguns dos seus mitos, e não se deixou condicionar pelo metralhar de soundbites desconexos que Ventura leva para os debates. Perante este tipo de adversário, é bastante.

André Ventura foge de falar do seu programa como o diabo da cruz. Rui Tavares teve de falar nisso por ele. Transcrevo aquele que considero o momento mais marcante do debate, protagonizado pelo fundador do Livre:

“O programa do André Ventura fala de cidades zero vezes. Fala do Interior zero vezes. Fala de universidade zero vezes. Fala do mar zero vezes. Fala do ambiente zero vezes. Bola! E depois, fala das coisas que lhe interessa? Ele quer ‘mudar a Constituição’, ‘quer uma 4ª República’ (...) Constituição, zero vezes. Quer um regime presidencialista - presidencial, zero vezes; Parlamento, zero vezes; Assembleia, zero vezes; deputado, zero vezes. Poluição, zero vezes. Língua portuguesa, zero vezes. Mulher aparece uma vez, para dizer que a família é constituída pela relação íntima entre um homem e uma mulher. Zero vezes violência doméstica, zero vezes mulheres. Este é um programa que não tem nada para oferecer de futuro. E por isso pretende falar de propostas que são do século XIX.”

 

Ventura. Ainda não foi neste debate que André Ventura explicou aquilo que o seu programa diz e omite - sobretudo aquilo que omite. Mas o embaraço foi um momento televisivo. Porém, como bom comentador de futebol, Ventura acredita que a melhor defesa é o ataque, e contra-atacou… com o programa do Livre, “o programa mais irresponsável que eu vi na vida”. Foi um jogo interessante, com ambos a atirar ao adversário o programa alheio. Ambos mais concentrados em marcar golos do que em fechar a sua baliza. Um debate completamente ao ataque, mas sem nunca ter baixado o nível, graças à frieza e autocontenção de Rui Tavares.O moderador, João Póvoa Marinheiro, ajudou bastante. Mas Ventura bem tentou puxar a conversa para baixo, ao provocar e desqualificar o oponente. 

A estratégia de Ventura é sempre a mesma, um rolo compressor a matraquear frases desconexas, muitas sem qualquer base de realidade, quase sempre sem coerência umas com as outras, que ou ficam sem resposta ou obrigam o interlocutor a correr atrás do prejuízo para responder a tudo e mais alguma coisa. É quase sempre uma luta perdida, porque ou Ventura passa falsidades sem contraditório, ou dita toda a agenda do debate - e ganha por um lado ou por outro. 

Rui Tavares e André Ventura

Tavares. O candidato do Livre não foi atrás dos fogachos de Ventura, apenas fez os mínimos para não deixar as acusações mais graves sem resposta, mas focou-se em virar o jogo do avesso, confrontando o líder do Chega com os seus silêncios e as suas incoerências. E fê-lo desde o início do debate, quando marcou o contraste entre os dois partidos. O Livre, que teve de recorrer à CNE para poder ter lugar nos debates, contra o Chega, que tem muito mais espaço mediático do que o seu peso eleitoral. Tavares denunciou aquilo que nunca um adversário de Ventura lhe disse olhos nos olhos: que é “um candidato do sistema”, financiado por interesses do sistema, apadrinhado por um antigo primeiro-ministro, ligado a um grande clube de futebol, que manteve sempre a proximidade ao ex-presidente do Benfica Luís Filipe Vieira, e que contou sempre com o beneplácito da comunicação social.

 

Vitória. A esmagadora maioria dos comentários que ouvi e li deram a vitória a Rui Tavares neste debate. A Mafalda Anjos resumiu-o como “um expert do soundbite, da demagogia e da agressão versus o Mr Nervos de Aço”. E declarou a vitória dos nervos de aço. Creio que só o Rui Calafate, também na CNN Portugal, negou a vitória ao Livre, falando num empate.

 

Distância. Trabalho de casa, moderação e poker face voltou a ser a receita de Catarina Martins para um debate com outro líder da direita. Depois de Ventura, ontem foi Rui Rio. E Rio pareceu, mais uma vez, o contrário disso: mal preparado, ziguezagueante, sem uma mensagem definida, com pose de quem discute política no café da esquina. Talvez resulte. Mas duvido. 

Foi um muito bom debate, note-se. Vivo, bem conduzido pela Clara de Sousa, sobre propostas políticas contrastantes para leis laborais, salário mínimo e política salarial, saúde, pensões e Segurança Social. 

Dificilmente dois partidos podiam ter ideias mais distantes, e Catarina Martins passou boa parte do debate a acentuar essas distâncias, mesmo quando Rui Rio anuiu ao discurso da adversária e até quando disse que estavam ambos de acordo, quando se discutia saúde e o SNS. “É um pouco estranho que diga que concorda comigo quando estamos a dizer coisas diversas”, atalhou a líder do BE num desses momentos. É curioso que Rio tenha passado uma parte do debate com Ventura a concordar com ele, e uma parte do debate com Catarina a dizer que sim com a cabeça.

