"A não identificação dos doadores é ilegal": o que diz a lei sobre o financiamento dos partidos (e sobre o que pode acontecer a André Ventura)

5 mar, 22:19
O presidente do Chega, André Ventura (LUSA/Nuno Veiga)

André Ventura garante que "o Chega é o partido mais transparente" no que diz respeito às contas internas, apesar de o partido confirmar que a informação relativa aos donativos que recebeu desde 2019 estar incompleta. Fomos perceber o que diz a lei sobre o financiamento dos partidos, em concreto sobre os donativos que lhes são enviados, e o que acontece a quem não cumprir as regras

A polémica em torno do financiamento do Chega “é um sinal de alarme muito grave para a democracia”, adverte à CNN Portugal o vice-presidente da Associação Frente Cívica, João Paulo Batalha, apontando que “a não identificação de doadores significa que está em causa um financiamento ilegal” do partido.

A lei do financiamento dos partidos políticos estabelece isso mesmo. De acordo com a alínea 1 do artigo 8.º da Lei n.º 19/2003, “os partidos políticos não podem receber donativos anónimos nem receber donativos ou empréstimos de natureza pecuniária ou em espécie de pessoas coletivas nacionais ou estrangeiras”.

Ou seja, “a não identificação dos doadores significa que é um financiamento ilegal”, conclui João Paulo Batalha, acrescentando que, “se não houver capacidade da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFO) de garantir que [os donativos] estão legais”, o Ministério Público pode ser chamado a “investigar o financiamento do partido”.

No caso de incumprimento das obrigações impostas ao financiamento dos partidos políticos, a lei estabelece que os mesmos sejam “punidos com coima mínima no valor de dez vezes o valor do IAS [correspondente a cerca de 5.092,60 euros] e máxima no valor de 400 vezes o valor do IAS” [cerca de 203 mil euros], além da “perda a favor do Estado dos valores ilegalmente recebidos”.

Além disso, “os dirigentes dos partidos políticos que pessoalmente participem na infração(...) são punidos com coima mínima no valor de cinco vezes o valor do IAS [cerca de 2.500 euros] e máxima no valor de 200 vezes o valor do IAS [correspondente a mais de 100 mil euros].

Os donativos de pessoas singulares estão entre as receitas próprias dos partidos, a par de outras, como as quotas e contribuições dos filiados ou receitas de angariações de fundos por eles desenvolvidas. A lei estabelece um valor máximo de donativo por pessoa, correspondente “a 25 vezes o valor do indexante dos apoios sociais” (IAS), fixado este ano em 509,26 euros. Ou seja, cada doador não pode dar mais do que 12.731,50 euros.

Além disso, os donativos, a par das restantes receitas próprias do partido, devem ser “obrigatoriamente tuteladas por meio de cheque ou por outro meio bancário que permita a identificação do montante e da sua origem” e devem ser “depositadas em contas bancárias exclusivamente destinadas a esse efeito, nas quais apenas podem ser efetuados depósitos que tenham essa origem”. Isto serve “precisamente para que os montantes possam ser verificáveis”, explica João Paulo Batalha.

Mas há uma exceção: a lei considera que os montantes de valor inferior a 25% do IAS não têm de ser identificáveis. Ou seja, qualquer donativo ou receita inferior a 127 euros não tem de ser rastreável, “desde que, no período de um ano, esses montantes não ultrapassem 50 vezes o valor do IAS”, o que corresponde a mais de 25 mil euros.

Confrontado com a investigação do Exclusivo da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal), que dá conta do desconhecimento da origem de vários donativos ao partido desde 2019, o ano da sua fundação, André Ventura garante que tem os valores devidamente discriminados, mas que “o banco é que se recusou” a identificar a origem dos donativos, ao abrigo do Regulamento Geral sobre a Proteção de DADOS (RGPD). “Se o banco não os der [os elementos identificáveis dos doadores], o que vamos fazer é reportar ao Ministério Público. Tem de ser uma autoridade judiciária a pedir esses nomes”, disse.

Mas João Paulo Batalha duvida deste argumento apresentado pelo Chega. “Se é o banco que está a levantar essa questão, então o banco está errado”, diz, explicando que “quem financia um partido está a vincular-se à vontade de sucesso do respetivo partido”, pelo que “não há aqui qualquer recurso a questões de confidencialidade”.

Mas mesmo nesse caso, a responsabilidade recai sempre sobre o partido em questão, diz João Paulo Batalha, acrescentando que “os partidos não podem aceitar um donativo se não conhecerem a sua origem”. “A lei diz que os donativos têm de ser rastreáveis”, insiste o vice-presidente da Associação Frente Cívica.

Há um outro "sinal de alarme" no orçamento do Chega para a campanha

A par desta investigação do Exclusivo da TVI, João Paulo Batalha aponta outro dado que classifica como “um sinal de alarme” em relação ao Chega, desta feita relacionado com o orçamento apresentado pelo partido para a campanha eleitoral destas legislativas.

É que, segundo o responsável, “entre os grandes partidos com assento parlamentar, nenhum apresenta uma contribuição própria como o Chega” para pagar as despesas relacionadas com a campanha. 

Antes da campanha eleitoral, os partidos apresentam ao Tribunal Constitucional os respetivos orçamentos, que incluem não só as despesas que preveem ter, como também o valor que estimam receber de subvenção estatal (os custos da campanha pagos pelo Estado consoante a votação obtida pelos partidos). O Chega estima gastar 700 mil euros nesta campanha, atribuindo 300 mil euros de receitas à subvenção estatal e 400 mil euros às suas próprias receitas. Perante esta “grandeza de meios próprios”, João Paula Batalha entende que “ou o Chega é muito poupadinho” nas suas contas de 2019 - que, mais uma vez, ainda não estão auditadas - “ou então isto é um sinal de alarme”.

Em comparação, o PS estima gastar 2,55 milhões de euros - o mesmo valor que estão a prever receber de subvenção. Já a AD prevê gastar 2,5 milhões e estima receber 2,15 milhões de euros de subvenção, 275 mil euros em receitas próprias dos partidos da coligação e 75 mil euros em angariação de fundos. 

Para João Paulo Batalha, a discrepância dos valores apresentados pelo Chega com os restantes partidos “cria um sinal de alarme”, sobretudo agora que se discute o financiamento do partido e a legalidade dos donativos que tem vindo a receber desde 2019.

O vice-presidente da Frente Cívica lamenta que esta questão do financiamento do Chega esteja a ser “fiscalizada pela imprensa” e não pela entidade a quem compete essas funções, designadamente a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP). “É gravíssimo que a entidade não tenha capacidade para controlar o financiamento dos partidos políticos”, quer seja “por falta de meios e recursos”, quer seja “por falta de vontade”, diz o responsável, acrescentando que essa incapacidade “é um sinal de alarme muito grave para a democracia”.

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