Mantinha uma empresa que prometia facilitar a aquisição de vistos gold, assumia uma posição de intermediário com organizações russas e a própria embaixada defendeu-o até ao fim. Eis a história de um empresário que fez abalar (ainda mais) as relações entre Portugal e a Rússia
Foi com um aperto de mão que Bruno Valverde Cota selou a sua aproximação a Moscovo. Corria o mês de fevereiro de 2020 quando o embaixador russo em Portugal Mikhail Kamynin o escolheu como Cônsul Honorário da Rússia. Na cerimónia, que aconteceu numa sala da embaixada, os dois posaram para fotografias à frente de uma parede gravada com retratos da Praça Vermelha. Valverde Cota vestia uma gravata com o mesmo azul usado na bandeira russa para simbolizar a fé e a fidelidade.
Três anos depois, a sua nomeação pelo chefe da diplomacia russa viria a ser contagiada por ligações que especialistas em segurança e diplomacia, consultados pela CNN Portugal, consideraram “perigosas”, especialmente em tempos de guerra. “A escolha de um cônsul honorário é sempre um processo cuidadoso para os países que os selecionam, porque, não sendo diplomatas de carreira, têm muita responsabilidade em promover a imagem do país, mas em situações de crise tornam-se agentes de manipulação e de influência nociva”, explica José Filipe Pinto, politólogo e professor Catedrático da Universidade Lusófona.
O empresário português foi escolhido pelo embaixador russo num momento em que era o principal gestor da Optimistic Plus Lda, uma firma de consultoria que atuava no mercado imobiliário e prometia facilitar a aquisição de vistos gold. E, de repente, o volume de negócios desta empresa disparou.
De acordo com um relatório financeiro obtido pela CNN Portugal, a Optimistic Plus Lda passou de um volume de negócios de 2.198.761 milhões de euros (2020) para 6.396.930 milhões em 2021. Ao mesmo tempo, Valverde dividia-se por uma agenda preenchida por receções a comitivas russas, reuniões de trabalho com autarcas e viagens de trabalho a Moscovo, Abu Dhabi e ao Uzebequistão.
“Só por isso já era suspeito”, começa por descrever o embaixador António Monteiro, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, sublinhando que um Cônsul Honorário não pode exercer o seu cargo e ter, à margem, uma empresa que promove vistos gold. “Parece-me que havia aí uma incompatibilidade, uma situação, pelo menos, perigosa pela influência que detém, que precisava de ser tomada em consideração”, sustenta.
Um dos encontros que este cônsul viria a promover aconteceu no Colégio Internacional de Vilamoura, onde fotografias tiradas no final de 2020 mostram Bruno Valverde Cota ao lado de Vladimir Iaroshevskii, representante em Portugal da Agência Rossotrudnichestvo, uma organização de propaganda russa comandada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov.
Em 2021, por exemplo, o empresário português foi a Moscovo, em representação da Câmara do Comércio Portugal-Rússia, jantar com representantes de empresas portuguesas no restaurante do 62.º andar da Torre da Federação, desenhado para ser o mais alto edifício da Europa. No mesmo ano firmou uma parceria com a iniciativa económica Lisboa-Vladivostok, um grupo que defende um espaço económico comum que ligue a capital de Portugal e a maior cidade portuária da Rússia.
Na altura, numa mesa redonda em Portugal com o líder desta organização eurasiática, Ulf Schneider - empresário alemão, Valverde Cota discutiu oportunidades de negócios farmacêuticos, mas também de transporte e energia na Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia.
Os cônsules honorários assumem um papel de intermediação, como explica Victor Madeira, especialista em segurança nacional e investigador associado no Centre for Information Resilience, no Reino Unido. “O objetivo principal é a facilitação de apresentações, por um lado e literalmente para expandir o comércio e os intercâmbios culturais, mas tem um propósito final que é sempre o de aumentar a influência do país em Portugal.”