Catarina Martins e Rui Rio

Normalidade. O arranque do debate de Rio com Catarina Martins fez-se com os ecos do seu debate com Ventura. Foi o momento para esclarecer se concorda ou não com alguma forma de prisão perpétua, como deu a entender nesse debate. Rio garantiu que não. Mas empenhou-se sobretudo em demonstrar que Ventura “afinal não quer prisão perpétua”, mas uma forma mitigada de prisão perpétua. Não era essa a questão, mas era essa a questão para Rio. Catarina mostrou-se “perplexa” ao ouvir “o líder de um dos maiores partidos portugueses a tentar normalizar a posição de selvajaria da extrema-direita”. Horas depois, Isabel Moreira dizia que Rio se comportou como “o advogado de defesa de André Ventura”. 

Porquê?

Parece hoje claro que Rui Rio já meteu na cabeça que só será primeiro-ministro com o apoio do Chega. Não há volta a dar: mesmo que ganhe as eleições, Rio precisa do voto de Ventura e sabe disso. Tal como sabe que Ventura tem taxas altíssimas de rejeição no eleitorado. Segundo as sondagens, é, de longe, o líder mais impopular, e o mais detestado pelo eleitorado. Ninguém lhe é indiferente - quem não vota nele provavelmente detesta-o. Rio parece determinado a contrariar isso, para fazer caminho a um eventual entendimento futuro, quaisquer que sejam os seus contornos. Por essa razão não afrontou Ventura no debate entre ambos, não se demarcou claramente do seu racismo, ou de propostas como a prisão perpétua ou castração de pedófilos, e tudo vai fazendo para que o Chega pareça aceitável aos olhos do eleitorado moderado e de centro. Na noite passada fez o maior dos esforços nesse sentido. “Afinal o Chega não quer prisão perpétua”, declarou, satisfeito.

 

Católico. “Sou católico mas não sou crente, não tenho fé”, disse Rui Rio a certo ponto do debate. É como ser líder de um partido numa democracia mas não ser democrata.

 

Direita ao assunto. A Maria João Avillez estreou-se ontem com uma nova rubrica de comentário da CNN Portugal, e começou por focar-se numa realidade que conhece particularmente bem: o PSD. Acompanha o partido como jornalista desde que o partido nasceu, ainda com o nome PPD. E notou esta “estreia absoluta” do PSD como partido assumidamente de centro. “Isto pode não correr muito bem”, avisou a Maria João. E explicou porquê: “Com esta opção decidida pelo centro, Rui Rio está a soltar a direita e a deixá-la livre e entregue a ela própria, em vez de a conduzir numa frente eleitoral. Depois, à esquerda, está lá António Costa.” A jornalista lembra-se bem de quando o PSD era o “motor de arranque” do espaço político à direita do PS. E sabe a diferença que isso fazia. “Quando se arregimenta, quando se juntam forças, quando se sabe liderá-las, o eleitorado percebe e sente-se seduzido. Não sei quem é que Rui Rio estará a seduzir neste momento”. Tenho a mesma dúvida, e há muito tempo.

João Cotrim Figueiredo e Francisco Rodrigues dos Santos

All in the family. Parte da direita confrontou-se noutro debate, entre João Cotrim Figueiredo e Francisco Rodrigues dos Santos. Começaram com sorrisos cúmplices, mas não foi bonito de se ver. A não ser para quem aprecie uma boa peixeirada em família. Foi o primeiro debate do líder da Iniciativa Liberal, por isso é cedo para avaliar a sua postura. Mas foi o segundo de “Chicão”, e este reiterou o estilo conflituoso, provocador e desrespeitador do primeiro. A roçar por vezes a boçalidade. 

Por estranho que possa parecer, o principal ponto que Rodrigues dos Santos queria vincar era que a IL não só não é de direita como está próxima da esquerda. E elencou as vezes em que a IL cometeu o pecado mortal de estar próximo do BE em matérias como eutanásia, aborto, descriminalização das drogas leves e até no “cancelamento cultural”... Tão grave, ou pior, é o programa da IL não referir a Igreja e as Misericórdias e não ter “valores éticos e morais”.

Cotrim respondeu que “o liberalismo faz falta para evitar este discurso a preto e branco do Francisco”, e retorquiu que “se há alguém que tem cultura de cancelamento é o CDS, que cancelou um grupo parlamentar inteiro”. Pouco depois estava a insinuar que o CDS talvez seja, afinal, de esquerda, pois “quem quer valores morais e éticos no centro da sua ação política é de esquerda”. 

Sim, foi estranho. A certo ponto, “Chicão” acusou o interlocutor de “populismo barato”. “Você parece o Chega com uns trocos no bolso.” Foi mais ou menos quando o moderador avisou, mais uma vez, que “lá em casa” as pessoas não estavam a perceber nada, porque estavam os dois a falar ao mesmo tempo. Talvez não tenha sido só por isso.

 

A frase do dia

“Uma mãe nepalesa vem de comboio a Portugal, enganou-se, queria ir para Espanha e passou em Portugal, o filho dela nasceu aqui, para o Rui Tavares já é portuguesa. (...) Quem nascer em Portugal é nacional português. Pode-se enganar na estação de comboio, vir para a Elvas em vez de Badajoz e já é português.”

André Ventura, no debate com Rui Tavares

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