E, sobre isto, defende, é preciso ter em conta que estas organizações russas, que se assumem com objetivos culturais, na verdade também têm interesses na influência das decisões políticas dos Estados onde estão representadas. “O propósito nestas iniciativas, a partir de um certo nível, é sempre aumentar a influência do Estado e o Estado na Rússia são os serviços de segurança e de informações”, afirma.
No período de tempo em que o website da empresa Optimistic Plus anunciava serviços de “investimentos e vistos gold” estavam incluídas três opções - que começavam nos 280 mil euros para propriedades em áreas de baixa densidade populacional e podiam chegar aos 500 mil euros.
Questionado pela CNN Portugal, em janeiro, Valverde Cota garantiu que a empresa dispõe dessa informação no âmbito da oferta geral”, no entanto, “por considerar que eventualmente poderia haver conflito de interesses", decidiu "não avançar com o apoio a vistos gold". "Não se enquadra no âmbito da nossa estratégia comercial.” E sublinhou que a Optimistic “nunca ajudou a tratar de vistos gold, nem tem intenções de o fazer no futuro”.
Já fonte oficial da embaixada da Rússia em Portugal afirmou “não ter conhecimento de que o cônsul honorário alegadamente trate de vistos gold” e sublinhou que Valverde Cota era “alguém com um forte sentido ético e muito sensível a este tipo de questões”.
Certo é que no mesmo mês em que as suas ligações a esta empresa foram reveladas, o Ministério dos Negócios Estrangeiros decidiu retirar-lhe as credenciais de cônsul honorário. À CNN Portugal, a tutela dirigida por João Gomes Cravinho justificou esta tomada de posição por "desenvolvimento de atividades que não estão em conformidade com a Convenção de Viena sobre Relações Consulares".
Nem a embaixada russa, nem o empresário português quiseram prestar mais declarações. Também o site oficial do consulado e das diferentes organizações que faziam a ponte com a Rússia estão desativados.
O que se seguiu foi a retaliação esperada: o ministro dos negócios estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov retirou os papéis ao cônsul honorário português em Nizhny Novgorod, uma cidade que tem sido um ponto central da invasão da Ucrânia por existirem zonas de treino de batalhões antes de serem enviados para a linha da frente.
Esta sequência era “previsível”, considera o politólogo e professor José Filipe Pinto, adiantando que “toda a diplomacia assenta no princípio da reciprocidade, pelo que exonerar um cônsul tem como resposta imediata uma exoneração subsequente”. Tudo isso é “normal”, mas com as hostilidades lançadas por Portugal à Rússia pela invasão à Ucrânia, os detalhes ganham uma nova relevância.
“Os cônsules alinhados com Moscovo ganham a missão de tentar influenciar a opinião pública dos países onde estão, no sentido de suavizar a imagem da Rússia, e evitando, portanto, que ela seja apenas classificada como o invasor. Pelas ligações aos serviços secretos e às embaixadas, os cônsules acabam por ser facilitadores de agentes infiltrados”, observa ainda.
Já para o embaixador António Monteiro esta sequência de exonerações que acontece já depois de Portugal e Rússia terem retirado 15 funcionários das respetivas embaixadas revela um “significado político muito forte de que, de facto, há um desagrado perante a política que está a ser seguida pelo outro Estado” e é “considerado que já não interessa manter o relacionamento ao nível que estava antes”.
Ainda que haja “uma grande necessidade de haver intercâmbio cultural para possibilitar que cidadãos russos sejam melhor acolhidos em países ocidentais”, Victor Madeira é da opinião de que Portugal, numa altura de um conflito de grande escala na Ucrânia, deveria “reduzir ou eliminar postos deste tipo até existir uma resolução decisiva do conflito na Ucrânia”.
A controvérsia gerada pelas exonerações dos cônsules honorários surge numa altura em que uma investigação global do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação e da ProPublica identificou pelo menos 500 atuais ou ex-cônsules honorários que foram acusados de crimes, alguns condenados por ofensas graves ou apanhados a explorar o seu estatuto em proveito pessoal.